Henilton Menezes

Secretário de Economia Criativa e Fomento Cultural do Ministério da Cultura.

Opinião

A economia criativa e o papel do Ministério da Cultura no desenvolvimento econômico

Um dos maiores desafios do novo MinC será criar condições de desenvolvimento para as atividades culturais

A ministra da Cultura, Margareth Menezes. Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil
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Como países latino-americanos, será que deixamos o período em que éramos povos colonizados? Ou apenas trocamos os colonizadores? Por que o Brasil continua a ser apenas um “país em desenvolvimento” na busca sem fim por uma independência para além do Grito do Ipiranga? Cláudia Leitão, professora que implantou a primeira Secretaria de Economia Criativa do Ministério da Cultura, em seu plano de trabalho para os anos 2011 a 2014, já nos questionava: “Qual desenvolvimento perseguimos? E para este desenvolvimento, que Estado e quais modelos de desenvolvimento deveríamos construir? E, para a construção desses modelos econômicos, que mentalidade deveríamos adotar?”.

Mais de 12 anos se passaram desde que a ex-ministra da Cultura Ana de Hollanda, cantora e compositora, trouxe de volta para o Ministério os conceitos do economista paraibano Celso Furtado (1920-2004), também ex-ministro da Cultura. Na sua posse, em 2011, dizia que “o Ministério vai ceder a todas as tentações da criatividade cultural brasileira. A criação vai estar no centro de todas as nossas atenções. A imensa criatividade, a imensa diversidade cultural do povo mestiço do Brasil, país de todas as misturas e de todos os sincretismos. Criatividade e diversidade que, ao mesmo tempo, se entrelaçam e se resolvem num conjunto único de cultura. Este é o verdadeiro milagre brasileiro…” e completava a respeito das grandes metas nacionais de erradicar a miséria, garantir e expandir a ascensão social, melhorar a qualidade de vida dos brasileiros: “A chama da cultura e da criatividade cultural brasileira deverá estar acesa no coração de cada uma dessas grandes metas”. Depois de 25 anos, o pensamento de Furtado, a imprescindibilidade de um desenvolvimento brasileiro desconcentrado, com pilares na riqueza e na diversidade cultural do seu povo, voltava à pauta do governo federal.

Sabemos que a descontinuidade das políticas brasileiras é a chaga maior que nos acostumamos a aceitar, governo após governo. Avanços e retrocessos, construções e destruições, vêm ao longo da história do nosso País preservando o fracassado modelo de crescimento econômico concentrador, que mais amplia a distância entre os que podem e têm tudo e aqueles que de fato produzem, mas não podem e nunca quase nada têm. E foi nesse contexto de idas e voltas que aconteceu o maior apagão civilizatório brasileiro, promovido por um governo protofascista, numa eleição com aparência democrática, com a retirada daquele que liderava as pesquisas, por um processo jurídico que, anos depois, se mostrou falso. A consequência nefasta dessa operação ilegal foi que extrema-direita política emergiu, a extrema pobreza recrudesceu e a fome voltou ao país considerado o maior produtor de proteína animal do mundo. Brasileiros pobres remexendo o lixo de brasileiros ricos é uma cena de um filme brasileiro que parece nunca mudar. Como profetizou o pensador pernambucano Josué de Castro (1908-1973), no mundo continua a existir “dois terços de pessoas que não dormem porque sentem fome e um terço de pessoas que não dormem por medo dos que sentem fome”. Em 2021, de acordo com dados do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), ainda os mesmos dois terços da população global vivem na pobreza e lutam diariamente para atender as suas básicas necessidades de sobrevivência.

