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Não em nome deles
Parte do eleitorado progressista volta-se contra o apoio incondicional de Biden a Netanyahu


Na tarde da quarta-feira 25, centenas de ativistas liberais norte-americanos judeus organizaram protestos. Ocuparam os gabinetes de líderes democratas no Capitólio, incluído aquele do senador ultraprogressista Bernie Sanders, para exigir um cessar-fogo na guerra cada vez mais intensa entre Israel e o Hamas.
Enquanto os manifestantes cantavam em hebraico e oravam pela paz, o plenário da Câmara dos Deputados retomou a atividade legislativa pela primeira vez em semanas após a eleição de um novo presidente da casa, o republicano Mike Johnson. Em seu primeiro ato, Johnson apresentou ao plenário uma resolução de solidariedade dos Estados Unidos a Israel depois que o Hamas invadiu cidades israelenses, matou 1,4 mil e fez mais de 200 reféns, entre eles cidadãos dos EUA. Quase todos os deputados democratas votaram a favor da medida, exceto uma minoria resoluta que discordou, citando seu fracasso em abordar os milhares de palestinos mortos na campanha de bombardeio retaliatório de Israel em Gaza.
O descontentamento demonstrado em Washington foi uma prova da raiva crescente entre a esquerda democrata pela reação do presidente Joe Biden e dos líderes partidários à guerra de Israel em Gaza. Enquanto muitos progressistas se afastaram da Casa Branca devido à posição firmemente pró-Israel, surgiram, porém, divisões dentro da própria esquerda, sinal das duras emoções geradas pelo conflito.
As cenas na Câmara não foram os únicos sinais de descontentamento, à medida que a política norte-americana – e a sociedade civil como um todo – fica cada vez mais perturbada pela resposta de Israel ao ataque do Hamas em 7 de outubro. Naquela mesma tarde, Biden foi questionado durante entrevista coletiva na Casa Branca sobre o aumento do número de mortos palestinos. O presidente respondeu que “não tinha confiança” na contagem de mortes fornecida pelo Ministério da Saúde de Gaza. “Tenho certeza de que inocentes morreram, e esse é o preço de se travar uma guerra”, disse Biden, em comentários que o Conselho de Relações Americano-Islâmicas descreveu como “chocantes e desumanizantes”.
“Quantas mortes de palestinos são demais?”, pergunta Eva Borgwardt, do grupo de judeus pelo cessar-fogo
Na internet, muitos progressistas ferveram, acusando Biden de permitir a violência contra os palestinos e prevendo que ele pagará um preço no próximo ano com os eleitores muçulmanos e árabes-americanos, que surgiram como um importante eleitorado democrata nas últimas eleições. “A Casa Branca e muitos integrantes do governo dos Estados Unidos são claros, como deveriam, de que mil israelenses mortos são demais”, disse Eva Borgwardt, diretora política do IfNotNow, grupo judeu progressista que lidera muitas manifestações em Washington, incluindo aquela no Capitólio na quarta 25. “Nossa pergunta para eles é: quantas mortes de palestinos são demais?”
À medida que Israel intensifica o bombardeio a Gaza, Biden enfrenta uma resistência extraordinária e crescente da ala esquerda de seu partido, especialmente de eleitores jovens e de eleitores negros, devido ao seu firme apoio a Israel. Eles organizaram manifestações, escreveram cartas abertas e até apresentaram demissões em protesto contra a forma como o governo Biden lidou com a guerra. Segundo eles, isso ameaça a posição do presidente no país e possivelmente suas chances de se reeleger no próximo ano. Uma pesquisa Gallup divulgada na quinta-feira 26 descobriu que o índice de aprovação de Biden entre os democratas despencou 11 pontos porcentuais em um mês, para um mínimo recorde de 75%. Segundo o estudo, a queda foi alimentada pela consternação com o apoio a Israel. E uma enquete divulgada recentemente pela empresa progressista Data for Progress concluiu que 66% dos prováveis eleitores norte-americanos concordam forte ou parcialmente que os Estados Unidos deveriam pedir um cessar-fogo. Ainda assim, a Casa Branca rejeitou firmemente esses apelos, que Karine Jean-Pierre, secretária de imprensa, inicialmente descreveu como “repugnantes” e “vergonhosos” logo após o ataque do Hamas. A retórica do governo evoluiu desde então, com o porta-voz da Casa Branca, John Kirby, a dizer que um cessar-fogo nesta fase “só beneficiaria o Hamas”. Questionado se os Estados Unidos apoiariam um cessar-fogo, Biden disse: “Deveríamos libertar esses reféns, e então poderemos conversar”.
