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A água suja do banho e o STF

“Ô STF, preste atenção! A sua toga vai virar pano de chão! (…) Ô STF, preste atenção! A sua toga vai virar pano de chão!”

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Algo estranho acontece no Brasil. Dentre tantas coisas ruins, ao mesmo tempo em que inusitadas, é preciso olhar com atenção, aperfeiçoar os sentidos da observação, ver além do óbvio, treinar o olho para enxergar alguns movimentos que se esboçam, tímidos, esgueirando os portais. Como em um jogo de xadrez, é preciso antecipar os próximos movimentos, ficar atento aos oponentes, suas táticas e estratégias, às ciladas que podem, potencialmente, tornarem-se xeques-mate. Ao invés de “o rei está morto”, o próximo passo parece ser “o STF está morto”, pois é esse o sentimento que me invade ao assistir, estupefata, os recentes movimentos que se delineiam contra a Suprema Corte no Brasil, no sentido do desmoronamento irretornável de todas as instituições que devem oferecer o contraponto aos poderes bolsonaristas.

Com isso, quero chamar a atenção não para o fato de que a crítica ao STF deve ser silenciada, ao contrário, é desejável que críticas comprometidas se proliferem e se multipliquem! É claro que a Corte Constitucional brasileira deve ser aperfeiçoada, ela possui muitas e graves falhas, que devem ser problematizadas nos seus espaços adequados, pois é justamente o movimento de perfectibilidades que buscamos sem descanso no direito, o qual motiva as discussões em direção aos aprimoramentos, cada vez mais constantes, dos seus aparelhos organizacionais, seja na academia, nos espaços de debate das universidades, nos portais especializados, dentre outros.

Certo dia, um amigo e professor,[1] ao assistir o meu furor em relação às falhas do Supremo e aos problemas do judiciário, disse-me: “É preciso tomar o cuidado para não jogar fora o bebê junto com a água suja do banho”. A voz próxima de meu amigo ecoa neste instante de forma profética e, junto com ele, todos aqueles que me aportaram essa sábia reflexão tão antiga que, embora no presente, veio na verdade de longe, provavelmente, da idade média, quiçá, ainda, de outros tempos e lugares. Desde então, tenho procurado silenciar meu coração, chocar a cabeça em direção antes das alternativas, ao invés dos destroços e das ruínas.

Tal frase nunca fez tanto sentido para o direito, já que, assim como o bebê, não devemos rejeitar algo bom devido à contaminação, mas sim, saber descontaminar, sem jamais eliminar aquilo que está no cerne da descontaminação.

Se o poder judiciário ou a Suprema Corte devem ser repensados, é preciso que, com a crítica, não se afaste para sempre a possibilidade do próprio pensamento, por perda total do objeto.

Se é ruim com o STF, pior sem ele, especialmente em novos tempos que soam como diálogos de ouvidos moucos, em que, ao invés das curvas, são as linhas retas que falam. Tudo fica tão polarizado e maniqueísta, como se fosse o bem contra o mal, cenário no qual as matizes intermediárias são afastadas e o STF se torna o novo arqui-inimigo.

“O Brasil contra o STF?”

Recentemente, foi noticiado que alguns patos em Londrina organizaram, sob a liderança do MBL, um ato chamado “Fora STF” e pró-Lava Jato, que defendia algumas bandeiras, tais como “Lula continua na prisão”, “PEC Anticrime sim”, dentre outras pautas análogas e igualmente temerosas.[2] O MBL também anunciou que continuará organizando manifestações semelhantes, em suas palavras, “apartidárias”, em outros locais no Paraná e, ainda, em outros estados, contra a “ditadura da toga”, o que indica, possivelmente, um redesenho por parte dos manifestantes em relação aos opositores do poder, usando o STF como a última cartada do desmonte institucional que assola há tanto o nosso país.

Diante disso, não causa espanto a ocasião recente em que os manifestantes (pato)lógicos, na Praça dos Três Poderes, em Brasília, ao som da marcha fúnebre, enterraram simbolicamente os novos inimigos da “Praça”, o Supremo. Os manifestantes, ensandecidos, gritavam repetidamente o seu lema:

“Ô STF, preste atenção! A sua toga vai virar pano de chão! (…) Ô STF, preste atenção! A sua toga vai virar pano de chão!”.

Sob o lema da defesa da “Lava Jato” e aos pedidos de nova forma de lavagem, agora, da “Lava Toga”, está se esboçando mais nitidamente a luta interinstitucional dentro do próprio judiciário, em que a operação Lava Jato é apontada como a única institucionalidade que pode “salvar o Brasil da crise”, como um tipo de supra instituição jurídica e autônoma que se coloca acima da Suprema Corte, fazendo reinar um sentimento geral “antissistema”, agora dentro do direito, estratagema largamente utilizado na eleição de Jair Bolsonaro.

