Mundo

Impasse eleitoral pode virar guerra civil na Bolívia

Impasse eleitoral na Bolívia desperta velhas rivalidades e preconceitos e ameaça descambar para uma guerra civil

Cartaz contra Evo Morales usado durante protestos em Santa Cruz, na Bolívia - Foto: Daniel Walker/AFP
Apoie Siga-nos no

A falha mecânica e o pouso forçado do helicóptero que levava o presidente Evo Morales para a inauguração de uma estrada de acesso no interior da Bolívia, na região de Oruro, na segunda-feira 4, aumentaram a tensão dos bolivianos que vivem um clima de hostilidade desde o anúncio do resultado eleitoral com a confirmação da quarta vitória consecutiva do Movimento ao Socialismo.

Sem feridos, o incidente cujas razões serão investigadas pelos órgãos oficiais não freou o ímpeto dos opositores, que no início do conflito defendiam a realização de um segundo turno entre Morales e Carlos Mesa e agora querem a anulação das eleições, além da renúncia do primeiro indígena a governar o país. 

Nem a instalação de uma auditoria liderada pela Organização dos Estados Americanos, que, em parceria com o México e Espanha, entre outros, realiza a recontagem dos votos, conseguiu estabelecer um espaço de negociação entre os envolvidos.

Manifestações contrárias à presença da OEA são realizadas cotidianamente em frente ao local onde trabalham os técnicos na capital La Paz, mas as ameaças mais fortes contra o governo e os principais focos de violência são registrados na capital econômica Santa Cruz, que caminha para duas semanas de bloqueios nos acessos à cidade e a paralisação geral das atividades produtivas.

O impasse reavivou uma disputa colonial entre cambas, descendentes de espanhóis, e collas, indígenas do altiplano.

Na localidade de Montero ocorreram as primeiras mortes: dois homens, em decorrência dos distúrbios, ainda que não se tenha informações precisas sobre os autores do crime e as circunstâncias em que os assassinatos se deram.

“Buscamos o diálogo e a pacificação, é preciso entender que medidas radicais prejudicam o povo trabalhador. A oposição não tem um norte definido, há muita divisão entre eles”, observa Plácida Mamani, senadora indígena do MAS.

Os opositores não se contentam mais com um segundo turno. Querem a anulação das eleições e a renúncia de Morales

O protagonismo cruzenho na contestação às eleições colocou em destaque no cenário nacional o empresário Luis Fernando Camacho, líder do Comitê Cívico, que se transformou no principal nome entre aqueles que rechaçam a vitória do MAS, ofuscando inclusive o ex-presidente e candidato derrotado Mesa, do Comunidade Cidadã.

“Nem Evo nem Mesa, queremos a dissolução deste Tribunal Superior Eleitoral e a convocação de novas eleições para acabar de vez com esse regime”, apregoa Edgar Ordoñez, simpatizante do Partido Democrata Cristão, sigla que teve à frente na corrida presidencial o evangélico de origem coreana Chi Hyun Chung.

Na sexta-feira 1º, Camacho, em pronunciamento diante de milhares em Santa Cruz, deu um ultimado de 48 horas para que Morales deixasse o cargo, lembrando alguns episódios da crise de 2008, quando movimentos separatistas não reconheciam o poder central e tentavam a autonomia do departamento em relação ao estado plurinacional da Bolívia, cuja nova Constituição completa dez anos em 2019.

Ao tentar desembarcar em El Alto na segunda 4, o empresário foi rechaçado por apoiadores do governo e teve de retornar à sua cidade depois de ouvir gritos de golpista.

Chanceler boliviano acompanhado de representantes da OEA

A manifestação da cabeça do Comitê Cívico, desconsiderada pelo oficialismo, foi respondida com novo fluxo de movimentos campesinos, indígenas e mineiros em La Paz até as cercanias da Plaza Murillo, sede da Casa do Povo, em defesa do mandato de Morales, incluindo milhares de integrantes da Central Obrera Boliviana.