A pressão tem aumentado no Congresso, onde 18 deputados democratas, todos progressistas negros, aderiram a uma resolução a favor de “uma desescalada imediata e um cessar-fogo em Israel e na Palestina ocupada”. No Capitólio, um grupo de funcionários judeus e muçulmanos escreveu uma carta aberta anônima a seus chefes, na qual apelam de forma semelhante a um “cessar-fogo imediato” entre Israel e o Hamas. Citaram o aumento do número de mortos em Gaza e o aumento do antissemitismo e dos sentimentos antimuçulmanos e antipalestinos nos EUA.
Até agora nenhum senador apoiou essa medida. Elizabeth Warren, Sanders e vários outros democratas apelaram a uma “pausa humanitária” para permitir o fluxo de ajuda, alimentos e medicamentos para Gaza, depois de Israel ter ordenado um “cerco completo” ao território. Isso faz eco à posição do secretário de Estado, Antony Blinken, segundo quem a proteção da vida civil “deve ser considerada”. A resistência de Sanders a apoiar um cessar-fogo decepcionou até mesmo alguns de seus seguidores mais leais, indicando como o debate sobre Israel na esquerda se tornou emocionalmente tenso.
Intimidação? Um dos porta-aviões enviados por Washington para dar guarida à ofensiva israelense – Imagem: Arquivo/OTAN
Embora falte um ano para as eleições presidenciais de 2024, muitos progressistas, especialmente ativistas mais jovens, ameaçaram retirar o apoio a Biden, enquanto árabes e muçulmanos norte-americanos expressam profundo alarme sobre as ações e a retórica do presidente. A congressista Rashida Tlaib, de Michigan, única palestino-americana no Congresso, acusou Biden de ser cúmplice da guerra mortal. “Vamos lembrar sua posição”, escreveu em uma rede social, marcando o presidente.
Em sua conferência de imprensa na quarta-feira 25, Biden conclamou Israel a ser “incrivelmente cuidadoso em garantir que investigará as pessoas que propagam esta guerra”. Para muitos na esquerda, o aviso foi enterrado por trás de seus comentários que lançaram dúvidas sobre a escalada das mortes na guerra em Gaza. “Como muitos democratas progressistas, aplaudi e fiquei agradavelmente surpreso com as ações do presidente Biden em relação ao clima e à economia”, escreveu Waleed Shahid, estrategista progressista que acompanha a resposta do governo à guerra, na plataforma X. “Mas ele ultrapassou os limites morais com quase todos os jovens eleitores muçulmanos, árabes e antiguerra que conheço.”
Até mesmo uma ligeira erosão no apoio poderia significar perigo para Biden, que lidava com o entusiasmo reduzido entre os eleitores, especialmente os jovens. Numa pesquisa realizada após o ataque do Hamas, a Quinnipiac concluiu que pouco mais de metade dos eleitores com menos de 35 anos diz reprovar o envio de armas e apoio militar pelos Estados Unidos a Israel na sequência do ataque do Hamas. Em contraste, quase 6 em cada 10 eleitores com idades entre 35 e 49 anos apoiam o envio de armas para Israel, com os grupos etários mais velhos oferecendo aprovação ainda mais forte.