Além das pautas mencionadas, outros pedidos proliferam nessas manifestações, pedindo a revogação da PEC da Bengala – o que daria maior espaço ao governo Bolsonaro no judiciário – e, ainda, o impeachment dos ministros indesejados do STF.

As estratégias de desmonte perpetradas por tais movimentos, organizados em vários estados do Brasil, são bastantes semelhantes às que motivaram o impeachment de Dilma Rousseff, só que, desde a determinação pelo STF, via inquérito 4435, das revesses de competência dos crimes comuns relacionados aos eleitorais, como o caixa 2, que agora serão julgados pela Justiça Eleitoral e não mais pela Justiça Federal, o novo inimigo da vez é justamente a Suprema Corte do Judiciário.

Somados à apresentação do projeto de lei complementar 38/2019, que busca reverter politicamente a mencionada decisão judicial, assinado e apresentado pelo Ministro da Justiça, Sérgio Fernando Moro, curiosamente, o membro mais “messiânico” e emblemático da Lava Jato, os desdobramentos parecem se dar como a continuidade da queda de braços entre STF e Lava Jato.

Se o novo slogan é “o Brasil contra STF” ou “derrubar os bandidos do STF”, os marketeiros certamente são partidários da Lava Jato, cabendo-nos a seguinte e necessária provocação: qual é esse Brasil que passa a enxergar a mais alta Corte do poder judiciário como a sua maior inimiga? Aliás, de qual ponto de vista ou visão de mundo parte a ideia, sempre totalitária, do Brasil como unidade uniforme, mas que representa ínfima parte da população?

O STF alimentou o monstro?

Luiz Fux em lançamento de livro. Foto: Felipe Sampaio/STF

Se houve um tempo em que, nos universos possíveis, o STF e o TSE se fizeram ausentes, certamente foi contra a proliferação das fake news nas últimas eleições, monstro que cada vez mais mostra sua face e assola novos desafetos, tornando-se, dia a dia, mais perigoso. Outros perigosos enlaces aconteceram quando o Supremo Tribunal Federal afirmou que deveria atender aos “anseios populares”, repetindo a ideia de “povo” como unidade totalizadora – figura usada extensamente por Jair Bolsonaro.

A mais alta Corte do poder judiciário perdeu, por diversas vezes, as chances de desempenhar o papel reservado ao estado da arte do direito: ser contrafático, atuar mesmo contra os anseios da população, mesmo contra as maiorias politicamente representadas. É esse o antídoto negado tantas vezes pelo Supremo, ao não permitir ao direito ocupar o seu legítimo papel.

A permissiva por parte da Suprema Corte continuará a ressoar os seus acordes – vide, recentemente, o conflito envolvendo Procuradoria Geral da República e Supremo Tribunal Federal, que instaurou inquérito contra fake news, cometendo novos e sucessivos erros, que passaram pela nomeação, via canetada, de Alexandre de Moraes por Dias Toffoli, pela usurpação de competência da PGR e, ainda, pelo apelo à censura, decisão inconsistente que, logo em seguida, foi revogada.

Se a Constituição está mesmo em queda,[3] é preciso, certamente, antes de tudo, matar o seu guardião, afastá-lo de uma vez por todas. Nós, os pensadores do direito, temos a obrigação, mais do que nunca, de proteger as suas instituições, por mais imperfeitas que elas sejam. Se o poder judiciário desempenhou mesmo um forte papel no avanço do conservadorismo,[4] agora – independentemente de nossas desavenças ou discordâncias – cabe-nos fazer o movimento contrário e defender o direito, defender o Supremo, não importa quão suja esteja a sua água do banho.

Foto: Rosinei Coutinho


[1] Meus agradecimentos ao Stelio Marras, a quem dedico as reflexões desta coluna.
[2] Conforme veiculado no portal Folha de Londrina, em 16-03-2019. Disponível em: <https://www.folhadelondrina.com.br/cidades/londrina-tera-manifestacao-contra-o-stf-neste-domingo-1028890.html>. Acesso em: 20 abr. 2019.
[3] Cf. SOUZA, Ana Paula. A queda Constituição. CartaCapital, 10 de jan. 2019. Disponível em: <https://www.cartacapital.com.br/justica/a-queda-da-constituicao/>. Acesso em: 26 de mar. 2019.
[4] Cf. SOUZA, Ana Paula Lemes de. No meio de tudo, o judiciário. CartaCapital, 6 de dez. 2018. Disponível em: <https://www.cartacapital.com.br/justica/no-meio-de-tudo-o-judiciario/>. Acesso em: 20 de abr. 2019.

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