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‘O pior de Trump sempre foi o mau exemplo’, diz o ex-chanceler Celso Amorim

Mundo pode sair da UTI sem o republicano, mas enfermidade do obscurantismo persiste, avalia ex-chanceler

Celso Amorim
Celso Amorim, ex-chanceler do governo Lula. Foto: Wanezza Soares Trump maculou a democracia americana, lamenta ex-chanceler. Foto: Wanezza Soares
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“Para o Brasil, o pior de Donald Trump talvez seja o mau exemplo”, afirmou o ex-chanceler Celso Amorim quatro anos atrás, ao analisar a surpreendente vitória do republicano sobre a democrata Hillary Clinton, em entrevista a CartaCapital. A declaração converteu-se em uma espécie de profecia. Passados dois anos, os brasileiros elegeram Jair Bolsonaro, que buscou mimetizar o ídolo Trump em tudo, do desprezo às minorias à negação da pandemia do coronavírus, que matou mais de 230 mil norte-americanos e 160 mil brasileiros até o início de novembro.

“Com a eventual saída de Trump, o mundo pode sair da UTI, mas continuamos com uma enfermidade grave. É surpreendente que essa direita tão extremada tenha obtido tantos votos, em meio à crise econômica e uma pandemia tão avassaladora. É preocupante, realmente preocupante”, comenta Amorim, quando a apuração das eleições americanas ainda não havia sido concluída, mas projeções da mídia local acenavam para a vitória do democrata.

“Com Biden, talvez seja possível diminuir a força dessa onda obscurantista. Tudo depende de sua capacidade de fazer um bom governo e gerar empregos”.

Confira, a seguir, os principais trechos da entrevista concedida por Amorim:

CartaCapital: O senhor imaginava uma disputa tão acirrada?

Celso Amorim: Eu sabia que aquele cenário captado pelas pesquisas, de oito a dez pontos percentuais de vantagem para o Biden, não iria se confirmar no voto popular. Só não imaginava que o resultado seria tão apertado como foi.

CC: Por que os institutos de pesquisa têm tanta dificuldade de prever o resultado das eleições nos EUA?

CA: Toda eleição pode ter surpresas. Nessa reta final, a militância pró-Trump foi muito forte. Houve comparecimento recorde às urnas, sobretudo em redutos rurais, cidades do interior. Existe, ainda, o fenômeno do voto envergonhado. Os conservadores menos extremados preferem não admitir em público que privilegiam seus próprios interesses, não estão muito preocupados com a situação dos pobres, dos negros, das mulheres. Além disso, o sistema é mesmo muito complicado. Nem sempre a vitória no voto popular corresponde ao resultado do colégio eleitoral. Imagine se isso acontecesse na Bolívia ou na Venezuela. No dia seguinte, haveria uma resolução da OEA condenando o processo eleitoral, ainda mais se o presidente falasse em fraude (risos).

CC: Pois é, muito antes da apuração dos votos ser concluída, Trump declarou-se vencedor.

CA: Se procurar na CartaCapital de quatro anos atrás, quando o Trump foi eleito, eu já dizia: “o pior é o mau exemplo”. Se na maior democracia do mundo, o presidente se comporta dessa forma, o que esperar de países com menos tradição democrática? Dizer que saiu vitorioso antes do fim da apuração, denunciar a possibilidade de fraude antes mesmo de as urnas serem abertas, tudo isso é um comportamento típico de uma República de Bananas. Não me recordo de algo parecido na história dos EUA. Em 2000, Al Gore chegou a pedir recontagem de votos na Flórida, mas não contestou o resultado final nem colocou em xeque as instituições. Ao judicializar a eleição sem apresentar qualquer indício palpável de fraude, Trump apenas incentiva a divisão da sociedade e a violência. Acompanho política desde os anos 1950, nunca vi outro líder com perfil semelhante. Ele se considera um monarca absolutista. Não pode tudo na prática, mas age como se pudesse. Ele não tenta negociar, não dialoga com o Congresso, não busca soluções na base da conciliação. Continua obcecado e o reflexo, aqui no Brasil, é óbvio.

