Boaventura de Sousa Santos

Doutor em Sociologia do Direito pela Universidade de Yale e Professor Catedrático Jubilado da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra. Diretor do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra e Coordenador Científico do Observatório Permanente da Justiça Portuguesa.

Opinião

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O fim da justiça universal

Senões a respeito do mandado de captura de Vladimir Putin

O presidente da Rússia, Vladimir Putin. Foto: Sergei Karpukhin/SPUTNIK/AFP
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O mandado de captura emitido pelo Tribunal Penal Internacional contra Vladimir Putin terá repercussões distintas daquelas invocadas tanto pelos EUA quanto pela Rússia. Para os EUA, Putin, que ainda não foi sequer acusado, é criminoso de guerra, pária internacional, devendo ser preso na próxima oportunidade. Para a Rússia, o mandado não tem qualquer valor jurídico e não terá qualquer eficácia, sendo apenas mais um ato de propaganda do Ocidente. É impossível saber qual das duas leituras prevalecerá. Debruço-me sobre as repercussões menos hipotéticas e mais reais porque observáveis a olho nu e desde já. O mandado de captura é semelhante às sanções econômicas impostas à Rússia. As suas repercussões serão reais, mas não aquelas oficialmente propostas.

A primeira repercussão reside no impacto num qualquer processo de paz sobre a Ucrânia. Suspeitava-se que os EUA não estavam interessados em negociações e acrescentava-se que o desinteresse era partilhado pela Rússia. A suspeita está hoje confirmada. Os EUA não negociarão qualquer processo de paz. Isto significa que jogam tudo na queda de Putin. Como esta não é previsível, ao menos a curto prazo, o povo ucraniano vai continuar a ser martirizado e os soldados ucranianos e russos vão continuar a morrer. Os possíveis e bem-intencionados mediadores internacionais podem, por agora, dedicar-se a outras tarefas mais realistas.

A segunda diz respeito ao impacto do mandado de captura no princípio da justiça universal de que a criação do TPI é uma das manifestações mais concludentes. Esse mandado de captura significa o descrédito total desse princípio. A credibilidade do TPI estava afetada desde o início, quando nenhuma das grandes potências (EUA, China, Rússia) assinou o tratado que o fundou. Declararam em alto e bom som que não se sentiam vinculados por qualquer decisão do TPI. Os EUA foram particularmente veementes nessa posição e, de fato, se atendermos aos paí­ses ou indivíduos objeto de investigação verificaremos que nenhuma investigação foi aceita ou avançou quando os EUA entenderam que tal ia contra os seus interesses. Dois casos ilustram isso bem.

O mandado de captura foi emitido no momento em que se assinalavam os 20 anos da invasão ilegal do Iraque por parte dos EUA. Uma invasão duplamente ilegal porque contra a decisão do Conselho de Segurança e assente na falsa premissa da existência de armas de destruição massiva. Tal como Putin, George W. Bush imaginava que a guerra duraria pouco tempo e seis semanas depois declarou triunfalmente: “Missão cumprida”. Na realidade, a guerra terminou oficialmente oito anos depois, deixando o país destruído e cerca de 300 mil civis iraquianos mortos. Não houve nenhum mandado de captura contra Bush Jr., mas há agora contra Putin e note-se que este não é acusado de mortes, mas da deportação de crianças, um tema em si mesmo complexo, pois na Segunda Guerra Mundial foi comum ­evacuar crianças em zonas de guerra como medida de proteção. Não digo que tenha sido este o caso, mas torna-se claro que a gravidade relativa dos crimes não é um dos critérios para a intervenção do TPI.

O segundo exemplo diz respeito à decisão do TPI de março de 2021, no mandato da anterior procuradora, de abrir um inquérito sobre os alegados crimes de guerra cometidos por Israel nos territórios ocupados da Palestina desde junho de 2014. O inquérito fora pedido pelo Estado Palestino em 2018. Não se tratava de mandado de captura, apenas o início de um inquérito. A reação dos EUA, da Alemanha e de outros países aliados contra a decisão foi a mais veemente possível. A administração Trump chegou a impor sanções ao procurador do TPI e aos seus colaboradores seniores. Biden levantou as sanções, mas se declarou muito preocupado com a intenção do tribunal de exercer jurisdição sobre pessoal israelita. É hoje evidente que as instituições internacionais (e não apenas o TPI) só funcionam eficazmente na medida em que sirvam ou não contrariem os interesses dos EUA. A duplicidade de critérios é tão aberrante que o TPI dificilmente sobreviverá à caricatura que faz de si mesmo.

A terceira repercussão é que tudo aponta para o descalabro total das “relações internacionais baseadas em regras”. A invasão ilegal da Ucrânia foi obviamente uma machadada nesse princípio, e seguiram-se-lhe muitas outras por todas as partes no conflito. A duplicidade de critérios em julgá-las atinge tal gravidade que podemos estar a entrar inexoravelmente no período prévio a uma nova guerra mundial. Vão-se fechando sucessivamente todas as portas por onde um abrandamento das tensões podia passar. Submete-se a estresse extremo as instituições que podiam regular o conflito. No dia 1° de abril, o país comandado por um suposto criminoso de guerra presidirá (pela rotatividade) às sessões do Conselho de Segurança da ONU. Que impacto terá isso? Que mundo é este? Que futuro nos espera? •

Publicado na edição n° 1252 de CartaCapital, em 29 de março de 2023.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘O fim da justiça universal’

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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