Justiça

Sócio de mineradora, juiz atuou em julgamento sobre lei que beneficia garimpos no Mato Grosso

Orlando de Almeida Perri defendeu setor em julgamento sobre lei estadual suspensa pelo TJ-MT e que afrouxa regras ambientais para mineração; CNJ abriu investigação preliminar

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Por Daniel Camargos e Daniel Haidar, da Repórter Brasil

Sócio majoritário de uma mineradora que tem negócios com um garimpeiro investigado pela Polícia Federal por uso de mercúrio ilegal para extração de ouro, o desembargador Orlando de Almeida Perri, do Tribunal de Justiça do Mato Grosso (TJ-MT), atuou na corte em um julgamento decisivo para o setor mineral no estado.

“Precisamos acabar com essa ‘esquizofrenia’ [de] que a mineração acaba com o meio ambiente”, afirmou Perri, durante sessão em fevereiro de 2022. Na ocasião, o tribunal votava a suspensão, em caráter liminar (provisório), de uma lei estadual que liberava a extração de minérios nas chamadas “reservas legais” — áreas de propriedade privadas com vegetação nativa preservada.

Perri virou alvo de uma investigação preliminar do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) sobre uma possível violação de deveres. Ele é sócio majoritário da MVP Participações. A empresa tem dois pedidos de pesquisa de ouro aprovados pela Agência Nacional de Mineração (ANM) e sociedade com outras quatro mineradoras. 

A Lei Orgânica da Magistratura Nacional (Loman) permite que juízes sejam sócios ou quotistas de empresas. Contudo, o Código de Ética da Magistratura, do CNJ, diz que “o magistrado não deve exercer atividade empresarial, exceto na condição de acionista ou cotista e desde que não exerça o controle ou gerência”, segundo seu artigo 38.

Procurado pela Repórter Brasil, o desembargador afirmou que desconhecia qualquer decisão do CNJ que proibisse magistrados de ter participação majoritária em empresas. Argumentou ainda que sempre agiu “de boa-fé” e que nunca sofreu nenhuma advertência em quase 40 anos de magistratura. 

Bate-boca em julgamento

Na sessão de fevereiro do ano passado, os magistrados do TJ-MT analisaram um pedido do Ministério Público do Estado de Mato Grosso (MP-MT) para considerar inconstitucional a Lei Complementar Estadual 717, de janeiro de 2022, aprovada pelos deputados estaduais e sancionada pelo governador Mauro Mendes (União Brasil).

O texto permitia que áreas da reserva legal de propriedades rurais particulares fossem exploradas economicamente, inclusive com garimpos, desde que os proprietários compensassem o impacto ambiental por meio de outros terrenos.

Contudo, para o MP estadual, a lei representa um “claro estímulo às fraudes” e tem o potencial de agravar o desmatamento no estado. Apesar de a liminar derrubando a legislação ter sido aprovada pelo TJ-MT, o julgamento do mérito da ação movida pelo MP ainda não foi realizado e não tem data para ocorrer.

Durante a leitura do voto da relatora Nilza Maria Pôssas de Carvalho, a favor da suspensão provisória da lei, Perri manteve um semblante visivelmente contrariado. Na sequência, ele foi o primeiro a falar e pediu vista, ou seja, mais tempo para se debruçar sobre o assunto – o que impediria a análise da liminar naquela sessão.

“Nós somos um dos estados mais ricos em minério do Brasil. E se nós, repito, continuarmos com essa ‘esquizofrenia’, nós vamos limitar a atividade econômica impedindo o crescimento desse estado”, argumentou.

As declarações do magistrado geraram incômodo em alguns colegas. Pelo menos três desembargadores afirmaram que os impactos ambientais causados pela mineração são irrecuperáveis. Um deles, Marcos Machado, disse que Poconé “está sendo engolida pela mineração”. O município é a porta de entrada do Pantanal mato-grossense e um dos locais onde a MVP atua.

Imagem aérea de mineração no município de Poconé – MT (Imagem: Fernando Martinho)

Perri, então, se exaltou e disse que “não viu notícia no jornal” de que empresários da mineração estariam destruindo o meio ambiente no estado. Afirmou ainda que a mineração em Poconé ocorre há 30 anos e que todos os lados precisam ser ouvidos no debate. “Não apenas os ambientalistas”, disse.

Por fim, Perri voltou atrás em seu pedido de vista. A mudança de postura permitiu a análise da liminar, que acabou aprovada de forma unânime.

“Eu não tenho problema em acompanhar a desembargadora [na concessão da liminar], desde que retomemos esse debate sem paixões”, afirmou Perri. “Eu vou olhar para essa questão como sempre fiz, com muito cuidado, não com paixão ou esquizofrenia”, rebateu a relatora Nilza de Carvalho.

À Repórter Brasil, Perri afirmou que suas declarações no julgamento não tinham interesse em favorecê-lo pessoalmente. “Eu tenho apenas uma empresa com possibilidade de ser uma mineradora. Quando eu questionei o voto da relatora, não fiz por interesse na mineração. Não faria isso nunca”, afirmou.

Sobre a MVP Participações, Perri sustenta ter “integralizado” o capital social da empresa com uma sala comercial, avaliada em cerca de R$ 200 mil. “Se eu tivesse colocado outra pessoa na integralização de uma propriedade minha, estaria usando alguém como laranja”, explica.