O apoio do ex-capitão ao republicano ‘é puro fanatismo’. O País só perdeu com isso

CC: O senhor se refere ao “Trump dos Trópicos”, como a mídia estrangeira costuma se referir a Bolsonaro?

CA: Na verdade, é um pouco pior que isso, até porque vivemos em um país mais atrasado. Lá, a mídia não apoia Trump. Aqui, pode não apoiar claramente Bolsonaro, mas também não contesta muito. Não há um questionamento estrutural, como vemos o New York Times fazer em relação ao atual presidente. O jornal não se limitou a publicar um editorial declarando preferência ao Biden, pediu explicitamente para a população não votar em Trump por todo o retrocesso que ele representa.

CC: Bolsonaro fez uma aposta bastante arriscada ao declarar apoio explícito ao Trump, não?

CA: Permita-me corrigi-lo. Aí não tem aposta alguma, é puro fanatismo. O presidente usou uma palavra que nunca se usa ao referir-se a um líder estrangeiro: “lealdade”. Na política internacional, ninguém é leal ao chefe de outro Estado, exceto, talvez, no contexto de guerra. Se bem que Bolsonaro acredita estar em uma guerra, em uma cruzada anticomunista.

CC: O que o Brasil ganhou com essa vassalagem?

CA: Nada, absolutamente nada. Não sei o que o grupo no poder ganhou com isso. Deve ter recebido uma recompensa bem valiosa para usar uma palavra tão pesada como “lealdade”. O País, ao contrário, acumula perdas. Na verdade, só aumentou o déficit comercial do Brasil em relação aos EUA. Enquanto Bolsonaro zerou a tarifa de importação do etanol norte-americano, Trump aumentou a taxação sobre aço brasileiro. Apesar de todos os ataques, a China continua a ser a nossa principal parceira, responsável por cerca de 70% do superávit comercial brasileiro. Vendemos para os chineses mais do que a soma das exportações para os EUA e a União Europeia.

CC: O que representa a vitória de Biden?

CA: Os norte-americanos terão uma sociedade um pouco mais solidária, com mais ênfase na saúde pública, melhor entendimento nas relações raciais, atitude mais progressista em relação às mulheres. De acordo com vários analistas, Biden apresentou o programa mais avançado, do ponto de vista social e econômico, desde Roosevelt. Evidentemente, isso servirá de exemplo para o mundo. Os EUA não têm mais a mesma influência do passado, mas continuam a ser vistos como um paradigma. Imagine se o Biden apresentar um modelo de assistência à saúde mais avançado que o ObamaCare ou se estimular um modelo de desenvolvimento mais sustentável, atento às mudanças climáticas. Todos estarão de olho.

CC: Todos, menos o Brasil, suponho…

CA: Isso também terá um impacto por aqui, na opinião pública, mesmo que o Bolsonaro não queira. Os democratas obviamente não vão ignorar o Brasil, país muito grande, há muito interesse em jogo. Mas essa submissão total será impossível. Na questão do clima, o governo Bolsonaro reagiu às propostas do Biden, por meio de um discurso soberanista, ao estilo “a Amazônia é nossa e a gente faz dela o que quiser”. Claro que o Biden pode moderar seu discurso ambiental, mas ele não deve fugir muito do que prometeu. Como ele vai justificar o apoio à entrada do Brasil na OCDE se a floresta amazônica continuar em chamas? Os choques com o governo brasileiro serão inevitáveis. Imagino que Biden produzirá um efeito semelhante ao de Jimmy Carter, que encampou a defesa dos direitos humanos e constrangeu a ditadura no Brasil.

CC: É uma visão otimista.

