Alberto Villas

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Jornalista e escritor, edita a newsletter 'O Sol' e está escrevendo o livro 'O ano em que você nasceu'

Opinião

A casa da Avenida Paraná

Belo Horizonte cresceu, mudou, e hoje, essa casa e a da Rua Rio Verde não existem mais

Belo Horizonte em 1941. Foto: Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte
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No final dos anos mil novecentos e quarenta, meus pais eram recém-casados, começo de vida, dinheiro curto, farinha pouca, meu pirão primeiro.

Depois de muito procurar, acabaram encontrando uma casa para alugar. Simples, pequena, três quartos, ideal para abrigar os filhos que sonhavam ter.

A mudança foi feita numa caminhonete Chevrolet meio capenga, que fez duas viagens, já que tinham poucos móveis, apenas os básicos. Fogão, geladeira, mesa com quatro cadeiras, cama de casal, dois criados mudos e uma cristaleira.

Com uma pequena economia, deu para dar um tapa na casa, que tinha os muros cobertos de musgo, algumas telhas quebradas e as paredes interiores marcadas de mãos sujas e solas de sapato.

A torneira da pia da cozinha também pingava.

Depois de caiada toda de branco, eles se instalaram naquela casa que ficava na Avenida Paraná, centro de uma Belo Horizonte ainda bem provinciana, poucos carros pretos importados nas ruas, muitas árvores, pardais e um ar puro que recebia pessoas do Brasil inteiro para curar de tuberculose.

A primeira surpresa na nova casa aconteceu no final da tarde do primeiro dia que estavam lá instalados. O meu pai estava na repartição, a campainha tocou e minha mãe foi atender.

Abriu a janelinha de vidro da porta da sala e um homem perguntou se a Valerie estava. Minha mãe disse que não tinha nenhuma Valerie ali, que quem morava ali era uma família. O homem desconfiou, insistiu, mas acabou indo embora.

Não passou meia hora, um outro homem, meia idade, careca, terno surrado, perguntou pela Gracy. Foi quando caiu a ficha da minha mãe.

Durante muitos e muitos anos, ela contava essa história, para deixar claro o aperto que já tinham passado na vida. Eles alugaram uma casa que era uma casa de tolerância, como dizia minha mãe.

Depois de Valerie e Gracy, vieram muitos e muitos outros nomes, quase todos com sotaque francês. O pesadelo durou um ano. Virara e mexia, a campainha tocava atrás da Margareth, da Suzette, da Michelle.

O meu pai, um cara muito organizado e caprichoso, chegou a escrever numa cartolina com o seu normógrafo “Casa de Família” e colou com durex na parede do alpendre.

Ele se sentia um pouco culpado por ter alugado uma zona. Contava que foi ingênuo, não percebeu que tratava-se de uma casa de tolerância nem mesmo quando trocou todas as lâmpadas dos quartos, que eram vermelhas.

Além do cartaz no alpendre, ele arrumou o Joli, um cachorro meio encrenqueiro, capaz de colocar qualquer velho babão pra correr.

Ali na casa da Avenida Paraná tiveram dois filhos, uma menina e um menino, até que construíram a casa da Rua Rio Verde, no familiar bairro do Carmo, onde tiveram mais três filhos, mais um menino e mais duas meninas.

Belo Horizonte cresceu, mudou, e hoje, as duas casas não existem mais. A da Rua Rio Verde virou um prédio que leva o nome de Residencial Villas. A da Avenida Paraná, essa virou crônica.

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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