Justiça

No meio de tudo, o Judiciário

O Poder Judiciário – que se autorregula – juntou-se ao baile dos mascarados! Como se não bastasse assumir um passo na dança, ainda quis fazê-lo como mestre-sala

Dias Toffoli, presidente do STF em reunião com presidentes dos Tribunais de Justiça de todo o país. (Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil).
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Era o baile dos mascarados. Os corações estavam em polvorosa no pulsante salão de festas. Em meio a muitos burburinhos, pés se esbarravam, conversas entrecortadas, saias arrastadas, tropeços e cotoveladas. Mas a orquestra continuava impassível, como se não percebesse a estranha movimentação barroca, como se o violino não soasse sua nota em fino agudo fora do ritmo.

Esse era o cenário no Brasil com o golpe de Estado: um teatro repetido ao menos desde o Brasil colônia. A dança contínua dos corpos experimentava a cênica que perseverou e se aprofundou no teatro dos horrores, com personagens do escárnio, enquanto alguma nota fora do acorde assombrou os temperos. Longe do arranjo, não se soube qual era o compasso ferido. Tudo era a fétida continuidade do personalismo, clientelismo, patrimonialismo, colonialismo e patriarcado republicano, com risos de zombaria. A Pátria Amada ainda era Pater, mas, agora, vestindo fantasias de neutralidade. Mas nem tudo era o mesmo: um novo ator foi descoberto nesse intervalo de tempo, um ator assim cinza e morno, que estava sob sombras, um personagem secundário, mas que, em breve, deixaria de ser coadjuvante para assumir o papel de estrela principal.

And the Oscar goes to… Sob os fracos lampejos, aos poucos, a toga foi ganhando nítidos contornos, enquanto, do escuro, as mãos vacilantes pegavam o troféu.

Para auxiliar na compreensão da ascensão e ressignificação dessa figura disforme, que resume essa nova forma de poder e de controle, pedimos socorros metafóricos ao conto A Máscara da Morte Escarlate, de Edgar Allan Poe. A nobre casta da Magistratura, fidalga representante do órgão decisório do judiciário, assume contornos do poder moderador, aquele que está acima do bem e do mal. Ocupa o espaço do “neutro”, no linguajar atual, do Poder Sem Partido – PSP, o grande senhor da Verdade. Só que esse poder moderador nunca é moderado e o salto pisa forte sobre o sangue recém-derramado daqueles que, com suas forças e suores, são mantidos pelas políticas e engrenagens da desigualdade a retroalimentar esse sistema.

No famoso conto de Poe, a morte estava assombrando o reinado do Príncipe Próspero, que não se intimidou com o terror que se espalhava no reino. No Brasil contemporâneo, a morte escarlate soa como a súbita tomada de assalto no berçário da democracia e o avanço cancerígeno dos micro e macrofascismos na ainda colonial Terra Brasilis, onde os corpos de uns valem mais do que de outros.

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Em Poe, o Príncipe Próspero juntou amigos sadios, músicos, dançarinos e outros artistas, deixando a morte e a miséria da morte escarlate matarem os seus súditos para além dos muros. Nesse palco construído, hermeticamente fechados em privilégio, os amigos do Reino se acharam tão seguros que, trancafiados e protegidos, esconderam as chaves. Dentro do palácio, música, bagunça, vinho e festividades e, fora dele, a morte escarlate.

Após alguns meses de fina calmaria palacial, o Príncipe Próspero promoveu um grande baile de máscaras, o maior deles, enquanto, no além dos muros, a morte se agravava, tomando cada vez mais vidas nuas. Indiferente a tal situação, entendeu que havia muito a comemorar – a noite prometia luxúria e divertimento! – pois, dentro do palácio, não houve uma morte sequer, enquanto a doença derrubava um a um dos que não puderam ser protegidos, por um tipo de genocídio omissivo – afinal, diria Foucault[1] – a política é a continuação da guerra, só que por outros meios.

Contudo, durante o baile, aparece uma figura mascarada, antes despercebida, mas que encarnava a Morte Escarlate. O Príncipe Próspero, ao notar a sua presença, grita aos amigos da corte que deveriam tirar a máscara, para que a pessoa fosse enforcada no alto dos muros, tão logo amanhecesse. Mas um temor se espalhou entre os convivas do Príncipe que, diante da figura imponente, não ousaram se aproximar na multidão rouca. Tão fortemente e firmemente se dava o avançar de seus passos, que ninguém se sentiu capaz de detê-la. Então, o próprio Príncipe, cercado de raro momento de coragem e de posse de um punhal, avança sobre a cadavérica figura, tombando morto no chão. E eis que, na selvageria, muitos se lançaram sobre a figura ereta em polvorosa, tombando um a um, surpreendidos pelo fato de que, por baixo da máscara e da mortalha, nada existia. A Morte Escarlate os havia encontrado.

