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Destruição à vista

Conheço bem os problemas dos nossos vizinhos, mas o suicídio nunca me pareceu solução aceitável

Com a eleição de Milei, um futuro de horror – Imagem: Emiliano Lasalvia/AFP
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Fui a Buenos Aires pela primeira vez há 55 anos e meio. Entre junho e julho de 1972, passei três semanas na cidade.

Em abril de 1973, aos meus 24 anos, mudei para lá e fiquei até julho de 1976, quando saí para meu segundo exílio.

Nesse período escrevi muito para o jornal La Opinión, e fiz parte, desde o princípio, do grupo de colaboradores permanentes da Crisis, revista criada e dirigida por Eduardo Galeano. Nunca mais houve nada igual.

Há quase 20 anos temos um apartamento em Palermo Viejo. Antes da pandemia, eu costumava passar longas temporadas no meu refúgio portenho.

Conto isso para explicar as razões que me levaram a acompanhar, com especial atenção, a eleição do domingo 19 de novembro. E confesso minha surpresa e meu espanto. A propósito, não lembro de nenhuma eleição presidencial argentina nas últimas décadas que tenha concentrado tanta atenção aqui no Brasil, do governo, partidos políticos, empresários de todos os setores e meios de comunicação.

Nunca senti simpatia alguma por ­Sergio Massa, o candidato derrotado. Já por Javier Milei, o vencedor, o que sinto é pânico. Não se trata de um economista ou de um político. Trata-se de uma aberração ambulante, tremendamente perigosa.

Há mil e uma explicações para sua vitória. Mesmo assim, confesso que não consigo entender como ganhou por tão ampla margem. Conheço bem os problemas que a Argentina enfrenta, e que se agravaram muitíssimo neste ano. Mas o suicídio jamais me pareceu uma solução aceitável. O mais tremendo dessa história é que sua presença na poltrona presidencial da Casa Rosada não significa apenas um perigo extremo para o seu país, mas para toda a região, a começar pelo Mercosul.

Suas primeiras declarações depois de eleito, e o anúncio de suas primeiras medidas, são um assombro. Entre fulminar ministérios e privatizar até o ar que se respira, o que temos à vista é a destruição da Argentina. É verdade que Milei não vai conseguir cumprir nem a metade de suas promessas de campanha, pois não tem base no Congresso para chegar a tanto. Não vai ter como “dolarizar” a economia de um país que não tem dólares. E muito menos fechar o Banco Central. Aliás, para fazer isso seria preciso uma reforma na Constituição, que estabelece tanto a moeda nacional quanto a instituição.

A interlocutores, em todo caso, anunciou que pretende mudar o nome do peso, com o argumento de que “o peso já não vale nada”. Não explicou de que maneira mudar o nome transforma o cenário. Mas o que conseguir cumprir, por menos que seja, será devastador. Eliminar subsídios de transporte, por exemplo. Levar o preço da energia elétrica para a lua, outro exemplo. Reafirmou que vai privatizar a companhia aérea Aerolíneas Argentinas e a YPF, a Petrobras deles. E que vai suspender todas as obras públicas federais, inclusive as que já estão em andamento. Sua explicação: “Nós não temos dinheiro. Que a iniciativa privada se apodere dessas obras”. Entre os ministérios que serão eliminados estão, claro, o da Cultura e o de Direitos Humanos. Nada mais esclarecedor.

Nunca tive simpatia por Sergio Massa. Em relação a Javier Milei, sinto pânico

E as relações com o Brasil? Outro enigma. Na campanha eleitoral, Milei não deixou de acusar Lula de “comunista”, “corrupto” e “ladrão”. E na noite da vitória convidou Jair Messias e seu filho Eduardo, que o general Hamilton Mourão chamou de “Dudu Bananinha”, para a posse. É verdade que no Mercosul dois outros países, o Uruguai e o Paraguai, têm governos de direita, e Lula se dá bem com eles. Acontece que seus presidentes não são desequilibrados sem remédio.

O que vejo na Argentina, país com o qual, reitero, mantenho laços estreitos há mais de meio século, e onde tive alguns dos melhores amigos da minha vida, é um futuro de horror. De horror, aliás, e também de confusão. Que ninguém se esqueça da capacidade dos peronistas de reunir multidões em manifestações públicas gigantescas. É impossível prever quando elas começarão. Mas que ninguém duvide: vão sacudir Buenos Aires e o país.

Milei sabe disso, e avisou aos quatro ventos que vai impor a lei e a ordem. Assegurou que não vai ser “chantageado” por sindicatos e movimentos sociais, que chamou de “os violentos das ruas”. E também avisou que vai precisar de uns seis meses para impor seus projetos. Textualmente, advertiu que serão “seis meses de inferno para só então alcançarmos o céu”.

Com uma inflação que beira os 143%, com uma moeda que no câmbio negro vale três vezes mais que no câmbio oficial (que ninguém leva a sério), com 40% da população vivendo abaixo da linha da pobreza, alguém acredita que esse quadro será alterado em seis meses? Ao contrário, economistas e bancos preveem que no ano que vem a Argentina estará em franca recessão.

Aliás, esse quadro sombrio foi fundamental para a vitória de Milei. Muito mais do que votar nele, o que se viu foi um eleitorado irritadíssimo com a situação vivida pelo país. Embora conte com o apoio do ex-presidente Mauricio Macri e da ex-peronista de esquerda, hoje uma radical de direita, Patricia Bullrich, não houve até o momento nenhum avanço na direção de uma coligação entre seu partido, Liberdade Avança, que é ínfimo, e o “Juntos Pela Mudança” dos dois. O ­ex-presidente mantém-se próximo ao eleito, mas não se sabe até que ponto sua influência existe e será efetiva.

Resta, além disso, uma dúvida que corre solta no país: qual o futuro da ex-presidenta Cristina Kirchner? Embora ­Alberto Fernández tenha se afastado dela – aliás, entre os mais íntimos de ­Cristina ele é chamado de “traidor mentiroso” –, seu peso e seu poder no peronismo ainda são imensos. Ter ocupado a vice-presidência em seu período não serviu para aproximar os dois, mas deu a ela imenso poder no Congresso. Tampouco apoiou com entusiasmo o derrotado Sergio ­Massa. Ninguém acredita que ela volte a se candidatar em alguma eleição. Mas ninguém duvida, vale reiterar, que seu poder vai continuar intocado – e imenso.  •

Publicado na edição n° 1287 de CartaCapital, em 29 de novembro de 2023.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Destruição à vista’

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