Roberto Amaral

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Cientista político, ex-ministro da Ciência e Tecnologia e ex-presidente do PSB. Autor de História do presente- conciliação, desigualdade e desafios (Editora Expressão Popular e Books Kindle)

Opinião

8 de Janeiro: adeus às ilusões

O que foi mesmo que as instituições fizeram de glorioso senão simplesmente exprobar os crimes contra palácios, encerrada a injúria? 

Ato no Congresso Nacional sobre o 8 de Janeiro. Foto: Sergio Lima/AFP
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Os atos oficiais promovidos para registrar o repúdio nacional à intentona de 8 de Janeiro de 2023 – cujos planejadores, operadores e financiadores seguem em sua maior parte impunes, muitos protegidos pela imunidade da farda – consumiram-se em louvação às “instituições”, glorificadas como responsáveis pela preservação do que chamamos de democracia.

Logo elas, que tanto atentaram contra o regime e a ordem constitucional nesses sofridos 134 anos de uma frágil República outorgada ao povo por um golpe de Estado. Logo elas que sempre estiveram a serviço dos interesses do grande capital, por natureza avesso a todo impulso democratizante. São elas, hoje, borrado o passado, apresentadas como as heroínas do contrapelo ao 8 de Janeiro, de que esteve ausente, como  sempre, o povo, que a tudo assistiu pela televisão, sem entender o que ocorria.

O povo soube da depredação dos edifícios símbolo da República, mas não lhe foi dito que aquela inusitada movimentação de gente – uns fardados, outros fantasiados de verde e amarelo – consistia em um golpe de Estado em andamento, uma intentona fascista muito mais poderosa que a de 1938,  e assim muito mais ameaçadora, anunciando desdobramentos de contornos inimagináveis. Estavam à vista as marionetes, mas da luz do sol se protegiam os conspiradores que de longe controlavam os cordéis. O que se pode dizer é que marchávamos, naquele momento, para uma ditadura.

Nem as “instituições” da República, nem o governo, cuidaram de advertir o País para o significado real das arruaças, nem os partidos do campo progressista cuidaram de advertir e orientar seus segmentos organizados, nem o movimento sindical se fez ouvir a respeito. Mas nenhum mortal que houvesse acompanhado a emergência do bolsonarismo poderia ignorar que a serpente continuava viva, e sua peçonha mais viva e maligna do que nunca. Naquele então como agora, quando o cantochão liberal da “pacificação nacional” – sempre invocado quando a direita perde – é a chave para a impunidade dos criminosos, felizmente rechachada pelo presidente Lula no tom devido.

Ninguém ousou furar o “véu da fantasia”: nenhuma informação sobre o grave quadro de uma real insurreição foi prestada ao País; nenhuma declaração do governo se ouviu, senão quando a calmaria se impôs, e os “poderes” confraternizaram. Mesmo assim silenciaram os partidos. O discurso político terminou por ser construído pelas imagens da TV Globo.

Continuamos nos satisfazendo com as aparências. Que amanhã não choremos quando das cinzas levantarem labaredas, pois o inimigo está sempre à espreita. A esquerda deve ao País uma avaliação do processo vivido, e ainda não findo, até porque a história não se compõe de vasos estanques. Conhecer este passado imediato é a melhor forma de evitar sua reincidência. De outra parte, é preciso revisitar a proclamada resistência das “instituições”.

Vencido nas urnas, Jair Bolsonaro teve seu retorno frustrado pelo encontro de dois intervenientes que não estavam na planilha de seus engenheiros; o primeiro deles, a ausência da adesão popular ao assalto. Esta era necessária para convulsionar o País, com o que os golpistas teriam justificativa, artificial embora, para a aplicação da GLO, o ponto central de todas as articulações. Outra asa quebrada foi a disfunção interna, a ausência de comando no levante. Entregar todas as fichas ao voluntarismo das massas raramente dá certo. Sabe-se como terminou a tentativa de golpe de Jânio Quadros em 1961: com o ex-presidente embarcado em um cargueiro para longa vilegiatura na Europa.

No ápice da crise, o ministro da Defesa almoçava num restaurante em Brasília, e o general chefe da GSI, visivelmente aturdido, tropeçava ao caminhar por entre os escombros do Palácio do Planalto, que lhe cabia proteger. Quando intervém, provocado pelo ministro da Justiça, Flávio Dino, a quem se deveu o mínimo de reação governamental, o ministro da Defesa propõe a aplicação da GLO, o consabido instrumento constitucional que, pela via da intervenção militar por ele ensejada, consolidaria o golpe fascista em marcha.