Há algo de podre na República Brasileira – diria Hamlet. Aqui no Brasil, o beijo da morte escarlate veste toga.

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O Judiciário é o irmão invejoso que quer tirar o tapete. Por baixo de sua veste, não existe um personagem específico, mas sim a repetitiva cênica com protagonistas e coadjuvantes. Seu beijo mortífero se dá quando o STF assume o papel de ator político da corte, interferindo no processo político como iluminista, com sombras fétidas de caça às bruxas[2]. Nesse jogo, não há vencedores, a não ser os momentâneos ou os enganados: todos perdem. Mesmos aqueles que, a princípio, beneficiam-se do desequilíbrio.

Alguém assassinou a nossa prematura democracia… A primeira filha dessa República velha, que, de tão velha, nasceu assim frágil, prematura e fraca, mal dando os primeiros suspiros, foi tomada de assalto pela Morte Escarlate. A democracia foi exterminada do Reino, mas ninguém notou, ninguém viu. Tudo porque o poder Judiciário – que se autorregula – juntou-se ao baile dos mascarados! Como se não bastasse assumir um passo na dança, ainda quis fazê-lo como mestre-sala.

Podemos perceber quando Fux, em época de eleições, em meio à guerra de liminares para decidir se o ex-Presidente Luiz Inacio Lula da Silva poderia ou não dar entrevista da prisão, declara que juízes devem decidir conforme expectativa da população e, ainda, no mesmo discurso, menciona que a Constituição é do povo e de Deus, em época de preocupante invasão da religião nos discursos da política e do direito; quando, na Suspensão de Liminar 1.175 dada na Reclamação 32.035, se conhece de pedido de partido político – ente privado – para cassar decisão monocrática que autorizava a mencionada entrevista, em figura jurídica completamente anômala, com nítido fim de censura e interferência em resultado eleitoral; quando, em surto psicótico de moralidade tecnológica, na ADPF 541, o STF cancela títulos eleitorais de cerca de 5,5 milhões de eleitores que não realizaram cadastramento biométrico, em plena corrida presidencial. É quando uma juíza eleitoral manda retirar bandeira antifascista do prédio da UFF com os dizeres: “Antifascismo”, alegando perigo de dano e prejuízo diário à candidatura de Jair Bolsonaro, a semelhança de George Orwell, com a novilíngua e todo um vocábulo proibido; quando, em ondas de várias censuras às universidades públicas do Brasil, uma juíza da 30° zona eleitoral de Belo Horizonte determina que se retire do ar nota da UFSJ, defendendo a democracia e a universidade pública; quando o mestre palaciano do pseudocombate à corrupção se junta à corte dos corruptos, abandonando seu traje e assumindo seu verdadeiro viés político, mas escorando-se em novo pseudo: o pseudotecnicismo da trupe bolsonarista que chega ao poder. Não restam dúvidas: a nova ditadura é togada. É a Magistratura que patrocina a trotes o avanço dos neofascismos.

No meio dessas barbáries fétidas, de frágeis e cotidianos assassinatos, estava o Poder Judiciário, que mal foi notado no baile dos mascarados, e, do seu lado, jaz um cadáver putrefato. De figura amorfa, tornou-se protagonista, de poder moderador, tornou-se o assassino, mas não há figura capaz de julgá-lo. Há algo de fétido no reino do STF – repetiria Hamlet. A morte da democracia pisa forte como Morte Escarlate, mas não há ninguém capaz de contê-la…

Ana Paula Lemes de Souza é professora, advogada, escritora, roteirista e pesquisadora. Mestra em Direito pela Faculdade de Direito do Sul de Minas (FDSM). Membro integrante do Grupo de Pesquisa Margens do Direito. E-mail: <[email protected]

[1] FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade. Tradução de Maria Ermantina Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 22.
[2] Agradeço ao Barroso por essa preciosa figura de linguagem – e de linhagem! Em outro momento, falarei mais profundamente sobre ela.

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