Opinião

A condição de ser estrangeiro ao longo da vida

Fora um estranho na maior parte da vida, a tal ponto que me distanciara muitas vezes de mim mesmo

Foto: Divulgação
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“Aí de vós, guias cegos.” – São Mateus

Muitos, como eu, surpreenderam-se ao ver o Conselho Federal de Medicina (CFM) não esboçar reação ao crime evidente de charlatanismo cometido pelo presidente ilegítimo, que, não sendo médico, receitou remédios para a Covid 19, durante a pandemia. Pior, ambas as fórmulas preconizadas por ele mostraram-se ineficazes.

Como pode um colegiado de médicos fechar os olhos a algo que dizia respeito à saúde pública de milhões de brasileiras e brasileiros?

Depois de um mês com minha mãe em unidades de terapia intensiva (UTIs) de três hospitais, reputados como os melhores de São Paulo, pude entender aquela omissão.

Nos três, prevalecia entre os médicos a visão utilitarista da vida: quem não serve mais para produzir, tampouco deve viver.

Com honrosas e belas exceções, coincidiam em que a vida de um idoso podia ser abreviada, de acordo com conveniências sociais.

A valorização da vida pareceu-me, basicamente, mero slogan eleitoral. Na prática, a eutanásia estava justificada aos olhos deles.

Aos familiares dos pacientes, restava uma dupla luta: contra a doença e os próprios médicos.

Para mim, essa condição foi ainda mais sentida: meu pai era médico, minha irmã é, o irmão mais velho do meu pai também era, assim como todos os meus primos por parte de pai, além de ter amigos médicos, maravilhosos lutadores sociais.

No silêncio das longas noites naquelas UTIs, senti profundamente a condição de ser estrangeiro, em meu próprio país, estado, cidade e – não menos importante – condição social.

Dei-me conta, então, de tê-lo sido, de uma forma ou de outra, ao longo da vida, em um país tão desigual e injusto, cultural e socioeconomicamente.

Estrangeiro na escola pública no ensino fundamental, em que eu tinha condições de viajar com meus pais, mas não podia partilhar minhas experiências com os colegas que ficavam nas próprias casas nas férias.

Na adolescência, estrangeiro por intuir ser gay, orientação sexual inaceitável em cidade do interior do Estado de São Paulo (ainda tão conservador que em seu antipetismo elegeu um governador incapaz de dizer o local ou o bairro em que votava).

De forma instrumental, escolhi uma profissão que pudesse me garantir sobrevivência física e psíquica: a diplomacia. A mesma escolha foi claramente feita por muitos colegas, a tal ponto que um terço da minha turma no Instituto Rio Branco era homossexual.

Essa saída também foi buscada por colegas latino-americanos e anglo-saxões, bastando, para isso, verificar a quantidade o perfil de seus serviços exteriores.

Mas, na diplomacia, se encontrara minha tribo (pequena), que me permitiria assumir minha vida afetiva, aquele meio era hegemonizado pela oligarquia local e seus filhos, netos e bisnetos, ascendendo praticamente a Adão e Eva.

Mais uma vez, a condição de estrangeiro vinha ao meu encontro, literalmente: iria viver 10 anos no exterior.

Faço uma retrospectiva: na preparação para o vestibular do Rio Branco, fomos aconselhados a redigir em francês, utilizando frases curtas e tendo como modelo a obra do prêmio Nobel franco-argelino Albert Camus, “O estrangeiro”.

Na época e até recente reflexão, não conseguia decifrar o incômodo que me causara aquela leitura, feita em segunda mão, já tendo lido anteriormente em português.

Sim, fora estrangeiro na maior parte da vida, a tal ponto que me distanciara muitas vezes de mim mesmo, por ser aquela a minha conduta padrão de relacionamento com o mundo.

Voltando ao Brasil, não quis continuar no Itamaraty, para não fingir estar fazendo política externa, em um período em que o Brasil (como depois de 2016) era, de fato, colônia.

Fui acolhido então na Comunidade Solidária pela saudosa Ana Peliano e por minha querida amiga Nathalie Beghin.

Demitido posteriormente pelo nada saudoso Osmar Terra, negacionista e linha auxiliar do genocida nos absurdos sanitários, fui trabalhar no histórico governo de Olívio Dutra, no Rio Grande do Sul.

Tornei-me gaúcho de adoção e lá mantenho meu domicílio físico e eleitoral, além de uma quantidade imensa dos melhores amigos que um ser humano possa ter.

Posteriormente, ao reagir ao golpe de 2016, tornei-me pária entre meus colegas e ainda mais estrangeiro entre eles.

A vitória, roubada, do miliciano, em 2018, por medida de dignidade, levou-me a pedir aposentadoria.

Passei, então, a ser estranho ao próprio trabalho, que tomara a maior parte da minha vida, em 35 anos de relações internacionais, mais ou menos bem sucedidas.

Na família, mais ampla, já experimentara o estranhamento histórico: crescemos juntos e nos amamos, mas os primos fomos tomando rumos tão diversos, que chegavam a ser antagônicos; por exemplo, com alguns literalmente confraternizando com o golpista Michel Temer. Por mais de uma vez, recordei-lhes que nossos avós eram agricultores sem-terra na Itália, os mesmos que aqui hostilizavam.

Entretanto, foi nos hospitais que senti o tamanho da distância que me separa de minha classe social de origem, em que as convicções se tornaram crenças, podendo ser tão perigosas e delirantes, a ponto de fazerem com que possam – qual Ícaros ou anjos caídos – equipararem-se ao próprio Criador.

Sei que o dia de amanhã não me pertence, mas Àquele que traça os destinos, mas quero voltar ao porto depois da viagem e da tormenta; que ele me seja seguro e alegre, para mim e toda a humanidade, errantes que ainda somos nesta vida.

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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