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Sem leniência

Cresce o movimento em favor da revisão das multas e obrigações draconianas impostas pela Lava Jato às empresas

Em livro, Emílio Odebrecht descreve a “tortura” para assinar o acordo de leniência. A empreiteira de grandes obras, como o Maracanã, foi à lona – Imagem: Carol Garcia/GOVBA e Fundação Norberto Odebrecht
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Meses de permanente “tortura psicológica”. Assim o empreiteiro Emílio ­Odebrecht descreve o período em que ele e outros empresários presos pela Operação Lava Jato estiveram à mercê do então juiz Sergio Moro e da força-tarefa de Curitiba. A descrição consta das páginas do livro Uma Guerra­ ­Contra o Brasil – Como a ­Lava Jato ­Agrediu a ­Soberania ­Nacional, Enfraqueceu a ­Indústria ­Pesada ­Brasileira e Tentou ­Destruir o Grupo Odebrecht, lançado neste mês. Em 320 páginas, o executivo detalha o clima de caça às bruxas. À base de coerções e ameaças, relata o empreiteiro, “foi montada uma fábrica de delações” cujo objetivo principal era levar Lula à cadeia, impedir a candidatura do petista e drenar recursos das empresas “muito além do que elas poderiam arcar”.

Somados, os acordos de leniência impostos às empreiteiras pela Lava Jato, com base na Lei 12.846 de 2013, ultrapassam 40 bilhões de reais. A Advocacia-Geral e a Controladoria-Geral da União impuseram multas de 17,6 bilhões, dos quais metade entrou nos cofres públicos a partir de 2017. Outros 24,7 bilhões de reais foram negociados diretamente pela Procuradoria-Geral da República, entre 2014 e 2022. Neste caso, não se sabe quanto foi ressarcido até o momento, pois os acordos permanecem sob sigilo.

Os acordos levaram ao fechamento de milhões de empregos e inviabilizam a recuperação das companhias

O livro de Odebrecht vem a público em um momento crucial da revisão dos desmandos da “República de Curitiba”, no âmbito criminal, eleitoral e cível. Assim como a parcialidade de Moro reconhecida pelo Supremo Tribunal Federal, a condenação sem provas de Lula e a revisão de diversas decisões da 13ª Vara Federal, os acordos de leniência passaram a ser questionados na Justiça. Por meio de uma arguição de descumprimento de preceito fundamental, três partidos, PSOL, PCdoB e Solidariedade, pedem ao Supremo Tribunal Federal a reanálise dos termos dos acordos e o reconhecimento de um Estado de Coisas Inconstitucional nas negociações, ou melhor, na pressão dos procuradores. A relatoria caberá ao ministro André Mendonça, indicado ao cargo por Jair Bolsonaro.

A pouca transparência dos acordos e o histórico de arbitrariedades da força-tarefa, a começar pela tentativa de Deltan Dallagnol e associados de se apoderar de 2,5 bilhões de reais das multas pagas pelas empresas a pretexto de criar um fundo de “combate à corrupção”, justificam a ADPF e o debate público. Não por acaso, cinco dias antes de ser afastado do comando da 13ª Vara pela Corte Especial Administrativa do Tribunal Federal da 4ª Região, o juiz Eduardo Appio havia determinado a retirada do sigilo do acordo de leniência firmado entre Moro e a Odebrecht. Durante inspeção dos processos, Appio constatou “potenciais ilegalidades” na negociação e na destinação dos recursos. O magistrado encaminhou os documentos ao Tribunal de Contas da União, à Corregedoria Nacional de Justiça e à Polícia Federal. Segundo Appio, o acordo é ilegal por não ter sido intermediado por autoridades do governo brasileiro e por “defender interesses estrangeiros em território nacional”.

O cerco da Lava Jato à Petrobras é caso único no mundo – Imagem: André Ribeiro/Ag.Petrobras

O movimento pela revisão dos tratos ganha, a cada dia, mais adeptos. “Hoje temos certeza de que os acordos de leniência e de delação premiada foram feitos quando a arbitrariedade dava o tom da Lava Jato. Os próprios procuradores admitiram que eram feitas prisões para forçar as delações, e estas estão muito próximas aos acordos de leniência. Então, eles podem e devem ser questionados”, afirma o advogado Antônio Carlos de Almeida Castro, o Kakay. Segundo ele, seria perfeitamente natural uma eventual anulação das obrigações financeiras impostas à Odebrecht. “Um acordo de delação premiada sério prevê como primeiro quesito a espontaneidade. O delator tem de querer fazer a delação por conveniência própria, seja ela qual for. Não é crível que 27 delatores de uma mesma empresa resolvam fazer espontaneamente uma delação na mesma época. O livro do Emílio ­Odebrecht deixa isso muito claro, demonstra a pressão sofrida.”

Um dos autores da ADPF, a pedido dos partidos, Rafael Valim, sócio do escritório Warde Advogados, diz existirem inúmeras irregularidades e estas precisam ser analisadas com rigor. Valim enumera algumas: “Acordos firmados sob coação, desproporcionalidade na fixação de multas e do ressarcimento ao Erário, ausência da AGU e da CGU na celebração dos acordos, celebração de múltiplos acordos, fatos que eram tidos como ilícitos, mas que depois perderam essa qualificação”. Somado à perda de contratos, o rigor excessivo na estipulação dos valores pelo ex-juiz teve o efeito de quebrar as empresas, acrescenta Marco Aurélio de Carvalho, do Grupo Prerrogativas. “O rastro de destruição e miséria deixado pela Lava Jato é indiscutível. Foram mais de 4,4 milhões de postos de emprego desativados em consequência da desestruturação da indústria nacional, notadamente dos setores relacionados a petróleo e gás, construção civil e indústria naval. Perdemos 172 bilhões de reais em investimentos e mais de 50 bilhões de reais deixaram de ser carreados aos cofres públicos sob a forma de impostos.”