Os aliados de Biden em geral minimizaram as divergências entre as bases do partido. A maioria dos democratas, incluindo os líderes do Congresso, o senador Chuck Schumer e o deputado Hakeem Jeffries, observam, é de fortes apoiadores de Israel e endossam plenamente a forma como o presidente lida com o conflito. Nas próximas semanas, espera-se que suas bancadas apoiem esmagadoramente um pedido da Casa Branca para enviar 14,3 bilhões de dólares para reforçar a segurança de Israel.
A aprovação de Biden entre os eleitores democratas caiu 11 pontos porcentuais
Uma carta a Biden, assinada pela maioria dos deputados democratas, entre eles todos os judeus da bancada e vários liberais, elogia sua “forte liderança durante um momento trágico e perigoso no Oriente Médio”. Elogia ainda o presidente por demonstrar “apoio constante ao nosso aliado Israel num momento de necessidade e horror”, ao mesmo tempo que faz “declarações claras sobre a importância fundamental de garantir que as demandas humanitárias da população civil de Gaza sejam satisfeitas”.
O apoio profundo e duradouro a Israel entre os legisladores democratas obscurece uma mudança dos eleitores do partido, especialmente entre aqueles que atingiram a maioridade nos Estados Unidos depois dos atentados de 11 de setembro de 2011. Uma pesquisa Gallup realizada em março revelou pela primeira vez que um número maior de democratas afirma simpatizar mais com os palestinos do que com os israelenses.
Os republicanos têm procurado explorar essas divisões numa tentativa de apresentar o Partido Democrata como anti-Israel, versão que, segundo os progressistas, a cobertura midiática tem promovido injustamente. Muitos democratas liberais, incluída a congressista Alexandria Ocasio-Cortez, de Nova York, denunciaram vigorosamente os sentimentos pró-Hamas ou antissemitas expressos pela ala ativista do partido. Ao mesmo tempo, afirmam que existe uma duplicidade de critérios na forma como as autoridades eleitas falam sobre os palestinos.
Apontam comentários de republicanos como o senador Lindsey Graham, da Carolina do Sul, que descreveu o conflito como uma “guerra religiosa” e disse que os israelitas deveriam “fazer o que for preciso para se defenderem. Arrasem o lugar”. O senador republicano Tom Cotton, do Arkansas, fez uma observação semelhante em entrevista: “No que me diz respeito, Israel pode revolver os escombros em Gaza”.
Divisão. O senador Sanders silencia diante da proposta de cessar-fogo. A deputada Ocasio-Cortez reclama da desumanização dos palestinos – Imagem: Gage Skidmore e Gil Ferreira/SRI
“Há muito que considero chocante o fato de se ignorar e marginalizar os palestinos na Câmara dos Deputados dos EUA, a humanidade das populações palestinas, nos cinco anos em que estou no Congresso”, disse Ocasio-Cortez recentemente na MSNBC.
Com as expectativas de que uma invasão israelense em grande escala do território sitiado seja iminente, as exigências de um cessar-fogo imediato tornaram-se mais altas e mais urgentes. Numa declaração na sexta-feira 27, em meio à intensificação dos bombardeios e a um blecaute nas comunicações em Gaza, Alexandra Rojas, diretora-executiva do grupo progressista Justice Democrats, implorou ao presidente que agisse agora para evitar uma invasão terrestre que “garantiria outros milhares de vítimas civis, nos aproximaria de um conflito regional total no Oriente Médio e empurraria os Estados Unidos em mais uma guerra sem fim”.
De olho no futuro, os progressistas dizem que a administração deve estar preparada para remodelar drasticamente a abordagem de décadas de Washington em relação a Israel e à Palestina. “Se quisermos adotar uma política consistente com os direitos humanos, não podemos estar sempre concentrados em apoiar os direitos e a segurança de um dos lados”, disse Matt Duss, ex-conselheiro de política externa de Sanders. “A situação atual é claramente insustentável.” •
Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves.
Publicado na edição n° 1284 de CartaCapital, em 08 de novembro de 2023.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Não em nome deles ‘
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