Justiça

‘Risco real para liberdade de imprensa’: a preocupação de especialistas com decisão do STF sobre entrevistas

Termos vagos e lacunas deixadas pela Corte geram reação; entidades devem levar o caso à OEA

A sede do STF, em Brasília. Foto: Divulgação/STF
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A decisão do Supremo Tribunal Federal que prevê a responsabilização de veículos de imprensa por entrevistas com supostos indícios de falsidade abre margem para uma leitura genérica e pode servir de base para restringir a atuação de iniciativas jornalísticas independentes, avaliam especialistas ouvidos por CartaCapital.

Em agosto, a Corte já havia estabelecido ser possível punir os veículos por injúrias, difamações ou calúnias proferidas por um entrevistado. Restava apenas definir uma tese de repercussão geral – isto é, as diretrizes a serem seguidas por todas as instâncias do Judiciário em processos semelhantes.

Em linhas gerais, ficou decidido que a responsabilização poderá acontecer a partir de dois pré-requisitos: se, durante a publicação da matéria, existirem indícios concretos da falsidade da imputação ou se as empresas jornalísticas deixarem de “observar o dever de cuidado na verificação da veracidade dos fatos e na divulgação da existência de tais indícios”.

No caso concreto, o entendimento foi fixado em uma ação na qual o ex-deputado federal Ricardo Zarattini Filho processou o jornal Diário de Pernambuco por danos morais, em razão de uma reportagem publicada em 1995. A matéria imputava a ele, com base em declarações do político pernambucano Wandenkolk Wanderley, a autoria de um atentado a bomba no Aeroporto do Recife em 1966, durante a ditadura militar.

A tese do Supremo também menciona a possibilidade de remoção de conteúdo com “informações comprovadamente injuriosas, difamantes, caluniosas, mentirosas, e em relação a eventuais danos materiais e morais”.

Juristas e pesquisadores ouvidos pela reportagem, contudo, veem lacunas que precisam ser preenchidas com urgência para evitar arbitrariedades na análise de casos concretos.

“São justamente essas pontas soltas em relação à decisão no seu formato atual que representam um risco real para a liberdade de imprensa, se a gente considerar o contexto brasileiro de utilização abusiva da Justiça por parte de agentes públicos e privados para coagir jornalistas”, afirma Artur Romeu, diretor da ONG Repórteres Sem Fronteiras na América Latina.

Outro ponto de preocupação está relacionado ao modo como entrevistas ao vivo poderiam ser enquadradas na regra do Supremo, uma vez que não há tempo hábil para checar todas as informações fornecidas. Com isso, alerta Romeu, essa brecha pode ser utilizada como frente de autocensura pelos veículos jornalísticos.

“Logo, o STF precisa apresentar parâmetros mais concretos no acórdão para reduzir essas ambiguidades. Definir o que seriam esses indícios concretos, que atos poderiam ser considerados provas de devido cuidado jornalístico em relação à veracidades dos fatos, para que jornalistas não se tornem reféns de eventuais arbitrariedades.”

O jurista e professor de Direito Constitucional Lenio Streck segue a mesma posição e argumenta que o Supremo legislou ao criar uma “lei geral e abstrata para o futuro”. A tese, explica ele, pode criar insegurança jurídica no País, porque há espaço para conflitos de interpretação sobre a decisão.

“No caso, fez uma lei tão ampla que nem o Legislativo teria tal pretensão de abrangência. Trata-se de um problema que é maior e vai além desse caso. Os tribunais superiores do Brasil compraram a ideia de que vivemos uma cultura de precedentes”, pontua. “Só que em nenhum país do mundo precedentes são feitos, fabricados, para o futuro”.

Se temos duvidas em relação à decisão é porque ela é muito ampla e enseja várias opiniões. Portanto, é dificil dizer se a decisão se adequa ao Estado democrático ou não. Talvez estejamos discutindo a contradição secundária do problema. O que deveriamos discutir é: qual é a função do Judiciario no Brasil? É estabelecer regramentos para o futuro?