E como num ciclo sem fim, mais uma vez promoveram a destruição do Ministério da Cultura, seguida de ataques aos criadores brasileiros e da criminalização dos artistas. O que restou da institucionalidade da cultura foi desmontada por imitadores de nazistas, homens brancos armamentistas e uma atriz que tratava nossa criatividade como um “pum de palhaço”. Falsos representantes do setor artístico travestidos de gestores culturais, com uma missão dada e uma missão cumprida. Era a distopia inventada com base na mentira, na desinformação e na raiva de parte da sociedade brasileira que nunca aceitou a diversidade, ou diferença de rala, de gênero, de maneira de viver. Tentaram impedir a independência do pensamento, o protagonismo dos povos tradicionais, dos pretos, dos quilombolas, da população LGBTQIA+, das mulheres, enfim, dos agrupamentos de brasileiros ou brasileiras historicamente minorizados. Infelizmente, existe uma parte do Brasil grande da população que entende a ignorância como motivo de orgulho e a arte como “coisa de comunista”.

E em meio a esse caos, após a conquista de um novo governo popular, mais uma vez foi necessário refundar o Ministério da Cultura do Brasil (MinC). Para essa missão, o presidente Lula, vencedor da eleição contra uma facção de direita raivosa e pouco honesta, escolheu uma cidadã brasileira de raízes afro-indígenas, nascida na periferia de Salvador, a baiana cantora, compositora e artista popular, Margareth Menezes da Purificação. E é por intermédio dessa mulher, protegida pelos orixás, que a cultura volta, com força, à pauta principal do governo federal, “como base primordial para educação, como fator de desenvolvimento econômico e social, de inclusão e de cidadania, mas acima de tudo, como ferramenta de conscientização de uma ideia profunda de democracia”.

Em sua posse, apresentou ao Brasil o seu pensamento norteador da atual política pública: “A cultura brasileira é um caldeirão efervescente; um elixir poderoso; é como cipó das visões dos povos originários; é como a força inquebrantada dos ancestrais africanos; é como os anseios dos sonhos de brancos, índios e negros; é como a consciência de todos que já aprenderam a entender o valor da democracia e, como são perversas a ignorância e as injustiças sociais”. Vimos o retorno do pensamento de Celso Furtado, em que “a política de desenvolvimento deve ser posta a serviço do processo de enriquecimento cultural”. Mas, o mesmo Furtado nos provoca: “resta saber quais serão os povos que continuarão a contribuir para esse enriquecimento e quais aqueles que serão relegados ao papel passivo de simples consumidores de bens culturais adquiridos nos mercados”.

Um dos maiores desafios do novo MinC, portanto, será criar condições de desenvolvimento para as atividades culturais e criativas que estão entre as que mais vêm contribuindo para o crescimento sustentável e democrático em muitas economias em desenvolvimento. Não apenas continuar a fazer crescer as chamadas “indústrias criativas”, que funcionam, em sua maioria, com lógica do lucro, contribuindo para o esgotamento das nossas reservas naturais.

Hoje, mesmo as artesanais, expressão cunhada pelo ex-ministro Gilberto Gil, estão sob risco de não se sustentarem a longo prazo, uma vez que promovem impactos irreversíveis ao planeta, quando se constata que sua exploração está desalinhada das ações de preservação ambiental. Seja a madeira utilizada pelos luthiers e artesãos, a argila necessária aos ceramistas, o capim dourado da fabricação de joias e adornos e outras matérias-primas naturais que não são inesgotáveis e estão sendo retiradas da natureza, com a sanha de sempre, voltada para a obtenção do lucro interminável do capitalismo.

É fato que a indústria cultural, como atividade produzida em grande escala, gera riqueza e cria empregos, mas não basta isso para aceitarmos de forma plena o modelo proposto. É uma indústria que, como outras, está ligada aos interesses econômicos e políticos e, muitas vezes, faz circular produtos de qualidade, no mínimo, questionável, fabricados de uma forma perversa, com a exclusão cultural e a dependência dos territórios e suas populações nativas.

