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De vilã a heroína

No cerne da disputa DeSantis vs. ­Disney está algo muito maior do que os dois: as guerras culturais renovadas e intensificadas nos EUA

Conversão. A Disney era criticada pela comunidade LGBTQIA+. Agora, precisa se defender dos ataques da extrema-direita – Imagem: iStockphoto
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Em um cenário político dividido, uma das lutas mais amargas também é uma das mais estranhas: a batalha travada entre o governador da Flórida e candidato à Casa Branca em 2024, Ron DeSantis, e o Magic Kingdom do ­Disney World. Enquanto a escassez de gasolina irritava os eleitores do condado de Miami-Dade, o republicano disse que tentaria mudar a lei estadual para abrir a ­Disney a novas inspeções e ameaçou construir uma prisão ao lado do parque temático de 69 quilômetros quadrados.

Isso aconteceu depois que DeSantis assinou uma legislação cancelando o controle da Disney sobre um reduto tributário especial, conhecido como distrito de melhora de Reedy Creek, dentro do qual fica o Disney World, que lhe permitia manter seus próprios departamentos de polícia e bombeiros, poderes de planejamento e algumas outras funções públicas.

Como parte dos esforços da Disney para manter o controle, ele citou um documento aprovado pelo conselho de Reedy Creek, simpatizante da Disney, afirmando que os privilégios da empresa permanecerão até “21 anos após a morte do último sobrevivente dos descendentes do rei Charles III, da Inglaterra, que viva a partir da data desta declaração”.

Maior empregadora do estado, a Disney usou as “cláusulas reais” para contornar as regras que proíbem convênios legais que duram perpetuamente. Em reação, o advogado de um conselho de supervisores distritais pró-DeSantis disse que a iniciativa estava repleta de “impropriedade processual e ilegalidade” e as cláusulas “não resistiriam a qualquer escrutínio judicial”.

No cerne da disputa DeSantis vs. ­Disney está algo muito maior do que os dois: as guerras culturais renovadas e intensificadas nos EUA. DeSantis, com os olhos fixos em atrair a base de Donald Trump, posicionou-se como um guerreiro da extrema-direita. Já o principal chefe da Disney, Bob Iger, quer uma clientela diversificada e tem antipatia pelas ações de DeSantis.

A batalha DeSantis vs. Disney começou com a aprovação de uma controversa lei, em março de 2022, que proibiu o ensino em sala de aula sobre orientação sexual e identidade de gênero. A legislação – imitada por outros governos estaduais de direita nos EUA – foi aprimorada na semana passada com projetos de lei separados aprovados pelo Legislativo da Flórida, dominado por republicanos, sobre uso de banheiros unissex e manter as crianças afastadas dos shows de travestis.

Sob o antecessor Bob Chapek, a ­Disney falhou em articular sua oposição à lei, abrindo a empresa para críticas internas e externas de que ela também era discriminatória. Chapek mais tarde se desculpou: “Você precisava de mim para ser um aliado mais forte na luta por direitos iguais e eu o decepcionei”. Iger foi mais franco, criticando a legislação e dizendo aos funcionários que inclusão e aceitação estão entre os “valores centrais” da empresa.

Na verdade, a batalha da Disney com o estado da Flórida vai além do tempo de DeSantis como governador e destaca o papel improvável da empresa como uma força nos direitos dos homossexuais. Em 2007, a Disney mudou sua política para permitir que casais do mesmo sexo participassem do popular programa ­Fairy Tale Wedding, que anteriormente excluía casais queer de comprar pacotes ao exigir uma certidão de casamento válida na Califórnia ou na Flórida, estados que não reconheciam o casamento gay.

“No fim das contas, eles estão no negócio para ganhar dinheiro”, lamentou à época o reverendo Steve Smith, da Primeira Igreja Batista em Orlando. Os pacotes de casamento oferecidos in­cluíam o trajeto até a cerimônia na carruagem da Cinderela, trompetistas fantasiados e uma escolha de personagem para comparecer, desde Minnie e Mickey Mouse vestidos em trajes formais ou os sete anões servindo como pajens. Grupos religiosos conservadores também boicotaram a Disney por causa de políticas que davam benefícios de saúde a parceiros do mesmo sexo de funcionários, permitindo comemorações do “Dia Gay” em seus parques temáticos.

O entrevero começou quando a empresa se opôs à lei da Flórida que censurou o debate sobre a identidade de gênero nas escolas

A Disney também foi criticada anteriormente por grupos pró-LGBTQ+ alinhados aos democratas, por não incluir personagens abertamente gays em filmes ou defender os direitos humanos, inclusive em 2020, quando partes de Mulan foram filmadas em Xinjiang, onde uigures muçulmanos foram detidos em campos de concentração pelas autoridades chinesas.

“A esquerda costumava criticar a maneira como o Estado e as corporações estavam juntos na cama. Aparentemente, hoje eles estão em desacordo”, diz o historiador da Disney Peter C. Kunze. “É chocante que uma empresa criticada por nós, da esquerda, agora precise se defender do autoritarismo.”

Kunze escreveu sobre a hesitação da Disney em defender a diversidade e sua dívida com criadores gays que ajudaram a manter a empresa à tona durante seu nadir criativo, na década de 1980. No lado prático, o historiador credita ao letrista e diretor gay Howard Ashman pela criação do modelo musical animado da ­Disney que produziu A Pequena Sereia, A Bela e a Fera e Aladdin, todos de muito sucesso.

“A fantasia muitas vezes anda de mãos dadas com o brega, um dos pilares da cultura gay”, escreveu o autor Sean Griffin em um estudo sobre a Disney e a comunidade gay, Tinker Belles and Evil ­Queens. Mas foi somente seis anos atrás, em 2017, que a Disney promoveu LeFou como seu primeiro personagem “assumidamente gay” no remake ­live-action de A Bela e a Fera.

Para Kunze, DeSantis e Disney terão de dar um jeito de conviver. Até mesmo a ameaça do governador de construir uma prisão adjacente provavelmente é apenas bravata. “A Disney possui muitas terras ao redor do parque. É, inclusive, intencional que você não possa ver nada lá fora.”

Outras ameaças parecem mais concretas. Os democratas da Carolina do Norte apresentaram um projeto de lei para o parque se mudar para seu estado. Chamada de “Lei de Restauração da Liberdade de Mickey”, a proposta criaria uma comissão para explorar “planos estratégicos de incentivo econômico projetados para encorajar parques familiares a se expandirem ou se mudarem” para a Carolina do Norte.

“A Flórida não parece uma boa opção para o lugar mais feliz do mundo hoje em dia. Na Carolina do Norte, ‘vocês todos’ ainda significa ‘todos’”, escreveu o líder da minoria no Senado da Carolina do Norte, Dan Blue, no Twitter. •


Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves. 

Publicado na edição n° 1257 de CartaCapital, em 03 de maio de 2023.

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