No governo Lula, há divergências sobre o assunto. A AGU é contra a revisão dos acordos. E há quem defenda a reanálise apenas dos acertos anteriores a agosto de 2020

Uma regra de ouro criada pela jurisprudência internacional em casos de corrupção associados a empresas com importância estratégica em qualquer país é não confundir os donos ou diretores que cometeram crimes com a companhia em si. Em outras palavras, punam-se os acionistas e executivos, preservem-se os empreendimentos. Regra desprezada por Moro, cujo projeto político, ideológico e partidário ficou claro ao longo da operação. “No conjunto da obra, os acordos de leniência homologados pela Lava Jato ferem o artigo 219 da Constituição, segundo o qual o Estado tem a obrigação de preservar o mercado interno. Acordos de leniência desse tipo, em que muitas empresas quebraram, prejudicam o mercado interno. Logo, prejudicam a sociedade”, analisa Lenio Streck, procurador aposentado e professor de Direito da Unisinos. “O que fizeram foi atirar fora a água suja do banho com a criança dentro. E só o Brasil faz isso. Não aprendeu nada com o mundo.” Streck cita os casos da norte-americana Boeing e da alemã Siemens, conglomerados envolvidos em escândalos de corrupção, mas preservados por seus respectivos governos, devido à importância estratégica na cadeia produtiva e à grande capacidade de gerar postos de trabalho, diretos e indiretos.

A Lava Jato, acredita Kakay, investiu contra a Petrobras por causa dos “enormes interesses financeiros no pré-sal”. O objetivo político de Moro e companhia, prossegue, era claro: “É óbvio que tentaram quebrar alguns setores da economia brasileira para beneficiar grupos estrangeiros que não tinham condições técnicas de competir com os nacionais”. O advogado avalia como incalculável o prejuízo causado ao País. “Foram bilhões e bilhões de reais, sem contar o desemprego. Cidades que viviam do petróleo ficaram completamente desassistidas por causa dessa sanha acusatória que visava benefícios econômicos para outras empresas.” Carvalho, por sua vez, avalia que revisar os acordos de forma a proteger as empresas e, sobretudo, seus trabalhadores não significa abandonar o combate à corrupção, como afirmam os lavajatistas. “O combate à corrupção é sempre muitíssimo oportuno, bem-vindo e saudável. Mas, para que se possa ter credibilidade, é preciso seguir determinadas regras estabelecidas pela legislação constitucional e infraconstitucional vigente. A melhor forma de combater a corrupção é combatê-la corretamente, dentro das regras do jogo. Isso é o que se deseja para Chico e para Francisco.”

A AGU é contra a revisão dos acordos de leniência por temer prejuízos à União – Imagem: Wesley McAllister/AGU

No governo do presidente Lula, principal alvo de Moro, não há consenso a respeito do assunto. Uma parte da administração defende a revisão limitada às leniências firmadas até 6 de agosto de 2020. Naquela data, um Acordo de Cooperação Técnica sob a coordenação do STF devolveu ao Executivo a análise dos processos. Na AGU, nem o “marco temporal” é bem-visto. Segundo uma fonte da Advocacia-Geral, a revisão poderia trazer prejuízos ao Estado. Streck não vê problema em estabelecer uma data. “As leniências firmadas antes da cooperação são exatamente aquelas questionadas no STF, acordos que foram feitos no ambiente hostil e tóxico do lavajatismo. As empresas não tinham liberdade e foram forçadas. Para mim, devem ser revisados os acordos até 2020. Esse marco é muito importante.” Carvalho é outro favorável à limitação temporal. “Essa posição é fruto de uma experiência prática que cada um dos órgãos, AGU e CGU, tem hoje. Não tenho dúvida de que chegarão a uma boa síntese após os debates que o governo seguramente vai promover em razão dessa matéria.”

No livro, Emílio Odebrecht descreve: “O que mais atemorizava cada um de nós era ficar de fora do acordo final. Nossa vida se transformaria em um inferno. Era o que os promotores prometiam”. Em outro trecho, diz que os presos foram “ameaçados, pressionados, submetidos a quase insuportável sofrimento físico e mental”, para concordar com qualquer coisa sugerida por Moro ou pela força-tarefa. “Queriam que falássemos de fulano e sicrano. Os procuradores apontavam o dedo e não tinham limites.” Apesar dos novos relatos, parte importante do conteúdo da delação da Odebrecht permanecerá desconhecida. Segundo documentos do Ministério Público obtidos pelo portal UOL, os sete HDs de computador, com capacidade de armazenamento de 8 terabytes cada um, com os dados dos servidores clandestinos que guardavam as supostas listas de propinas pagas pela empreiteira, foram destruídos por uma broca de aço após determinação da Justiça Federal do Paraná. Descuido? Premeditação? “Como demonstram o apagamento dos HDs e a substituição do juiz Appio, a Lava Jato não acabou”, resume Kakay. •

Publicado na edição n° 1261 de CartaCapital, em 31 de maio de 2023.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Sem leniência’

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