Naquele 8 de Janeiro a Presidência da República ainda não havia reunido forças para dispersar os vândalos acantonados em frente ao quartel-general do Exército. É fácil imaginar qual seria a reação dos mesmos oficiais se, em vez de subversivos de extrema-direita, os acampados fossem líderes sindicais, estudantes, trabalhadores sem terra ou indígenas reclamando suas terras griladas. Na segurança dos amotinados da direita xucra revelou-se oficial exemplar o general Júlio César de Arruda, então comandante do Exército, obstinado em impedir a prisão dos golpistas acampados no quartel-general da Força em Brasília.

Não foi muito distinta a reação das “instituições”.

O ministro da Justiça, diante do cenário de absoluta inação das instituições, telefona ao presidente da República, então em Araraquara, e dita-lhe: “Presidente: não há comando”. O ministro poupou seu chefe, ao esquivar-se de dizer que tampouco havia a mínima ação do elemento militar e das forças policiais para proteger os bens públicos e debelar o levante. Seu depoimento: “O trajeto [dos delinquentes], de 8 quilômetros, foi acompanhado por agentes de segurança, alguns deles flagrados tomando água de coco e tirando selfies, enquanto o Congresso era invadido ao fundo” (O Globo, 07/01/2024).

O presidente não dispunha de serviço de informação digno de qualquer respeito. Não poderia confiar nos militares que haviam tentado impedir sua candidatura, sua eleição, sua posse e, afinal, seu governo. Não podia confiar na Abin, e soube-se que não podia confiar no GSI. Um quadro claro de insegurança.

Narra o presidente: “Antes de viajar para São Paulo conversei com o ministro Múcio [Defesa] e ele disse que as pessoas iam sair [dos acampamentos]. Viajei tranquilo. Não me passava pela cabeça ser pego de surpresa com aquela manifestação. Sinceramente, não tive as informações corretas sobre a possibilidade de acontecer aquilo. Tinha a informação de que os acampamentos estavam acabando, mas depois soube que, no sábado, começou a chegar gente de ônibus. Não imaginei que pudessem chegar à invasão” (O Globo, 07/01/2024). Ora, “aquilo” a que se refere Lula era quase tudo: a senha para o golpe. As tropas seriam chamadas para “restabelecer a ordem” e ao fim e ao cabo assim voltariam ao poder.

Qual o discurso das festividades glorificantes das “instituições”, senão o de que devemos esquecer o que houve e não temer o amanhã, pois nossas “instituições”, as instituições da classe dominante, herdeiras da casa-grande, estariam de pé em defesa da democracia? Mas, em resumo, o que foi mesmo que elas fizeram de glorioso senão simplesmente exprobar os crimes contra palácios, encerrada a injúria? 

A defesa do povo, exilado em seu país, não pode ser delegada às “instituições” da classe dominante, ora celebradas como guardiãs de uma democracia que nunca hesitaram em trair. O que essa narrativa festiva almeja é a tutela ideológica, a falsa tranquilidade, a paz de cemitério que esconde os conflitos de classe para que tudo permaneça como está. E não nos deve entusiasmar as louvações à “ordem institucional”, nem confiar nas “instituições”  como pretensas guardiãs da democracia que tanto traíram. Seria como entregar a raposa pantagruélica a guarda do galinheiro.

A luta para valer contra a extrema-direita e o fascismo (qualquer que seja seu nome de fantasia) não se conforma nos jogos da institucionalidade: no seu terreno é que a Lava Jato operou seus muitos crimes, entre os quais é sempre relevante pôr de manifesto a condenação e a prisão de Lula, encarcerado numa enxovia por 580 dias. Tudo sagrado e consagrado pelo STF , este mesmo que aí está.

A história ensina que o locus da resistência é a luta social, no enfrentamento político-ideológico, que nosso governo (acuado como um gato escaldado) teme, por erro tático, e as esquerdas evitam, por falta de visão estratégica. O recuo político pode até tornar menos dispendiosa e menos dramática a conclusão do terceiro mandato. Mas atrasará por anos não conhecidos o fundamental de nossa luta, que é o progresso das reformas sociais, desacreditando nossas forças.

Com o País conformado, como querem os liberais e os conservadores, como exige a classe dominante e admitem setores atrasados do nosso governo, estará aberto à direita, com nossa indesculpável conivência, o caminho sem retorno para o fascismo.

* Com a colaboração de Pedro Amaral

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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