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Como cutucar a onça
O Tribunal Penal Internacional transforma Putin em criminoso de guerra
Quatro dias antes de receber Lula em Pequim, com quem discutirá, entre outros temas, a invasão da Ucrânia, o presidente da China, Xi Jinping, visitou Moscou para dar uma força ao “querido amigo” Vladimir Putin. Embora Jinping tenha apresentado uma proposta de paz elogiada pelo aliado e afirmado a Putin que “a maioria dos países apoia uma redução das tensões” e “historicamente, os conflitos sempre foram resolvidos com base no diálogo e na negociação”, a deferência teve o intuito de endossar a posição do Kremlin na disputa com o Ocidente, um reforço à histórica aliança firmada no ano passado entre as duas potências – uma econômica, outra nuclear. O encontro foi precedido por uma crítica chinesa à decisão do Tribunal Penal Internacional de expedir, na sexta-feira 17, um aviso de prisão contra o mandatário russo por alegados crimes de guerra. “O TPI deve adotar uma postura objetiva e imparcial, respeitar a imunidade jurídica dos chefes de Estado e evitar a politização e a duplicidade de critérios”, afirmou Wang Wenbin, porta-voz do Ministério dos Negócios Estrangeiros. “Não pode haver dois pesos e duas medidas.”
Putin é o terceiro chefe de Estado em pleno exercício da função a ter contra si um mandado de captura do tribunal e agora figura ao lado do sudanês Omar al-Bashir e do líbio Muammar Kadhafi. Em comunicado, o TPI atribuiu ao russo a culpa pela deportação ilegal de civis, sobretudo crianças, em áreas da Ucrânia. “Os crimes foram supostamente cometidos em território ucraniano ocupado ao menos desde 24 de fevereiro de 2022”, descreve o texto. “Há motivos razoáveis para acreditar que o senhor Putin tem responsabilidades criminais individuais pelos crimes mencionados.” As reações foram as esperadas. Enquanto o governo ucraniano e aliados comemoraram a decisão “histórica para o sistema jurídico internacional”, o Kremlin definiu o mandato como irrelevante e lembrou que o país não reconhece a jurisdição da Corte. “Dessa forma”, desdenhou o porta-voz Dmitry Peskov, “quaisquer decisões dessa natureza são nulas e inválidas para a Federação Russa, do ponto de vista jurídico.”
Aliada do Kremlin, a China pediu “postura objetiva e imparcial” do TPI
A chance de Putin ser preso por determinação do TPI, como lembra Peskov, é nula não apenas pelo fato de Moscou não dar a mínima para as decisões da Corte ou para a opinião de qualquer outra instituição defensora dos direitos humanos. Só uma improvável reviravolta na guerra que resultasse em uma acachapante derrota da Rússia e na deposição do seu líder criaria as condições necessárias para o cumprimento da determinação. Mais. Esse plot twist típico de Hollywood, para ser bem-sucedido, ainda precisa eliminar da trama a hipótese nada desprezível de um acuado e humilhado Putin recorrer ao arsenal nuclear sob seu controle e colocar um termo na aventura humana na Terra, a fim de evitar um julgamento por eventuais crimes de guerra. Convenhamos: se os analistas internacionais querem acreditar que a vida imita o cinemão norte-americano, o mais sensato é enxergar no presidente russo a “obstinada” personagem de Jean-Claude van Damme no clássico da Sessão da Tarde Retroceder Nunca, Render-se Jamais.
Segundo o norte-americano Joe Biden e vários líderes europeus, a determinação do TPI enfraquece a posição de Putin e tende a produzir efeito psicológico negativo nas tropas russas. Faltam evidências. Por ora, a heterodoxa decisão teve o condão de lançar dúvidas sobre a independência da Corte. “O mandado gera desconfiança e afeta a credibilidade do tribunal”, afirma Reginaldo Nasser, professor de Relações Internacionais da PUC de São Paulo. “Por que alguns são condenados e outros não?” Nasser, entre tantos exemplos ao longo da história, lembra as acusações de tortura e assassinatos de civis atribuídas ao exército dos Estados Unidos na Guerra do Iraque, invasão que completa 20 anos, relembrada em reportagem de The Observer à página 46. O mandado de captura, acrescenta o professor, cria outro empecilho às emperradas negociações de paz. “Para o TPI, Putin é um criminoso”, ressalta. “É possível estabelecer diálogo com quem é acusado de cometer tantas barbaridades?” Parênteses: a exemplo de Moscou, Washington não reconhece nem se submete à jurisdição do tribunal, o que não impediu Biden de avalizar o despacho. “Ele claramente cometeu crimes de guerra. Acho justificado, ponto muito forte.”
No campo de batalha, onde os dramas reais se desenrolam, o fim do inverno vem acompanhado da promessa de recrudescimento do conflito. Os Estados Unidos prometem acelerar o envio de 31 tanques Abrams às tropas de Volodymyr Zelensky, mas Kiev não deve se animar (os equipamentos devem chegar, na melhor das hipóteses, no próximo outono europeu). Enquanto isso, os mercenários do Grupo Wagner, que acumulam poder e influência no Kremlin, alertaram Moscou a respeito de uma provável ofensiva ucraniana ao leste, principal palco da guerra, para quebrar a comunicação entre as linhas inimigas. Em alerta a Sergey Shoigu, ministro da Defesa russo, o proprietário do Wagner, Yevgeny Prigozhin, afirmou que os ataques podem acontecer no fim de março ou início de abril. “Tomem as medidas necessárias para evitar que a companhia militar seja isolada das principais forças do exército, o que levará a consequências negativas para a operação militar especial.” No fim do mês, a invasão completa 400 dias. O despacho do TPI joga mais lenha na fogueira, bem como o anúncio do Reino Unido de enviar munição com urânio empobrecido a Zelensky. Diante dos rumores, Shoigu voltou a ameaçar com o Armagedom. A remessa britânica, disse, encurta o caminho da “colisão nuclear” entre a Rússia e o Ocidente. “Outro passo foi dado e restam cada vez menos.” •
Publicado na edição n° 1252 de CartaCapital, em 29 de março de 2023.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Como cutucar a onça’
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