Doutor em Comunicação Social pela Universidade Federal de Minas Gerais, o jornalista Cristian Góes considera que a tese fixada pela Corte abre o caminho para que subjetivismos sejam determinantes no entendimento sobre eventuais casos de má-fé. A decisão, acrescenta o coordenador da Agência Mangue Jornalismo, restringe a atuação de profissionais e organizações que trabalham de forma independente.

A declaração de Góes está ancorada, em grande parte, na batalha travada por ele no Judiciário em 2012 após a publicação da crônica ficcional Eu, o coronel em mim. O texto, cujo protagonista é um coronel imaginário que decide criticar o coronelismo no Brasil, rendeu condenações ao autor nas esferas cível e criminal.

O motivo: um desembargador do Tribunal de Justiça de Sergipe se sentiu ofendido com a expressão “jagunço das leis” e alegou dano à sua honra, apesar de o material sequer mencioná-lo. “Recorremos ao STF e os ministros confirmaram essa aberração. Quem modulará o caso de má-fé [com a nova tese]? Os mesmos que concordam numa sentença penal sem vítima que alguém é culpado porque ‘para bom entendedor, meia palavra basta’?”, questiona.

Por outro lado, o advogado Paulo Iotti diz não ver potencial restrição à liberdade de imprensa no Brasil com a decisão da Corte, porque ela trata apenas de episódios em que há “evidente violação à ética do jornalismo” e “negligência” no dever de buscar a verdade.

“Não é a decisão do Supremo que irá aumentar os casos de assédio judicial a veículos independentes ou representará uma ameaça à liberdade de expressão do jornalismo no Brasil, porque isso já acontece e, em geral, são decisões do STF que afastam isso. Essa tese fala de casos grosseiros de negligência no dever de buscar a verdade, de veículos que sequer ouvem o outro lado”, sustenta, reforçando que a medida impõe dever mínimo de diligência à imprensa.

A jornalista e cientista política Grazielle Albuquerque destaca ainda que o modo como o debate foi conduzido na Corte – sem ouvir associações de jornalismo e entidades do setor, por exemplo – contribuiu para que houvesse toda a repercussão negativa em torno da decisão.

“Um debate com profissionais da área ajudaria a preencher as lacunas de como essas regras seriam aplicadas, até para evitar a censura. Porque, no final das contas, houve uma apropriação de figuras da extrema-direita nessa crítica ao Supremo na defesa da liberdade de expressão, uma bandeira muito mais conveniente que realista”, pontua.

Ao abrir a sessão de quinta-feira, o presidente do STF, Luís Roberto Barroso, contemporizou as críticas e afirmou que a decisão reforça o caráter contra a censura da imprensa e a favor da liberdade de expressão.

“Reiteramos nossa crença na imprensa, na importância da liberdade de expressão, a vedação da censura e não responsabilização de veículo por declaração de terceiro, salvo comportamento doloso com a intenção da causar mal a alguém ou negligência”, afirmou o magistrado.

Decano da Corte, o ministro Gilmar Mendes seguiu essa linha em entrevista à Folha de S.Paulo e destacou ser necessário “encontrar uma boa fórmula para dar segurança e evitar injustiças”.

Entidades de imprensa avaliam comunicar a decisão à Organização dos Estados Americanos, a OEA, sob o argumento de que a tese representa risco ao pleno exercício da liberdade jornalística no Brasil.

O documento, assinado pela Federação Nacional dos Jornalistas e pela Associação Brasileira de Imprensa, deve ser endereçado a Pedro José Vaca Villarreal, responsável pela área de liberdade de expressão da Comissão Interamericana de Direitos Humanos.

Também está no radar a possibilidade de apresentar embargos de declaração ao STF, em uma tentativa de retirar expressões de significado amplo que ainda deixam margem para dúvidas.

Oito organizações, entre elas a Associação de Jornalismo Digital e o Instituto Vladimir Herzog, manifestaram preocupação em nota conjunta e disseram esperar que o acórdão do julgamento apresente critérios mais objetivos sobre a aplicação da tese.

“As organizações expressam preocupação com o teor da tese definida, especialmente em relação ao emprego de termos genéricos e imprecisos, que podem ampliar o cenário de censura e assédio judicial contra jornalistas e comunicadores”, escrevem.

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