Mundo
EUA e Rússia rompem acordo de desarmamento
Enquanto se desenrola o jogo de culpas entre Washington e Moscou, a segurança europeia está especialmente fragilizada


Os Estados Unidos desligaram-se oficialmente do Tratado de Forças Nucleares de Alcance Intermediário (INF) nesta sexta-feira 2. Assim se extingue o acordo binacional de 1987 que exigia que americanos e soviéticos eliminassem inteiramente os mísseis de cruzeiro lançados do solo com alcance entre 500 e 5.500 quilômetros.
Sob o INF, pela primeira vez as superpotências concordaram em eliminar toda uma categoria de armas nucleares e submeter-se a extensas inspeções para assegurar que ambos os lados seguissem as regras do tratado.
Isso foi especialmente importante para a Alemanha, onde, nos anos 1970 e 1980, realizaram-se grandes manifestações para impedir o posicionamento de mísseis nucleares no país. Os protestos fracassaram, e mais de 100 mísseis Pershing 2 foram estacionados na então Alemanha Ocidental.
Com a assinatura do tratado INF, um total de 2.692 mísseis foi destruído. Menos da metade deles estava nos depósitos ou não foi posicionada. Até hoje continua forte a oposição às armas nucleares na Alemanha.
Passadas quase três décadas da assinatura do tratado, os EUA acusam a Rússia de descumprimento do acordo, com base em relatórios de inteligência. Washington argumenta que o míssil russo 9M729 viola o INF. Moscou nega as alegações: com um alcance máximo de 480 quilômetros ele estaria abaixo dos limites do tratado.
O que está em jogo para a Europa?
Enquanto se desenrola o jogo de culpas entre Washington e Moscou e as obrigações do INF estão suspensas, a segurança europeia está especialmente fragilizada.
Para Ulrich Kühn, do Instituto de Pesquisa da Paz e Política de Segurança da Universidade de Hamburgo (IFSH), o fim do acordo é “uma notícia muito ruim para a segurança europeia”. “Isso significa que estamos voltando aos anos 80, vendo novamente aqueles mísseis apontando para a Europa Ocidental do lado russo e, talvez em um ou dois anos, do lado ocidental em direção à Rússia.”
Em 2018, o posicionamento dos mísseis com capacidade nuclear Iskander-M em Kaliningrado, um enclave russo no Mar Báltico, causou alvoroço nos países ocidentais. A Rússia afirma tratar-se uma decisão de segurança nacional, enquanto países vizinhos pertencentes à Otan, como a Polônia, percebem o fato como uma séria ameaça.
O Kremlin afirma que eles foram implantados para combater o escudo antimísseis dos EUA que está sendo instalado na Europa Oriental. Apesar de Washington argumentar que o objetivo é fazer frente a possíveis ataques de mísseis do Irã, Moscou não está convencido disso e argumenta que o alvo seria a Rússia.
Mantendo a unidade da Otan
Embora a Otan vise assegurar a segurança de todos os seus membros, torna-se um desafio atuar de forma uníssona se a percepção de ameaça diverge dentro da aliança.
Roderich Kiesewetter, da União Democrata Cristã (CDU), partido governista da Alemanha, diz acreditar que é importante não perder a “visão de 360 graus” e garantir que os interesses de todos os membros estejam igualmente representados.
No entanto, com o fim do INF, os países do Leste europeu e da região báltica, que sentem a ameaça russa de forma mais intensa que outros membros da Otan, estarão provavelmente mais abertos a acordos bilaterais com os EUA.
“A principal meta é evitar a disseminação de armas nucleares na Europa”, diz Kiesewetter. Por isso deve haver “um acordo especial entre a Polônia e os EUA para posicionar armas nucleares na Europa”. Isso só serviria aos interesses da Rússia, que quer uma Otan mais fraca e está fazendo tudo a seu alcance para consegui-lo, afirma.