O desembargador afirmou ainda que poderia transferir suas cotas na empresa para a filha ou para a esposa — o que, na sua visão, resolveria os questionamentos. “Para mim, os 85% de participação não são posição de controle”, acrescentou.

Conflito de interesses

Perri tem 85% do capital social da MVP, segundo documentos obtidos pela Repórter Brasil. Sua esposa detém 12,5% e o restante cabe ao sobrinho, Willian Marcel Grunemberg, responsável pela administração da companhia.

Grunemberg ocupa um cargo comissionado na Casa Civil do governo de Mato Grosso e já foi assessor lotado no gabinete do governador Mauro Mendes. À reportagem, ele disse que “não há conflito de interesse” entre sua função pública e sua participação na MVP, “pois a referida empresa não tem nenhuma atividade de mineração em andamento e a inclusão como sócio-administrador foi um equívoco já regularizado”.

Apesar de Perri não figurar no quadro social da MVP como gestor, ele não poderia atuar como juiz por ser sócio majoritário da empresa, opina Gustavo Sampaio Ferreira, professor de direito constitucional da Universidade Federal Fluminense (UFF).

“Quando um magistrado tem 85% de uma sociedade, ele está impedido de exercer a magistratura, porque tem o controle da sociedade. Se o sobrinho gerencia a empresa, isso não o isenta da vedação”, diz.

Mesmo que não fosse sócio majoritário, o desembargador não poderia participar do julgamento de fevereiro de 2022 no TJ-MT devido a “conflito de interesses”, afirma Sampaio. “Se o magistrado tem envolvimento com um setor privado, ele não pode sob pretexto algum julgar matérias no tribunal de interesse desse setor. É gravíssimo”, avalia.

Ex-conselheiro do CNJ, Marcelo Nobre afirma não conhecer detalhes do caso, mas diz que a orientação do órgão aponta para a impossibilidade de magistrados acumularem funções judiciais com participação na iniciativa privada. “Se quisesse continuar na magistratura, o juiz só tinha como possibilidade exercer o magistério. Não pode ser sócio ou administrador de empresa”, sustenta. 

Negócios com investigados 

A MVP tem duas autorizações para pesquisa de minério de ouro aprovadas pela ANM. Segundo o órgão federal, a área de interesse da mineradora em Poconé foi negociada por meio de um contrato de “cessão parcial” com Valdinei Mauro de Souza, o Nei Garimpeiro.

Nei é acusado pelo Ministério Público Federal (MPF) de lucrar R$ 33 milhões com ouro produzido com mercúrio ilegal. A denúncia veio à tona a partir de investigações da Polícia Federal (PF) na Operação Hermes, que corre sob sigilo.

Ele também já foi multado pelo Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente) por danos ambientais em Poconé e no Pará. Uma das empresas de Nei, a Fomentas, foi alvo do Ministério Público do Trabalho (MPT) por supostamente coagir funcionários a votarem em Jair Bolsonaro (PL) na eleição de 2022, para quem o garimpeiro doou R$ 100 mil. 

Desembargador Orlando Perri (de vermelho) ao lado de Nei Garimpeiro (ao centro), antes de sobrevoo em área de garimpo (Imagem: Reprodução/Instagram)

Em nota enviada à reportagem, o advogado de Nei Garimpeiro disse que os contratos de cessão de direitos minerários celebrados por seu cliente “observaram rigorosamente as respectivas normas legais e jurídicas, inclusive perante a Agência Nacional de Mineração e Receita Federal”.

Sobre a investigação da PF, a defesa técnica afirmou que o Tribunal Regional Federal da 3ª Região concedeu habeas corpus e anulou a ordem de busca e apreensão decretada na Operação Hermes, “tendo em vista a ausência de indícios mínimos de autoria e materialidade delitiva, em relação ao empresário Valdinei Mauro de Souza e seus familiares”.

Autorizações da ANM

As autorizações para pesquisa de minério de ouro requisitadas pela MVP, e concedidas pela ANM, foram assinadas por Levi Salies Filho, um ex-funcionário do TJ-MT nomeado por Perri para a direção da escola de servidores do tribunal, no período em que o desembargador presidiu o tribunal (de 2013 a 2015).

Salies Filho passou a chefiar o escritório regional da ANM em Mato Grosso pouco depois de o desembargador criar sua empresa de mineração, em 2021. A data da abertura da MVP na Junta Comercial do Mato Grosso ocorreu em 28 de setembro daquele ano. Já a nomeação Salies Filho como gerente regional da ANM se deu em 23 de novembro. 

Em entrevista à Repórter Brasil, Salies Filho negou qualquer favorecimento ao magistrado. “Existe um corpo técnico que analisa tanto a outorga quanto a fiscalização [dos pedidos de pesquisa mineral]. Ainda que eu divirja, eu sou obrigado a acatar a decisão técnica”, afirma.

O gerente da ANM alega ainda que, além de contador e bacharel em direito, teve experiência anterior em cargo de gestão como presidente da Agência de Fomento do estado de Mato Grosso (Desenvolve MT), o que lhe credencia para o atual posto. Diz ainda que trabalhou no ramo de mineração antes de ser aprovado em concurso do tribunal em 1999. “Quero crer que o convite para a ANM foi pelo meu perfil técnico”, completa.

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