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Disputa pelo 4º mandato coloca Evo Morales à prova na Bolívia

O único líder latino da primavera esquerdista ainda no poder tem trabalho pela frente. Mas se não ele, quem?

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O ano era 2003. Quando a Bolívia vivia a ebulição da Guerra do Gás, uma cidade da periferia de La Paz virou palco de um dos mais sangrentos conflitos da história do país. As ruas de El Alto – 15 quilômetros distante da cidade-sede do governo e 421 metros mais alta –  foram tomadas por trabalhadores vindos em marcha de vários lugares, que exigiam um lugar na mesa para decidir o destino das riquezas nacionais. Enquanto muitas famílias ainda cozinhavam com lenha, o governo decidiu vender gás natural aos EUA a preço de banana. E pelos portos do Chile, um rival histórico.

Tanques e soldados cercaram a região e, a mando do governo, mataram mais de 70 campesinos de origem indígena. Esse massacre ficaria conhecido como Outubro Negro e forçaria a queda de Gonzalo Sánchez de Lozada, um presidente cujo traço mais marcante era falar espanhol com forte sotaque americano. Acossado, ele deixou o cargo e fugiu para os EUA. Seu vice renunciaria tempos depois.

A revolta também abriu caminho para a ascensão de um sindicalista cocaleiro do Altiplano, cuja atuação foi essencial para aquele movimento: Evo Morales, o primeiro índio a se tornar presidente da Bolívia desde a independência da nação, em 1825, e que há 13 anos governa o país.

De lá para cá, a cidade saiu da sombra de La Paz. Tem hoje uma economia efervescente, movida pelo comércio e pelas indústrias de petróleo e gás. Também superou a irmã mais velha em tamanho – desde 2013, mais gente vive lá do que na capital. Essa transformação se expressa na arquitetura colorida e espetacular dos salões de festas altenhos, chamados popularmente de cholets, uma corruptela das palavras cholo (apelido pejorativo ressignificado pela comunidade indígena) e chalet (casa campestre). São prédios de vários andares, cujo piso térreo tem câmaras nababescas, salpicados de lustres e cores berrantes que aludem ao vestuário andino.

Esse deslumbre arquitetônico é obra do indígena Freddy Mamani, um ex-servente de pedreiro convertido em precursor do estilo neoandino, e hoje imitado por dezenas de arquitetos da região. Desde 2005, Mamani projetou e construiu mais de cem cholets. A maioria em El Alto, mas também no Peru e no norte do Chile. O grosso de sua clientela é composto de  autônomos e empresários que enriqueceram na última década e meia, apelidados de burguesia aymará. Criador e criaturas viraram livros, filme e exposição na badalada Fundação Cartier de Paris.

O vice García Linera (à esquerda de Morales na foto acima) não quis substituir Evo na cabeça de chapa governista

Dezesseis anos depois da violência do Outubro Negro, El Alto agora reflete os anseios de uma parcela cada vez maior de bolivianos que, apesar de reconhecer que a vida melhorou, quer dar adeus ao presidente. “Há trabalho, lazer, comida, transporte de qualidade, mas o povo está muito descontente com Evo”, resume a aposentada Graciela Liñares, de 65 anos. Apesar de ter votado em Evo nas últimas três eleições, não quer mais vê-lo no poder. Acha que o líder humilde de outrora transformou-se em um burocrata apaixonado pelo poder. E teme que um quarto mandato abra caminho para que ele fique eternamente no cargo.

Nos dias em que CartaCapital esteve no país, esta foi uma constatação comum entre bolivianos de várias origens, idades e estratos sociais. Muitos temem um futuro à Venezuela ou Nicarágua, embora o país esteja longe de enfrentar os mesmos problemas econômicos do primeiro e a agitação política do segundo. 

No bairro de Villa Adela, onde fica boa parte dos cholets projetados por Mamani, a paisagem traduz essa mudança nos ares. Das casas mais simples às mais sofisticadas, não faltam muros pichados com um recado simples e direto: No, as duas letras que simbolizam uma cisão inédita desde a ascensão de Evo à Presidência. E que podem colocar fim ao governo do único eleito na “primavera esquerdista” da década passada ainda no poder. 