Na moda, um setor economicamente pujante, encontramos vários exemplos de insustentabilidade dessas indústrias criativas. Municípios brasileiros com vocações para a indústria têxtil têm um setor gerido em desequilíbrio, promovendo a ampliação das diferenças. Muitas vezes, os milionários lucros são controlados por poucos, enquanto milhares de trabalhadores precarizados permanecem excluídos, em atividades consideradas desumanas e, muitas vezes, com os mesmos dissabores similares à escravidão.

O desenvolvimento proposto para nossas populações baseado na economia criativa é uma oposição à lógica fordista da indústria. A economia criativa não abandona o princípio da biodiversidade cultural e do desenvolvimento sustentável local, ao tempo que a valoriza o nosso patrimônio cultural, o potencial criativo, o empoderamento e a independência das populações brasileiras. E esse empoderamento, segundo Cláudia Leitão, se “manifesta em todos os níveis da sociabilidade humana e ganha maior potência e legitimidade quando fortalece e amplia os canais de participação das minorias, dos excluídos, dos que carecem de direitos na definição de desejos e aspirações que lhes permitam decidir sobre seus próprios destinos”. É um conceito que dialoga com o pensamento de Celso Furtado, que nos ensinou que “a criatividade da sociedade e a emancipação dos territórios estão intrinsecamente associados”.

Nas últimas décadas, diversos países latino-americanos incluíram em suas Constituições o pluralismo cultural, suas características plurinacionais e o direito à cultura para completude da cidadania. Também houve o fenômeno da criação de departamentos, de secretarias ou de ministérios da cultura. No Brasil, várias secretarias de municípios e estados passaram a trazer o termo economia criativa, atrelado à cultura, ao esporte ou ao turismo. No entanto, na prática, ainda não se percebe diferenças entre as tradicionais secretarias de cultura e aquelas que se auto denominam secretarias da economia da cultura. Para além de mudanças dos títulos, os governos devem promover condições favoráveis à sustentabilidade dos empreendimentos, estimulando círculos virtuosos de criação, produção, distribuição, consumo e até exportação de bens e serviços criativos. É urgente enfrentar as hegemonias das indústrias criativas, em especial aquelas abarcadas pelas big techs e suas plataformas transnacionais que agem como estados nacionais independentes e desconsideram as leis locais, os direitos de propriedade intelectual, não distribuindo de forma justa os lucros entre seus verdadeiros criadores.

Hoje, no MinC, a economia criativa está na mesma pasta do fomento e do trabalhador da cultura, uma união estimuladora, quando se busca um modelo de gestão da economia criativa, promovendo um fomento ou financiamento adequado aos territórios criativos e com o impacto positivo e duradouro na qualidade de vida dos trabalhadores da cultura. Com um novo arcabouço legal de fomento e financiamento da cultura e o maior orçamento da história na pasta, o MinC apresenta à sociedade uma possibilidade concreta de uma distribuição descentralizada, mais justa no uso dos recursos federais. Além disso, vem construindo parcerias com os Bancos de desenvolvimento brasileiros, buscando criar, testar e avaliar modelos de financiamento e desenvolvimento sustentável, medindo os resultados das ações voltadas para os territórios vocacionados aos produtos criativos.

Segundo a Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento, o valor das exportações de bens criativos foi de US$ 548 bilhões em 2019, pouco menos de 3% do total das exportações de bens naquele ano. O crescimento médio anual das exportações de bens criativos entre 2010 e 2019 foi de 2,4%. No que diz respeito às exportações de serviços criativos, a organização estima que, em 2019, tenham girado em torno de US$ 1 trilhão, com uma taxa de crescimento anual estimada de 9% para o período 2010-2019.