Richard Weitz, do Instituto Hudson em Washington, concorda que isso pode ajudar a Rússia a explorar divisões entre os aliados, mas por outro lado “pode aumentar os gastos com a defesa aliada ou impedir que aliados comprem armas russas”. Em sua opinião, o governo americano vê isso como “apenas uma questão de negócios”.
Os Estados Unidos têm insistido para os membros da Otan atingirem a meta de gastos de defesa proporcional a seu PIB, algo que poucos realizaram até agora.
Diálogo com a Rússia
Embora a Alemanha, assim como os demais países europeus, não seja signatária do INF, ela é afetada pelo cancelamento do tratado.
Fabrice Pothier, consultor sênior do Instituto Internacional de Estudos Estratégicos (IISS) e ex-chefe do setor de Planejamento de Políticas da OTAN, disse à DW que alemães e franceses precisam continuar seus esforços para manter o diálogo sobre o INF dentro da aliança militar. O diálogo com a Rússia também precisa continuar.
Pothier diz tratar-se de um “jogo muito complicado”, em que nem os alemães nem os franceses querem ser vistos como se estivessem tentando negociar um acordo entre os EUA e os russos, mas, por outro lado, “não podem ficar passivos, pois a questão os afeta”.
O que virá depois?
Tradicionalmente a Alemanha tem sido cautelosa quando se trata de medidas militares. Então, qual serão as atitudes do país numa era pós-INF?
Kiesewetter diz acreditar que a verificação mútua deve ser o primeiro passo para garantir que nenhum dos lados confunda um míssil convencional com um nuclear: há necessidade de “estabelecimento de uma confiança intensa e intercâmbio científico para evitar erros humanos”.
Segundo o político conservador, uma zona livre de mísseis de médio alcance precisa ser estabelecida, e o diálogo com a Rússia deve continuar por meio da “intensa revitalização” do Conselho Otan-Rússia.
No entanto, o especialista em controle armamentista Ulrich Kühn, da Universidade de Hamburgo, afirma que a Alemanha também precisa adotar outras medidas, como fortalecer os locais visados, o que significa investir mais na segurança “dos chamados nós de transporte”, como a Base Aérea de Ramstein; Bremerhaven, importante porto alemão, e outras rotas da Otan na Europa.
Garantir a segurança da Europa e impedir uma corrida armamentista exigirá muito mais esforço nos próximos anos. Muitos temem que a desistência do INF também ponha em risco a existência de outros acordos de armas nucleares, como o Novo Tratado de Redução de Armas Estratégicas (Novo Start), fechado entre EUA e Rússia, que expira em 2021.
Apoie o jornalismo que chama as coisas pelo nome
Depois de anos bicudos, voltamos a um Brasil minimamente normal. Este novo normal, contudo, segue repleto de incertezas. A ameaça bolsonarista persiste e os apetites do mercado e do Congresso continuam a pressionar o governo. Lá fora, o avanço global da extrema-direita e a brutalidade em Gaza e na Ucrânia arriscam implodir os frágeis alicerces da governança mundial.
CartaCapital não tem o apoio de bancos e fundações. Sobrevive, unicamente, da venda de anúncios e projetos e das contribuições de seus leitores. E seu apoio, leitor, é cada vez mais fundamental.
Não deixe a Carta parar. Se você valoriza o bom jornalismo, nos ajude a seguir lutando. Assine a edição semanal da revista ou contribua com o quanto puder.
Leia também

Mais de 900 crianças imigrantes foram separadas dos pais nos EUA em um ano
Por Deutsche Welle
Gangorras unem adultos e crianças na fronteira entre México e EUA
Por AFP
Putin ameaça retaliar se EUA instalarem mísseis na Europa
Por Deutsche Welle
“Serei exonerado”, diz diretor do Inpe após desavença com Bolsonaro
Por Alexandre Putti
Bolsonaro exige restrições na divulgação de dados ambientais do Inpe
Por Victor Ohana
Bolsonaro provoca e deixa presidentes sem reação na Cúpula do Mercosul
Por RFI
Políticos franceses dizem não ao acordo UE-Mercosul: “Horror ecológico”
Por RFI