Trata-se de um lembrança de fevereiro de 2016, quando a população foi às urnas decidir se dava ao presidente a chance de concorrer a um novo mandato, alterando um artigo da Constituição que impunha limite à reeleição. O “Não” venceu por uma pequena margem, 51,3% contra 48,7%. Apesar do resultado, o Supremo Tribunal Eleitoral boliviano autorizou-o a disputar a eleição marcada para outubro deste ano. Caso vença Evo, ele e seu partido Movimiento al Socialismo (MAS) ficarão no poder até 2025. 

Os juízes entenderam que impedi-lo de se candidatar violaria um direito humano, previsto em tratados internacionais. Os apoiadores de Evo dizem que o referendo foi influenciado por notícias falsas. Já a oposição acusa o presidente de aparelhar o tribunal e ironiza o apelo aos direitos humanos, já que ele não é preso político nem teve direitos cassados.

Carlos Mesa renega o legado de Lozada, condenado pelo massacre em El Alto

Essas manobras não são novas. Em 2013, esse mesmo tribunal decidira que o primeiro mandato de Morales não foi realmente seu primeiro mandato: entre 2005 e 2009 ele foi presidente da “República da Bolívia”, e só em janeiro de 2010 virou presidente do “Estado Plurinacional da Bolívia”, completando seus primeiros cinco anos. Venceu as eleições de 2014 em primeiro turno, com 61% dos votos válidos. 

Ao forçar uma nova candidatura, Evo Morales nega a Constituição que seu próprio governo defendeu e promulgou. O artigo da reeleição não mudou, mas agora há partes que se cumprem, e outras que não. “Muita gente, em especial nas grandes cidades, decepcionou-se com esse atropelo e teme que o tribunal faça vista grossa a uma eventual fraude eleitoral. E a oposição tem agora um candidato forte que representa essa insatisfação”, aponta o sociólogo e analista político Jorge Komadina.

Projeto de Mamani, símbolo da ascensão de El Alto. Hoje segue um dos lugares que mais crescem no país

Evo Morales enfrenta agora a eleição mais difícil desde a que lhe deu o primeiro mandato. E, pela primeira vez, corre risco de não se reeleger. Seu adversário mais competitivo é o ex-presidente Carlos Mesa, o vice de Lozada que renunciou ao cargo em plena Guerra do Gás.

A pesquisa mais recente, encomendada pelo jornal local La Razón em maio, dá ao presidente 38,1% das intenções de voto, pouco mais de 10 pontos à frente de Mesa, com 27,1%. Não é uma vantagem desprezível, mas bem menor do que nas eleições anteriores. Morales vence disparado nas pequenas e médias cidades, mas Mesa o supera por pouco nas capitais e em El Alto.

Outro fator decisivo é o alto porcentual de indecisos: 16% ainda não sabem em quem votar. É o caso do mecânico altenho Juan Gabriel Ayala, de 25 anos. Como muitos jovens, ele mal se lembra da vida sem Evo no poder. Também não conhece o passado de Mesa na Presidência, e a violência que tomou sua cidade durante os conflitos do gás. “Se Evo tiver a melhor proposta, voto nele, mas vai depender do projeto.”

Ao contrário da Venezuela e da Nicarágua, a Bolívia vive um período de estabilidade política e prosperidade

Sempre que pode, em comícios e eventos do partido, Morales reforça o desejo de vencer com 60% dos votos, mesmo porcentual que obteve nas vitórias anteriores. O apelo ultrapassa o simbolismo: na democracia boliviana, o candidato que tiver mais de 10% à frente do segundo colocado vence já em primeiro turno. Os governistas fazem de tudo para liquidar logo a fatura e obter de novo a maioria de dois terços do Parlamento. O motivo? As projeções para um eventual mano a mano são menos alentadoras: todas as pesquisas projetam Mesa vencendo o atual o presidente.

Apesar do desgosto com Evo, os bolivianos não demonstram entusiasmo com os outros candidatos. “A única solução é colocar um militar no poder”, lamenta dona Graciela Liñares. Seu neto de 19 anos e um casal que acompanhavam a conversa assentiram com a cabeça. A um brasileiro, a frase logo remete à barafunda que ajudou Jair Bolsonaro a botar a mão na faixa. Mas, no cenário local, mais favorece a continuidade do governo no poder.

