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A Deus e ao diabo

Em crise, Javier Milei pede desculpas ao papa Francisco e negocia novos nacos de poder com Mauricio Macri

Por via das dúvidas. Milei levou dulce de leche para Bergoglio. Na volta a Buenos Aires, terá de engolir o remédio da coalizão com Macri – Imagem: Vatican News/AFP e Isac Nóbrega/PR
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Na manhã do domingo 11, ­Javier Milei assistiu em companhia do papa ­Francisco à canonização de Mama Antula, a primeira santa nascida na Argentina. Não haveria ambiente mais propício para se operar um “milagre” e o visitante não perdeu a oportunidade. Milei levou doce de leite ao conterrâneo Jorge Bergoglio, abraçou o pontífice efusivamente, como se estivesse diante de um velho amigo e não da “encarnação do mal na Terra”, segundo suas próprias palavras durante a campanha eleitoral, e redimiu-se. Francisco, afirmou em entrevista a um canal de tevê do grupo fundado por Silvio ­Berlusconi, é a “pessoa mais importante de toda a ­Argentina”. Dias antes, para não perder a viagem e os holofotes, Milei havia chorado de maneira compulsiva aos pés do Muro das Lamentações, em Jerusalém, e prometido converter-se ao judaísmo.

Apelar a todos os santos, sem abrir mão, claro, das orientações do espírito do cachorro morto, revela a profundidade do impasse do presidente argentino, mal completados dois meses de mandato. A derrota no Congresso da lei-ônibus, cartapácio com mais de 600 artigos que pretendia alterar profundamente o ordenamento jurídico e econômico do ­país e conceder poderes quase ditatoriais ao mandatário, deu cabo da blitzkrieg de Milei e expôs o amadorismo do governo. A tentativa de empunhar uma bandeira moral, a derrubada da legislação a favor do aborto, apresentada na sequência por deputados do partido governista, La Libertad Avanza, não surtiu o efeito mobilizador desejado. Pudera. Os argentinos estão mais preocupados com o galope da inflação, reavivada pelo corte de diversos subsídios a alimentos e transportes, e a queda nos rendimentos.

Milei, por precaução, também se mostra propenso a acender uma vela ao diabo. Outra, diga-se. O ex-presidente ­Mauricio Macri, relata a mídia argentina, está prestes a tornar-se de vez o Rasputin do governo “libertário”, por meio de uma aliança formal entre La Libertad Avanza e o Proposta Republicana, legenda fundada e comandada por Macri. “Vem aí uma nova reformulação política”, anunciou Patricia Bullrich, ministra da Defesa responsável pela repressão aos protestos crescentes. A palavra mais adequada seria intervenção. Os macristas projetam para março o clímax da insatisfação popular, quando as medidas de ajuste serão sentidas com mais intensidade. Atualmente, perto de 45% da população vive abaixo da linha da pobreza e o índice tende a subir, por conta da disparada nos preços, queda no poder de compra, aumento do desemprego e estagnação. Em janeiro, Luis Caputo, ministro da Economia indicado por Macri, comemorou um superávit primário, obtido à custa do corte nos programas sociais e na retenção de despesas fundamentais ao funcionamento da máquina pública. “Este não é um acordo parlamentar, é um acordo para governar. Se não os apoiarmos, eles cairão”, confidenciou ao diário Página 12 um aliado do ex-presidente. Líder da opositora Unión ­Cívica Radical, Martín Losteau, chama o arranjo de “mileimacrismo” ou “macrimileísmo”. “O PRO apoia tudo para estar no governo, agora ou depois. O desejo é fazer parte da próxima etapa de substituição do gabinete. Estar no poder, independentemente de quem o ocupe”. Em resumo, o “Centrão” argentino chegará mais cedo ao poder do que se imaginava.

O ex-presidente comanda o Centrão argentino. As castas subjugaram o “libertário” em menos de 60 dias

Há ainda uma pressão dos exportadores e de multinacionais para o governo apressar a dolarização da economia, promessa de campanha de Milei adiada para uma segunda etapa do ajuste. Antes reticente, Caputo dá sinais de ter sido convencido da proposta. O ministro compartilhou nas redes sociais uma mensagem em vídeo de Steve Forbes, editor da publicação de negócios dos Estados Unidos que leva o sobrenome da família, dirigida ao presidente. “Você pode fazer isso agora mesmo. Os opositores afirmam que a Argentina não tem dólares americanos suficientes para trocá-los por pesos, mas não é verdade. Seu governo já tem dólares suficientes para comprar todas as notas e moedas de peso em circulação.”

A exemplo das medidas da lei-ônibus, o maior desafio da dolarização está na Justiça. Um mês antes das eleições do ano passado, o presidente do Superior Tribunal, Horacio Rosatti, posicionou-se a respeito do tema. “Se a dolarização elimina a moeda argentina, é inconstitucional”, declarou na ocasião. “Leiam a Constituição. Devemos ter uma moeda emitida na Argentina. Não é possível regular o valor da moeda de outro país. Essa fantasia deve acabar.”

Negociar com a “velha casta” política e manter o clima de campanha – na entrevista à tevê italiana, Milei disse sentir “profundo desprezo pelo Estado, (…) a maior associação criminosa do mundo” –, parece insuficiente. Segundo o “Monitor de Humor Social e Político” da consultoria D’Alessio IROL, com dados coletados em janeiro, 50% dos argentinos desaprovam o governo, contra 47% de aprovação. Houve aumento de 6 pontos porcentuais na rejeição ao “libertário” desde a posse. Inflação (89%), instabilidade econômica (71%) e violência (62%) ocupam o topo das preocupações dos entrevistados. Por ora, resta aos argentinos pedir uma intervenção divina a Santa Mama Antula. •

Publicado na edição n° 1298 de CartaCapital, em 21 de fevereiro de 2024.

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