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Gosto de sangue

Os ataques em massa se sucedem, mas não convencem os políticos a restringir o acesso às armas

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Oito dias depois da escola no Texas, outra tragédia em Tulsa - Imagem: Departamento de Polícia de Tulsa/EUA
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Um novo ataque de um atirador em fúria no fim da tarde da última quarta-feira 1° deixou vários feridos e cinco mortos em um hospital na cidade de Tulsa, no estado de Oklahoma. O presidente Joe Biden esteve na cidade horas antes para lembrar os 300 negros abatidos há 101 anos naquele que ficou conhecido como o “Massacre da Corrida de Tulsa de 1921”. O atentado aconteceu apenas oito dias depois que 19 crianças e dois professores foram assassinados em uma escola na cidade de ­Uvalde, no Texas, e 18 dias após um homem, motivado pelo racismo, matar outros dez compatriotas em um supermercado em Buffalo, no estado de Nova York.

Em todos esses ataques os atiradores usaram rifles. Popular, de fácil manuseio e alta capacidade bélica, o semiautomático AR-15 é uma das armas mais utilizadas nos tiroteios em massa ao longo da história norte-americana. Seu custo médio é de 800 dólares. Com 1,1 mil dólares se adquire um fuzil de ponta. Na maior parte dos estados, é possível comprar um armamento apenas com documento de identificação. O Texas, por exemplo, reconhecido como “Santuário da Segunda Emenda”, passou a restringir, no fim de 2021, alguns regulamentos federais sobre armas de fogo e pôs fim à exigência de os texanos obterem uma licença para portar armas.

Ao ser indagado sobre a entrada de ­Tulsa na lista de cidades norte-americanas que sofreram tiroteios em massa nos últimos dias, o prefeito GT Bynum disse: “Se queremos ter uma discussão política, isso é algo a ser feito no futuro, mas não nesta noite, não nesta noite”. Engano. Estudos comprovam: depois de um tiroteio em massa, o risco de ataques subsequentes permanece elevado por cerca de 13 dias. “É o efeito de contágio. A tecnologia e as mídias sociais mudaram drasticamente a forma como os indivíduos recebem suas notícias. Assim que ocorre um tiroteio em massa, a notícia está por toda a internet e na tevê. Exibir o rosto e o nome do atirador também inspira outros atiradores em massa, funcionando como um efeito de contágio e levando a ataques subsequentes”, explica Rebecca­ Cowan, professora da Faculdade de ­Ciências ­Sociais e Comportamentais da Universidade de Walden, especialista em tiroteios em massa e em escolas.

Para o Partido Republicano, ao qual o prefeito de Tulsa é filiado, o fácil acesso a armas que podem disparar 45 tiros por minuto não está no cerne do problema. Três dias após o tiroteio na Robb ­Elementary School, em Uvalde, o ex-presidente Donald Trump esteve no Texas, ironicamente, para a Convenção Anual de Armas e afirmou que “políticos cínicos” tentam tirar os direitos constitucionais do cidadão norte-americano – referindo-se à Segunda Emenda. Segundo Trump, é necessário mudar drasticamente a abordagem à saúde mental. “O que precisamos agora é de uma revisão de segurança de cima para baixo nas escolas em todo o país.”

O problema não está aí, diz Cowan. “Todos os países têm gente com problemas de saúde mental, mas não chegam nem perto do número de tiroteios em massa nos Estados Unidos. Pesquisas mostram que o melhor preditor da violência em massa é o acesso às armas. Em termos de prevenção, precisamos implementar equipes de avaliação de ameaças mais treinadas, que possam ser contatadas quando uma ameaça é feita ou sinais de alerta são identificados.”

O atirador fez quatro vítimas em um hospital de Tulsa antes de morrer. De janeiro a maio, foram 232 tiroteios no país

Embora não haja perfis demográficos de atiradores em massa, existem comportamentos relacionados a ataques semelhantes que podem ser vistos como sinais de alerta. Segundo Cowan, para identificar esses sinais e comportamentos de alerta pré-ataque é utilizado o modelo ­Pathway to Violence. Nele se acompanham desde os primeiros movimentos de um potencial atirador até a sua evolução para um ataque real. “Mas é necessário que haja financiamento adicional para essas equipes de avaliação de ameaças”, reitera.

Após viverem suas tragédias, Austrália, Reino Unido e Nova Zelândia são ­países onde o controle de armas se mostrou eficaz. Ainda assim, os Estados Unidos fizeram muito pouco até agora para regular ou implementar políticas restritivas. Num pronunciamento emocionado na noite de 24 de maio, Biden lamentou a morte das 19 crianças e das duas professoras naquele mesmo dia em Uvalde, cidade que tem pouco mais de 15 mil habitantes. “Como nação, temos de perguntar: quando, em nome de Deus, vamos enfrentar o lobby das armas? Quando, em nome de Deus, faremos o que todos sabemos que precisa ser feito? Faz dez anos desde que me levantei em uma escola primária em Connecticut, onde outro atirador massacrou 26, incluindo 20 alunos da primeira série. Desde então, houve mais de 900 incidentes de tiros relatados nas dependências de escolas. A lista cresce quando inclui tiroteios em massa em lugares como cinemas, casas de culto e supermercados. Estou doente e cansado disso. Temos de agir. E não me diga que não podemos ter um impacto nesta carnificina.”

Na mesma noite, Steve Kerr, técnico do Golden State Warriors da NBA, mencionou especificamente o HR8, projeto de lei da Câmara que planeja expandir as verificações de antecedentes para incluir vendas de armas particulares e vendas de shows de armas. Em 2019, a medida chegou a ser aprovada pela primeira vez na Câmara, com apoio de 232 democratas e oito republicanos, mas emperrou no Senado. Em 2021, houve nova tentativa da Câmara, que conseguiu mais uma vez passar o projeto com apoio bipartidário, ainda que modesto. Novamente, o Senado mostrou-se uma barreira. “Quando vamos fazer alguma coisa? Estou tão cansado de me levantar aqui e oferecer condolências às famílias devastadas lá fora. Estou cansado dos momentos de silêncio. Chega… Então, eu lhe peço, Mitch McConnell e todos vocês senadores que se recusam a fazer qualquer coisa sobre a violência e os tiroteios em escolas e supermercados, eu lhes pergunto, vocês vão colocar seu próprio desejo de poder à frente da vida de nossas crianças e nossos idosos? E nossos frequentadores da igreja? Porque é assim que parece. É o que fazemos toda semana. Estou farto. Já tive o suficiente. Não podemos ficar entorpecidos com isso. Não podemos sentar aqui e apenas ler sobre isso e dizer ‘vamos ter um momento de silêncio’.”

Números divulgados na última semana de maio pela organização sem fins lucrativos Gun Violence Archive revelam que ao menos 232 tiroteios em massa (aqueles com quatro ou mais vítimas) aconteceram entre janeiro e o fim de maio deste ano. Em 2021, o grupo registrou 693 tiroteios em massa, com 28 a resultar em quatro ou mais mortes. •

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1211 DE CARTACAPITAL, EM 8 DE JUNHO DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Gosto de sangue “

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