A permanência das alegações de fraude na apuração em contraste com as forças sociais organizadas indica a possibilidade de prolongamento do impasse.

A situação fez com que o ministro Juan Ramón Quintana advertisse, em entrevista, que a “Bolívia poderia se converter em um grande campo de batalha, um Vietnã moderno, pois aqui as organizações sociais encontraram um horizonte para reafirmar sua autonomia, soberania e identidade”, declaração explorada pelos críticos como gesto autoritário. 

As disputas na arena política são sentidas especialmente pelos trabalhadores, que, na expressão utilizada no país, vivem do dinheiro conseguido no dia, em referência à atividade diária sobretudo de comerciantes e trabalhadores informais.

“Esses bloqueios nos prejudicam muito, quase todos na Bolívia precisam trabalhar para pagar as contas, as dívidas com os bancos. Somente os privilegiados não se importam, queremos nossa estabilidade de volta”, clama Sindy Leyba, camelô.

Alerta o ministro Juan Quintana: “A Bolívia pode se converter em um grande campo de batalha, um Vietnã moderno”

Em meio à conflagração, o governo comemorou mais uma vez a liderança nos índices de crescimento econômico entre os países sul-americanos, ao projetar quase 4% de avanço anual do Produto Interno Bruto, prosperidade ameaçada por conta das perdas no setor industrial e do comércio, calculadas em 12 milhões de dólares diários, por conta das greves e interrupções de estradas.

Em cidades como Sucre e Potosí, o transporte público tem sido paralisado em alguns dias, ao passo que em La Paz alguns bloqueios em vias centrais como a Illampu são realizados por cinco ou seis manifestantes.

Em atitude considerada discriminatória, uma mulher que tentava atravessar um bloqueio para trabalhar em Santa Cruz foi filmada ajoelhada e humilhada pelos bloqueadores que a chamavam de masista – adepta ao MAS – em vídeo de grande repercussão.

“Vivi no Brasil e vi de perto a injeção de ódio que a sociedade brasileira assimilou alguns anos atrás. Espero que esse sentimento não ganhe força entre nós, bolivianos, mas o cenário atual me preocupa”, comenta a advogada Abigail Yapi. 

Presidente boliviano Evo Morales durante conferência de imprensa – Foto: Jorge Bernal/AFP

Meios de comunicação como a TV Universitária e o jornal Página Siete desempenham um papel similar aos dos meios de comunicação brasileiros nas manifestações de 2013 e no processo de impeachment de Dilma Rousseff.

Por outro lado, diferentes veículos atuam na denúncia do que seriam planos golpistas e de atos programados de violência e destruição de bens públicos. O mais grave episódio revelado implica a divulgação de áudios de conversas de políticos da oposição com ex-militares na preparação de eventos que incluem levantes armados e um acordo para os Estados Unidos adotarem sanções econômicas contra a Bolívia, forma de pressionar o governo Morales.

Em um claro sinal de que o conflito boliviano transcende a América do Sul, o presidente russo, Vladimir Putin, parabenizou Morales pela nova vitória e reafirmou a aproximação entre os países desde a chegada do MAS ao poder, relação que também se estende à China e à Europa através da Alemanha, cujas empresas exploram a maior reserva de lítio do mundo, localizada em Uyuni, ao sul do país.

Além de garantir a lisura das eleições e iniciar um quarto mandato, Morales precisa ser capaz de impedir que a Bolívia afunde em uma crise permanente como a da Venezuela.

ENTENDA MAIS SOBRE: , , , , ,

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo

Um minuto, por favor…

O bolsonarismo perdeu a batalha das urnas, mas não está morto.

Diante de um país tão dividido e arrasado, é preciso centrar esforços em uma reconstrução.

Seu apoio, leitor, será ainda mais fundamental.

Se você valoriza o bom jornalismo, ajude CartaCapital a seguir lutando por um novo Brasil.

Assine a edição semanal da revista;

Ou contribua, com o quanto puder.

Leia também

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo