Mundo
Bezerro de ouro
Nas eleições argentinas, o falso profeta Javier Milei volta-se contra o compatriota “papa comunista”
Em um canto do ringue está Javier Milei, de 52 anos, que se autodenomina ex-treinador de sexo tântrico, anarcocapitalista outsider e favorito nas próximas eleições presidenciais da Argentina. No outro, um compatriota, o papa Francisco, 86 anos, defensor mundial dos pobres, repetidamente ridicularizado pelo presidenciável argentino como “um maldito comunista” e “o representante do maligno na Terra”, por promover a doutrina da “justiça social” em prol dos desfavorecidos.
Milei, um desconhecido político até 2020, prometeu travar uma “batalha cultural” para transformar a Argentina num paraíso libertário, onde a eficiência capitalista substitui a assistência social, os impostos são reduzidos ao mínimo e indivíduos sem dinheiro podem vender seus órgãos corporais no mercado aberto. De Roma, o papa Francisco expressou grande preocupação com o surgimento de políticas tão insensíveis em sua terra natal. “A extrema-direita sempre se reconstrói, é o triunfo do egoísmo sobre o comunitarismo”, lamentou em uma entrevista televisiva em março, quando foi questionado sobre as próximas eleições na Argentina. Em palavras que pareciam se referir a Milei, o único candidato na votação de 22 de outubro sem experiência política anterior a 2021, o papa acrescentou: “Tenho pavor de salvadores da pátria sem histórico de partido político”.
A doutrina papal de justiça social é sinônimo de roubo para o partido Liberdade Avança, de Milei, porque depende das receitas fiscais. “Jesus não pagava impostos”, tuitou Milei certa vez, marcando a conta oficial do Papa. No discurso de vitória das primárias, em 13 de agosto, Milei, de cabelos desgrenhados, prometeu o fim dos benefícios do governo porque são “baseados naquela atrocidade que diz que onde há uma necessidade nasce um direito, sua máxima expressão sendo a aberração chamada justiça social”. Não bastasse, Milei trollou Francisco com tuítes tóxicos e repetitivos, chamando-o de “bosta comunista” e “pedaço de merda”, acusando o pontífice de “pregar o comunismo no mundo”.
O papa Francisco diz ter sérias preocupações sobre o aumento de políticas insensíveis em seu país natal. Juan Grabois, um peronista progressista com ligações estreitas com o pontífice, e que perdeu a candidatura peronista para o atual ministro da Economia, Sergio Massa, chama Milei de “falso profeta”, mas atribui sua ascensão à terrível crise econômica da Argentina. “Com inflação superior a 115% e queda de 25% no poder de compra dos trabalhadores informais nos últimos sete anos, os eleitores teriam de possuir uma maturidade política impossível para votar novamente naqueles que falharam”, disse Grabois ao Observer.
Os eleitores desencantados tanto com o partido de direita Juntos pela Mudança, no poder até 2019, quanto com os peronistas em exercício migraram em massa para o novato Milei. “A música do flautista soa doce para aqueles que perderam toda a esperança. Não faz sentido culpar os eleitores ou o próprio flautista, temos de abordar os erros cometidos por aqueles que têm um conceito humanista de política”, disse Grabois.
“Humanista” não é um termo que possa ser aplicado à economia de Milei. Além de legalizar a venda de órgãos, sua agenda espinhosa propõe “dinamitar” o Banco Central, abolir o sistema de ensino público da Argentina e desmantelar os serviços de saúde gratuitos. Milei também está entrando destemidamente em território anti-woke, dizendo que vai restabelecer a proibição do aborto, legalizado em 2020, fechar o Ministério da Mulher, do Gênero e da Diversidade, bem como os Ministérios da Ciência – “as alterações climáticas são uma mentira socialista” –, Saúde, Educação, Trabalho e Obras Públicas. Promete, ainda, liberar a venda de armas de fogo.
“Jesus não pagava impostos”, tuitou o presidenciável certa vez, marcando a conta de Francisco
Apesar dessa mistura inebriante, Milei obteve 30% dos votos nas primárias abertas no início de agosto, contra 28% de Patricia Bullrich, do Juntos pela Mudança, e 27% do candidato peronista Massa. A ascensão de Milei foi simplesmente hipnótica. Antigo economista do bilionário argentino Eduardo Eurnekian, ele se tornou uma estrela de televisão há cinco anos como um economista de cabelos rebeldes e treinador de sexo tântrico que se gabava no ar de sua resistência sexual e de seu gosto por sexo a três, garantindo sua constante participação em talk shows diurnos.
Essas explosões na televisão fizeram muitos se perguntarem se Milei poderia ficar perturbado sob o estresse de uma eventual presidência. “O que acontece se um país instável for governado por um líder instável?”, indaga o jornalista Juan González, autor de uma biografia de Milei intitulada El Loco (O Louco). “Estou preocupado com que ele realmente tente levar adiante suas teorias econômicas impraticáveis, devastando ainda mais a economia e provocando violenta agitação social.”
Milei está ciente da probabilidade de protestos violentos nas ruas. “Vou colocar na cadeia os dirigentes daqueles que atiram pedras e, se cercarem a Casa Rosada (o palácio presidencial), vão ter de me carregar morto”, disse. De forma pragmática, ele anunciou planos para incorporar os militares no combate às “novas ameaças” das gangues do narcotráfico, dos traficantes de seres humanos e dos eventuais conflitos internos.
Num país que celebrará quatro décadas de democracia ininterrupta, quando o novo presidente tomar posse, em 10 de dezembro, a perspectiva de os militares reassumirem um papel nos “conflitos internos” está disparando os alarmes. “A remilitarização da segurança e da inteligência está sendo proposta com comandos militares prontos para uma rápida intervenção estratégica em nível nacional: essa ideia de segurança nacional é muito problemática”, disse Paula Litvachky, diretora da organização de direitos humanos Centro de Estudos Jurídicos e Sociais.
O papa não disse se as tiradas de Milei o irritaram. “Sei que dizem coisas sobre mim, mas ignoro isso por causa da minha saúde mental”, afirmou Francisco em recente entrevista. “Vou orar por eles.” •
Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves.
Publicado na edição n° 1275 de CartaCapital, em 06 de setembro de 2023.
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