Em 2003, La Paz foi palco de sangrentos confrontos

Se o desgaste atinge como nunca a imagem de Evo, não é diferente com Mesa. Para tentar se descolar da herança maldita de Lozada, o adversário tem se apresentado como esquerdista e tomou para si a demanda dos movimentos ambientalistas, insatisfeitos com a sanha extrativista que o governo Evo encampou nos últimos anos com a baixa das commodities. O esforço porém, tem surtido pouco efeito.

Também falta à oposição um projeto alternativo para a Bolívia. A campanha de Mesa, avalia Komadina, ainda está muito calcada na questão legal, e ele próprio elogiou Evo em vários artigos para a imprensa. Pesa ainda o fracasso da tentativa de formar um bloco com o terceiro colocado nas pesquisas, Óscar Ortiz, representante da rica Santa Cruz de La Sierra, capital imobiliária, petroleira e da soja na Bolívia. “A aliança entre os sindicatos, indústria e outros setores com o MAS é muito densa e orgânica. Falta a eles essa força.” 

Em La Paz, o retrato de uma nação que reduziu a pobreza à metade. Ainda assim, bolivianos resistem em confiar mais um mandato a Morales

Não dá para negar que os anos Evo trouxeram estabilidade em um país que parecia ingovernável e era campeão em golpes de Estado. Nos cinco anos que antecederam sua primeira vitória, a Bolívia teve cinco presidentes. Apesar de ter enfrentado protestos intensos, o cocaleiro jamais esteve perto de ser expulso do palácio como seus antecessores. Cumpriu boa parte do que prometeu: nacionalizou as reservas de hidrocarbonetos, mudou a Constituição e expulsou do país os agentes antidroga dos EUA, que, a pretexto de combater o tráfico internacional de cocaína, pretendiam erradicar o cultivo de coca, planta tradicional e ganha-pão de milhares de campesinos. 

A bonança econômica também é determinante. Em meio à recessão que assola o continente, a Bolívia cresce a passos largos. A dívida externa, que nos anos 1980 alcançava 99% do PIB boliviano, caiu a 23,5%. Desde a primeira eleição de Morales, em 2005, a dívida passou de 4,9 bilhões de dólares a 10,2 bilhões. O PIB, porém, quadruplicou: foi de 9,5 bilhões a 40 bilhões. Com Evo, o PIB jamais cresceu menos de 4%. Não se trata de um voo de galinha. Graças ao pragmatismo – ele mantém ótimas relações com o Brasil e a Argentina, os maiores compradores do gás natural boliviano – o país resistiu à baixa das commodities, manteve as contas em dia e é hoje o que mais cresce na América do Sul. Para este ano, o crescimento esperado é de 4,5%.

Os antecessores de Evo naufragaram no neoliberalismo, mas os jovens não conhecem bem esse passado

No campo social, o presidente indígena deu dignidade inédita à população nativa, que por séculos viveu sob os desmandos de uma minoria branca de origem espanhola. Evo não apenas trocou o terno e a gravata por trajes típicos de sua etnia, como também lançou políticas de paridade na política e no mercado de trabalho. Os funcionários públicos tiveram de aprender quéchua, aimará ou guarani. Com a ajuda de profissionais cubanos e argentinos, chegou perto de erradicar o analfabetismo entre essa população. A bandeira Wiphala, símbolo dos povos andinos, ganhou status de brasão nacional. 

Diante de um cenário favorável, mas incerto, não teria sido mais oportuno que o MAS apresentasse, em vez de Evo, um sucessor? Após todos esses anos, não surgiu um único líder capaz de fazer frente a Morales no partido. Chega perto o vice Álvaro García Linera, ideólogo do evismo e benquisto por vários setores, mas ele se recusa a assumir a dianteira numa chapa. “Lutei pelos índios no poder. Não por mim, porque não sou índio”, declarou em entrevista ao El País no ano passado. Um pouco como ocorre com Lula no PT, Evo é a pedra angular do MAS, um símbolo insubstituível, o único capaz de costurar interesses tão antagônicos quanto os da elite de Santa Cruz e do campesinato do interior do país. 

Para Komadina, esse caldo político fortalece e fragiliza o presidente ao mesmo tempo. “É força porque a cultura política do país está fincada na figura do caudilho, do homem forte que resolve as coisas. E é fraqueza porque a ausência de substituto deixa o partido refém.”