CA: Na verdade, também tenho muitas inquietações. Com a eventual saída de Trump, o mundo pode sair da UTI, mas continuamos com uma enfermidade grave. É surpreendente que essa direita tão extremada tenha obtido tantos votos, em meio à crise econômica e uma pandemia avassaladora. É preocupante, realmente preocupante. Com Biden, talvez seja possível diminuir a força dessa onda obscurantista. Tudo depende de sua capacidade de fazer um bom governo e gerar empregos.

CC: Os devaneios de guerra contra a Venezuela também devem se dissipar?

CA: Sim, claro. Em recente entrevista, Thomas Shannon, que foi embaixador no Brasil, previu uma mudança de estilo na atuação de Washington com Biden. Certamente, haverá menos espaço para sanções ou soluções armadas, como Trump cogitou no caso da Venezuela. O secretário de Estado dos EUA chegou a visitar o Brasil para reconhecer o eventual campo de batalha. Os norte-americanos possuem destacamento naval importante no Caribe, que inclusive interceptou remessas de petróleo do Irã para a Venezuela. A Colômbia ainda abriga tropas dos EUA na região onde atua o Exército de Libertação Nacional, perto da fronteira venezuelana. O cerco estava armado.

CC: Até quando os chineses vão aceitar os ataques do governo Bolsonaro, nessa irracional cruzada anticomunista?

CA: Os chineses são muito pragmáticos. Com relação às exportações de soja, para citar um exemplo, há um cenário de dependência mútua. Não existem muitos fornecedores com a capacidade de produção do Brasil. Mesmo assim, os chineses estão comprando mais da Argentina, estão investindo em projetos agrícolas na África. Enquanto Bolsonaro fala bobagem, eles podem não gostar, mas não precisam reagir. Mas, à medida que essa cruzada anticomunista ameaçar projetos estratégicos, como a tecnologia 5G da Huawei, a China certamente vai reavaliar os investimentos no Brasil.

CC: Ninguém em sã consciência desprezaria um parceiro comercial como a China.

CA: Bolsonaro destrói um trabalho diplomático de décadas. A mais antiga parceria estratégica da China é com o Brasil. Essa aproximação começou ainda no governo de Jânio Quadros, tanto que o vice João Goulart estava em Pequim quando o presidente renunciou. Mais tarde, em 1974, o general Ernesto Geisel estabeleceu relações diplomáticas com a República Popular da China, em vez de reconhecer Taiwan. Dez anos depois, o general João Figueiredo visitou Pequim. No governo Sarney, houve uma importante cooperação espacial entre os dois países, um grande projeto de satélite sino-brasileiro. A parceria estratégica foi assinada no governo Itamar Franco, mas é algo que já vinha sendo construído há tempos. À época, o comércio com a China girava em torno de 1 bilhão de dólares por ano. Hoje, o superávit brasileiro é superior a 100 bilhões.

Biden acena para uma liderança de mais diálogo e menos força

CC: Nos últimos tempos, ventos progressistas sopraram na América do Sul. Nesse contexto, o que representa a eleição de Biden para o continente?

CA: Os interesses estruturais dos EUA não vão mudar. Eles continuarão tentando emplacar a sua tecnologia 5G, vão manter a guerra comercial com a China. Mas Biden deve atuar de forma distinta. No caso da Venezuela, imagino que o democrata irá procurar a mediação de governos capazes de construir soluções negociadas, por meio do diálogo. Em vez de recorrer a um aliado agressivo, como é o Brasil de Bolsonaro, é possível que bata à porta da Argentina. Os EUA não vão abrir mão de exercer influência no continente, mas provavelmente farão isso por meio de investimentos, de financiamentos, de uma política bem menos agressiva que a do atual governo.

CC: E o legado deixado por Trump?

CA: Essa eleição explicitou o abalo dos valores democráticos causado por ele. Os EUA tiveram momentos terríveis, como o macarthismo, a Guerra do Vietnã. Mas nunca houve uma ameaça tão óbvia às instituições. Espero que prevaleça o bom senso e acabe logo essa onda obscurantista.

*Texto atualizado às 11h do sábado 07

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