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Hitler ao contrário

Israel de Netanyahu pretende cancelar Hamas, muçulmanos e Árabes em peso do mapa do oriente médio

Imagem: Ahmad Gharabli/AFP
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Papa Francisco, na convicção dos crentes, é o porta-voz de Deus. Nietzsche corrigiria: “É o porta-voz da natureza”. Questão meramente semântica, vale nos dois casos. Francisco diz: “O mundo está desmoronando e talvez se aproxime de um ponto de ruptura”. Faltam poucas semanas para a nova rodada de negociações climáticas da ONU, convocada para Dubai, enquanto o papa solicita uma transição energética “vinculante” e passível de ser “monitorada”. Ao que tudo indica, o papa entende destas coisas.

Quando menino, cursei o primário no colégio das Marcelinas, lá inscrito porque meu pai, antifascista, sabia que aquelas freiras de graciosas toucas cartilaginosas não eram crentes de Mussolini. De fato, protegiam meninos judeus quando as leis raciais, na esteira de Hitler, já estavam em vigor. De todo modo, as Marcelinas retiravam da classe os não batizados e os levavam para brincar no belo parque atrás do colégio. Quanto aos batizados, estes não eram remetidos para uma marcha vagamente bélica, a exibir fardas ridículas, numa praça pública, onde desfilariam em homenagem ao Duce. Pelo contrário, poderiam almoçar em casa.

Naquele tempo, ouvi falar pela primeira vez no Apocalipse e logo recebi um livro de presente, a falar do fim do mundo. Li, devo dizer sem sobressaltos, o texto do apóstolo João e me pareceu ouvir o tropel dos fatídicos Cavaleiros, cada um a representar, respectivamente, a guerra, a fome, o fogo e a pestilência. Tendo a crer que a guerra do Oriente Médio não se dá por acaso. Se não for assim, trata-se de uma espantosa coincidência.

Papa Francisco já ouve o tropel dos Cavaleiros do Apocalipse – Imagem: Ali Jadallah/Anadolu Agency/AFP e Tiziana Fabi/AFP

Passa em segunda linha a guerra da Ucrânia, pois esta soa como mais condizente com o momento. Gostaria de saber que pensaria a respeito Hannah Arendt, a formidável pensadora judia, para lhe perguntar até que ponto chega, no caso, a banalidade do Mal. Israel, sob o comando de Benjamin Netanyahu, cuida de esquecer as lições do Armagedom e enfrenta a revolta do Hamas com ferocidade nazista. As baixas em Tel-Aviv foram imponentes, mas o revide judeu destrói sistematicamente a Faixa de Gaza.

É o rincão estreito e desértico do ­Hamas, onde reinam, além da morte, a fome e a miséria, conforme os desígnios de Tel-Aviv, determinados no propósito de cancelar qualquer resquício da raça árabe naquele espaço desesperado. Espanta a hipocrisia dos grandes da Terra e também de alguns dos seus apaniguados. De Biden aos banqueiros de Wall Street, até o representante do governo e a imprensa brasileiros, prontos a avalizar de que é uma reação muito além de compreensível dos oprimidos de Gaza, ou seja a de quem defende com a vida a sua própria vida.

Estamos diante de uma hecatombe gigantesca e de destino desde já imaginável. Não deixa de ser o desfecho de um enredo que lateja inexoravelmente nas veias do mundo. Encerrada a Segunda Guerra Mundial, os vencedores pretenderam oferecer ao povo judeu uma espécie de compensação pelo Armagedom. E foi então que o desastre anunciado se desenhou naquela área e os palestinos foram enxotados para a Faixa de Gaza.

Com a aprovação dos banqueiros de Wall Street, Biden acusa Hamas de terrorismo – Imagem: Jim Watson/AFP e iStockphoto

A Guerra dos Seis Dias, desfechada por um exército muito bem treinado e equipado, comandado pelo general Moshe Dayan, tratou de aplastar a resistência das populações muçulmanas. Nesta conjuntura, claro se revelou o propósito de eliminar qualquer resistência árabe e esta determinação esteve na origem da guerra do Líbano, terrificante capítulo de um enredo trágico, marcado pela violência do agressor e pela debilidade do agredido.

Ocorre agora que os palestinos, condenados a viver na miséria e na fome, reagiram para exibi-las aos olhos do mundo. Correta, na visão de CartaCapital, a posição brasileira em relação ao conflito, certamente influenciada pela postura equidistante de Celso Amorim, conselheiro especial do presidente Lula, sabedores dos efeitos daninhos do ódio recíproco e, portanto, dispostos a ouvir as razões de uns e outros.

O presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, confirma o seu desempenho hipócrita quando define como terroristas os insurgentes do Hamas, os quais poderiam receber em breve o apoio do ­Hezbollah. Causa estranheza a postura de inúmeros jornalistas brasileiros, dispostos a aceitar a ideia de que terrorista é a reação do oprimido. Mussolini definia como terroristas todos aqueles que tentavam livrar a Itália do seu poder.

Só Hannah Arendt sabia até onde poderia chegar a banalidade do Mal – Imagem: Fábio Rodrigues Pozzebom/ABR e Arquivo/AFP

A quantidade de erros e prepotências cometidos na região depois da queda do Império Otomano vai muito além da conta, permitindo a divisão do território conforme os interesses das potências da época, ao ignorarem as demandas dos povos que habitavam a região. Nesta moldura, deram-se as crises do fechamento do Canal de Suez e o confronto com os militares que por largo tempo se estabeleceram no comando do país.

Com Nasser no poder, o Egito militarizou-se com o apoio da União Soviética, para voltar ao comando fardado em tempos mais recentes, agora fortemente enraizado. Por um breve tempo houve quem acreditasse em uma Primavera Árabe, mas logo a expectativa foi desfeita e até o momento, pelos caminhos da Hégira, barcos clandestinos conduzem levas de refugiados para as praias europeias, em busca de salvação. •

Publicado na edição n° 1281 de CartaCapital, em 18 de outubro de 2023.

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