Mundo
Duelo de outsiders
O ex-guerrilheiro Gustavo Petro vai enfrentar no segundo turno Rodolfo Hernández, um Trump cucaracho


Um rechaço ao sistema político tradicional. Este parece ser o recado essencial do primeiro turno das eleições presidenciais na Colômbia, ocorrido no domingo 29. Como previsto, Gustavo Petro chegou na frente. O dado surpreendente foi a dança de cadeiras entre o segundo e o terceiro colocados, ocorrida na semana anterior à votação.
Há surpresa e lógica nos resultados. Petro, pela esquerda, e Rodolfo Hernández, pela direita, que disputarão o segundo turno em 19 de junho, exibem curiosa coincidência. Ambos se contrapõem à eterna troca de posições entre facções das oligarquias no poder, prática que vem desde o fim do século XIX. A Colômbia parece viver a quente um fenômeno análogo ao de outros países da América Latina: a implosão do sistema político vigente. Diante da reincidência de crises e do esgarçamento das relações sociais, fruto do desmonte neoliberal, entre outros fatores, o eleitorado tende a escolher quem nega a política tradicional ou se afasta dela.
Todos os institutos de pesquisa apontaram nas semanas anteriores a consolidação de Federico “Fico” Gutiérrez, postulante da direita neoliberal, como segundo colocado. Logo atrás viria Hernández, um demagogo de direita com jeitão de interiorano. Abertas as urnas, Petro alcançou 40,31% do total, Hernández bateu em 28,17% e Gutiérrez, apoiado publicamente pelo ex-presidente Álvaro Uribe, ficou fora do segundo turno, com 23,89%. Além da porcentagem na urna, vale destacar que Petro venceu em 18 departamentos, o equivalente a estados, enquanto Hernández teve mais votos em 13. Fico Gutiérrez foi o preferido apenas em Antioquia, departamento de Uribe. Em Bogotá, Cali, Baranquilla, Menizales Pereira, Armenia e na maioria das grandes cidades, o líder de esquerda avançou com folga e seu voto foi geograficamente mais abrangente que aquele de Hernández. O desgaste do uribismo, perceptível nos cadentes índices de popularidade do atual presidente Iván Duque, reembaralhou o jogo e contaminou o ex-prefeito de Medellín.
Rodolfo Hernández, 77 anos, é tido como outsider na política, apesar de ser ex-prefeito de Bucamaranga, capital do departamento de Santander, com 600 mil habitantes. O engenheiro Rodolfo, como se apresenta, enriqueceu no ramo da construção de moradias populares a partir dos anos 1970, até ficar conhecido como o Donald Trump colombiano. Com um jeitão desbocado e popularesco, sua coligação denomina-se Liga de Gobernantes Anticorrupción e busca repetir um mote que garantiu a eleição de Jair Bolsonaro em 2018. Hernández é, no entanto, figura pública muito mais sofisticada que o ex-capitão brasileiro. O candidato inundou as redes sociais com curtíssimos vídeos do TikTok, nos quais aparece como bonachão e decidido. Coloca-se como um pé de boi pronto a encarar qualquer empreitada e garante nunca ter sido político. É o sujeito que “não rouba, não mente e não trai” e que vai mudar tudo o que está aí, como anuncia um de seus memes de campanha.
Resta saber se o “antipetrismo” será decisivo nas eleições
Petro, por sua vez, construiu a duras penas uma carreira que o levou à prefeitura de Bogotá e ao Senado, após se desligar da guerrilha, há quatro décadas. Pode-se aferir o avanço das ideias progressistas no país examinando-se sua ascensão nas eleições presidenciais da última década. O candidato amealhou 9,13% dos votos no primeiro turno de 2010 e obteve um modesto quarto lugar. Quando vai à luta novamente, em 2018, quase triplica a marca anterior, recebendo 25,08% dos sufrágios. Com os 16 pontos a mais conseguidos agora, Petro encarna a maior oportunidade que uma força popular já teve no país caribenho. Mas não será fácil.
Quem pretender buscar diferenças significativas entre os dois candidatos pela leitura dos programas de governo encontrará poucas pistas. As proposições de Hernández são habilmente arroladas num livreto de 76 páginas, com epígrafe de Nelson Mandela, no qual se detalham propostas para várias áreas – educação, saúde, mulheres e questões de gênero, juventude, infância e adolescência, inclusão social, moradia, saneamento, infraestrutura, indústria, meio ambiente etc. A maior parte dos tópicos, vistos isoladamente, seria perfeitamente apoiada por alguém do campo progressista.
Embora generalidades deem o tom, há certas ousadias. Um exemplo é a ideia de se reatarem imediatamente as relações diplomáticas com a Venezuela, rompidas desde 2010. Mas o modelo econômico segue intocável. A peça poderia ser classificada como um exemplo do “neoliberalismo progressista”, termo criado pela filósofa estadunidense Nancy Fraser.
Na noite da eleição, Fico Gutiérrez e quatro outros candidatos de menor expressão declararam apoio ao engenheiro. O grande e médio empresariado, a maior parte do mundo político, as forças armadas e os meios de comunicação devem se somar ao interiorano. Num país em que o voto é facultativo e com a possível soma de sufrágios conservadores, o maior desafio da campanha de Petro é mobilizar parcela expressiva dos 45% do eleitorado que decidiu não votar no primeiro turno.
A atual eleição é tida como a mais violenta da história, mesmo após quase seis anos do acordo de paz celebrado entre o governo e a guerrilha. Com todo o contorcionismo midiático e político, Hernández fará de tudo para reforçar seu figurino de estranho no ninho da política, como forma de garantir que nada de substancial mude na Colômbia. O conservadorismo dissemina a falsa ideia de que um governo de esquerda desestabilizará o país. O cientista político Miguel Jaramillo Luján, em entrevista ao jornal El Tiempo, de Bogotá, batizou o fenômeno com um nome que soa familiar aos brasileiros: “É provável que o ‘antipetrismo’ venha a pesar muito até as eleições”. •
*Professor de Relações Internacionais da UFABC e coordenador do Observatório de Política Externa e Inserção Internacional do Brasil (OPEB).
PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1211 DE CARTACAPITAL, EM 8 DE JUNHO DE 2022.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Duelo de outsiders“
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