Opinião

A vitória do bem sobre o mal, da luz sobre as trevas e do amor sobre o ódio veio a tempo

‘Entrar na UTI, com porta blindada e ciente de que estávamos sob o regime do terror da extrema-direita foi extremamente difícil’

Brasília. Foto: Sergio Lima/AFP
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“Amar alguém é vê-lo como Deus o concebeu”.
Fiódor Dostoiévski.

Para mim, escrever é uma obrigação, no sentido de que devo dizer algo.

Como escrevo esta coluna uma vez por semana, muitas vezes, durante a semana, penso em coisas bacanas e leves que gostaria de dizer aqui.

Porém, sei que a necessidade de dizer algo se imporá ao longo da semana e minha janela para o céu azul terminará toldada pela dura realidade de um país extremamente desigual, injusto, ainda por conhecer os horizontes da vida comunitária.

Não foi diferente nesta semana, mas foi mais radical.

Após quase um mês com minha mãe na UTI, viajei no sábado à noite para votar em Porto Alegre, deixando-a aos cuidados de minha irmã.

Vi e participei da linda festa na Cidade Baixa, em Porto Alegre, nas ruas embaixo do apartamento onde moro. Rimos, choramos e bailamos na chuva.

Retornei na segunda-feira, por Guarulhos, e já vi o bloqueio dos terroristas na Marginal Tietê.

Entrar na UTI, com porta blindada e ciente de que estávamos sob o regime do terror da extrema-direita foi extremamente difícil.

No dia seguinte, dia de Todos os Santos, minha mãe morreria nos meus braços.

Minha irmã, médica, tomou todas as providências necessárias para a remoção do corpo para Sorocaba, onde nascemos e devemos ser enterrados.

A empresa funerária, porém, informava a dificuldade em chegar e, de fato, foram quatro longas horas até o hospital em São Paulo.

Saímos da capital por volta da meia-noite, mas o carro funerário se adiantou e ficamos para trás.

Sabíamos que havia várias barreiras na Castelo Branco e na Castelinho.

O “wase” nos conduziu por dentro de Osasco e Barueri.

Mas, justamente em Barueri, havia uma barreira nova, que o sistema não registrava.

Entramos por ruas estreitas, à uma hora da manhã, de onde surgiam, como ratos, “pessoas” vestidas grotescamente de verde e amarelo, com buzinas e todo tipo de instrumento sonoramente invasivo.

Nossa dor ia se transformando em pânico, a ponto da cuidadora da mãe, evangélica, invocar a misericórdia divina.

Um agente de tráfico, providencialmente, nos indicou uma saída e conseguimos, finalmente, acessar a estrada.

Graças a Deus o bloqueio seguinte fora anunciado pela concessionária e pudemos chegar por entrada alternativa a Sorocaba.

Não, nosso calvário não terminara: no dia seguinte, Finados, o velório seria invadido pelos terroristas, pela tarde, antes do enterro, em busca de banheiro, café e água gratuitos.

O quartel local fica a poucos metros e lá os terroristas estacionaram seus carros e seu ódio, gritando o que de pior seus vômitos permitiam.

Como os amigos e parentes foram em busca de algo para comer na hora do almoço, em certo momento ficamos eu, minha mãe e uma querida prima dela, de quem ela cuidara quando pequena.

Lembrei-me então do filme “Uma jornada particular”, de Ettore Scola, com Sophia Loren e Marcello Mastronianni, que retrata a visita de Hitler a Mussolini. Ao longo do filme, ouve-se a multidão ensandecida, em delírio fascista, como eu estava presenciando.

Na película, uma dona de casa, esposa de fascista pequeno-burguês, conhece por acaso o hóspede do vizinho, um jornalista de esquerda homossexual e estabelecem relação profunda, tendo como tela de fundo o horror do nazismo e do fascismo, exatamente como eu presenciava naquele momento, em que os fascistas entravam no velório para saciar suas necessidades, paramentados da forma mais desrespeitosa, não se furtando a olhar com desdém aqueles que já não podiam lhes contrapor.

Na saída do féretro para o cemitério, o condutor do carro fúnebre nos tranquilizou: “hoje, faremos outra rota, inversa à deles”. Respondi com um sonoro: “sim, sempre”.

Minha mãe partiu vencedora: com Lula presidente e um lindo batuque ao lado de seu túmulo, pois ali também está enterrado João de Camargo, negro que criou sincretismo religioso complexíssimo, aliando cristianismo e religiões de matriz africana. Já que falo de filmes, recomendo o de Paulo Betti (também sorocabano) sobre ele.

Sei que Deus acolheu minha mãe, a quem eu e minha irmã somos imensamente agradecidos, pelos sacrifícios que ela e meu pai fizeram para nos dar formação esmerada, que outros pais gostariam de dar a seus filhos, mas que este país tão estratificado ainda não permite.

Deus quis que ela visse a vitória do bem sobre o mal, da luz sobre as trevas, do amor sobre o ódio.

Junto com Elis Regina, sei que já pode dizer: “Agora eu sou uma estrela”.

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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