Eventual segundo turno ameaça os planos de reeleição, apontam pesquisas

O governo diz que a reeleição está assentada na necessidade de um projeto de longo prazo, que tem em Morales seu expoente. Há sete anos, o partido lançou um extenso projeto que inclui, por exemplo, erradicar a fome e diversificar a matriz econômica do país, hoje dependente dos minerais e hidrocarbonetos. Essa agenda vence justamente em 2025, quando se completam 200 anos da independência do País e quando se encerra o mandato em disputa nestas eleições.

O próprio Evo não esconde a admiração por Angela Merkel, que comanda a Alemanha há mais tempo que ele. Há três anos, quando a chanceler foi eleita para o atual mandato, parabenizou a “decisão soberana” do povo alemão e arrematou: “Os povos são sábios, a reeleição garante a continuidade dos projetos a médio e longo prazo. Alemanha, referência de desenvolvimento no mundo”.

“Depois de 13 anos, a popularidade de Evo passa de 50%. Estamos falando de uma liderança muito forte. Por isso achamos que ele continua sendo fundamental para manter o país no bom caminho”, defende o ministro Manuel Canelas, porta-voz do governo. Segundo ele, os bons indicadores econômicos e a estabilidade alcançada habilitam Evo para conduzir esse processo do início ao fim. “Sem dinheiro, não há projeto. Por isso pedimos cinco anos mais para encerrar esse ciclo.” Cotado como um dos sucessores de Evo, Canelas garante que, em caso de vitória, aquele será o último ano do presidente na cadeira. O histórico de Morales, entretanto, abre espaço para dúvidas. Em 2014, ele já havia prometido deixar a política e… abrir um restaurante. 

A cholita Flora Rojas elogia os avanços e reivindica mais poder às mulheres

Se a Bolívia mudou, também mudou Evo. Ao poucos, ele superou a imagem de “um de nós no poder” e passou a se apresentar como estrela, um predestinado a conduzir a Bolívia ao seu destino glorioso. Sua cidade natal ganhou, há dois anos, um espaço cultural em sua homenagem. Batizado com o pomposo nome de Museu da Revolução Democrática e Cultural, custou 7 milhões de dólares. No moderno teleférico que liga La Paz a El Alto, fotos dele estampam banners e out-doors dentro e fora das estações. E cada uma das 1.506 cabines traz na porta lateral um adesivo com o seu rosto estilizado em preto e branco. Essa mesma logomarca aparece nos biscoitinhos do serviço de bordo da Boliviana, companhia estatal de aviação fundada em 2007. 

Apesar dos coloridos cholets e das mansões e arranha-céus cada vez mais numerosos, a maioria das casas de El Alto e La Paz ainda é de tijolo cru, uma tática antiga para pagar menos impostos que virou costume. Os tons laranja dão à região um quê de cidade incompleta, em mudança contínua. De fato, ainda há muito o que fazer para tirar o país da série B econômica do continente. Três em cada dez bolivianos, segundo dados do Banco Mundial, ainda vivem abaixo da linha da pobreza (no primeiro ano do governo Morales, eram mais de seis). E, apesar dos avanços, também há um longo caminho a percorrer na igualdade étnica e racial. No rico bairro de Calacoto, na Zona Sul de La Paz, todos os lixeiros, guardadores de carros e vendedores de rua ainda têm os traços do povo nativo boliviano. Essa diferença chama ainda mais atenção no caso das cholas, as mulheres indígenas de origem aimará e quéchua.

Por muito tempo, a palavra chola foi insulto. Quando migravam do campo para a cidade tinham de se contentar em ser babá ou empregada nas casas dos brancos. Não podiam ocupar cargos públicos e também não tinham acesso à educação formal. Há pouco, porém, isso começou a mudar. As tranças, o chapéu e as saias volumosas tornaram-se símbolo de resistência e aparecem em ambientes que vão da luta livre ao alpinismo. A Assembleia Nacional boliviana hoje tem dezenas delas, orgulhosamente vestidas. A cholita Flora Rojas, companheira de lutas de Morales desdes os tempos do sindicalismo cocaleiro, sonha com o dia em que uma de suas companheiras alcançará o cargo mais alto do estado plurinacional boliviano: “Temos o mesmo cérebro e podemos fazer o mesmo que os homens”.

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