Recente estudo apresentado pelo Observatório Itaú Cultural trouxe um PIB da Economia da Cultura de 3,11% do PIB Nacional, resultado das atividades de 7,5 milhões de trabalhadores. Isso não significa que devemos esquecer o risco de encantamento com esses números do PIB Criativo. Em geral, esses dados não alertam para a perniciosa hegemonia das indústrias criativas, que apresentam os mesmos níveis de concentração econômica das indústrias tradicionais. Precisamos produzir números mais qualificados, com indicadores que traduzam os reais impactos dos setores criativos nos territórios e que identifiquem quais os resultados positivos para as comunidades.

Não há dúvidas que o Brasil é o Estado Nacional mais festeiro do mundo, uma herança negra, ibérica e latina. Somos um povo vocacionado para produzir e consumir festas das mais diversas, durante todo o ano, em todos os estados. Temos festas rurais, festas urbanas, festas tradicionais e folclóricas, festivais de artes em todas as linguagens, festejos sagrados e profanos. Promovemos pequenas, médias, grandes e gigantescas comemorações, cerimônias, cortejos que revelam a força do povo brasileiro nessa indústria de alegria. A maior festa popular do planeta é nossa, o Carnaval brasileiro, uma manifestação nacional incompreensível para um estrangeiro comum, que dura dias, e em alguns lugares, semanas. Um festejo que impulsiona vários segmentos da economia brasileira, além dos próprios setores criativos e profissionais diretamente ligados ao fazer cultural. São hotéis, restaurantes, transportes, indústria de bebidas, comércio acessórios e fantasias e muitos outros que se beneficiam direta ou indiretamente com a realização da festa.

Somente na pandemia, quando fomos obrigados a tudo parar, em apenas duas cidades, a ausência do Carnaval deixou de movimentar R$ 10 bilhões.  O Rio de Janeiro tem, na época do Carnaval, a maior arrecadação de impostos sobre os serviços ligados ao turismo. Apenas no sambódromo circulam 45 mil trabalhadores formais e informais, segundo dados do RioTur. Muitos produtos recebem novas embalagens, destinadas a acompanhar o tema carnavalesco. Vários setores ampliam seus investimentos na publicidade dos seus produtos que recebem cores mominas.

Por todo esse impacto nas nossas festas, gritamos para o mundo que temos o “maior bloco carnavalesco do mundo”, o Galo da Madrugada, o “maior São João do mundo”, em Caruaru, a “maior romaria do mundo”, o Círio de Nazaré, a “maior parada gay do mundo”, em São Paulo, e o “maior espetáculo da Terra”, o desfile realizado na Marquês de Sapucaí, festejos que levam imagem do Brasil para bilhões de pessoas.

Políticas públicas de economia criativa não podem enxergar apenas os grandes eventos culturais, por óbvio importantes para as cadeias produtivas, para criação de empregos e para venda da imagem Brasil no exterior. Precisam, principalmente, estimular a capacidade empreendedora dos territórios e seus criadores, reconhecendo suas dinâmicas, sua história, sua busca por independência e seus modos boa vida. Educação de qualidade, proteção ao trabalhador, renda mínima, inclusão produtiva da juventude, políticas para infância, são algumas das tarefas de um Estado que prioriza o coletivo em detrimento do individual.

Em tempos atuais, na era digital, a visão do ex-ministro Gilberto Gil ainda pode e deve ser considerada: “a cultura como espaço de realização da cidadania e de superação da exclusão social, seja pelo reforço da autoestima e do sentimento de pertencimento, seja, também, por conta das potencialidades inscritas no universo das manifestações artístico-culturais com múltiplas possibilidades de inclusão socioeconômica”.

A Cultura é um setor econômico produtivo que tem como insumo principal a criatividade e a transgressão, sem prescindir da estabilidade, da continuidade e da necessidade do acúmulo coletivo e das trocas de vivências. Ao MinC cabe dar a institucionalidade necessária para a preservação e o desenvolvimento dessa força simbólica brasileira que tem o condão de promover a verdadeira independência das populações menos aquinhoadas com os privilégios do capitalismo e excesso de acumulação inaceitável das riquezas do nosso País.

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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