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República das togas

O Judiciário distribui novas benesses aos seus, mas a magistratura acha pouco

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Uma das primeiras medidas do ministro Barroso no comando do CNJ foi conceder até dez dias de folgas adicionais aos juízes, uma categoria que já goza de dois meses de férias por ano – Imagem: Nelson Jr./STF e Rômulo Serpa/Ag. CNJ
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Os 100 milhões de trabalhadores brasileiros receberam, em média, 2,9 mil reais em setembro. A renda daqueles que carregam o País nas costas permanece nesse patamar há uma década, sinônimo de empobrecimento. De 2013 a setembro, a inflação foi de 86%. É de se supor que as finanças apertadas despertem nesses cidadãos, metade da população nacional, sentimentos de frustração e desalento. Existe, porém, certa categoria que se esbalda em dinheiro e nem assim está satisfeita. Faz parte do 1% mais rico, tem dois meses de férias por ano garantidos em lei, tudo pago com verba pública, e não apenas reclama da vida, mas dribla a lei pela qual deveria zelar e se recusa a aceitar regras que lhe imponham a obrigação de parecer honesta. É a nossa magistratura.

O Brasil tem 18.125 juízes. O salário médio foi de 69 mil reais no ano passado, segundo a versão 2023 do relatório Justiça em Números, anuário do Conselho Nacional de Justiça, o “fiscal da toga”. Quem embolsa por mês 17 mil reais (conforme o IBGE) ou 27 mil (de acordo com a Fundação Getulio Vargas) integra o 1% mais rico. Enquanto preparava o documento, o CNJ elaborava também o 2° Censo do Poder Judiciário. O primeiro, e único, era de 2013. O censo de agora terminou em setembro. Responderam-no 7.341 togados, 40% do total. Questões sobre o perfil (59% dos recenseados são homens e 82%, brancos) e as percepções da turma. Para 71%, seus vencimentos são “inadequados”. Segundo 79%, trabalha-se demais. E 65% deles consideram não ser possível conciliar a carga laboral com a saúde física e mental, apesar dos 60 dias de férias por ano assegurados na lei (o que não quer dizer que todos os tirem integralmente, há quem venda uma parte). Apesar do mau humor, só 12% pensam em mudar de carreira.

Segundo o mais recente censo da categoria, os juízes afirmam que trabalham muito e ganham de menos

O censo, diz Bruno Carazza, bacharel e doutor em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais, revela uma “alucinação coletiva”. Os juízes, acrescenta, vivem “fora da realidade” e “reclamam de barriga cheia”. Carazza lançará no próximo ano um livro sobre o que chama de “a falta de senso dos magistrados brasileiros e a proliferação de privilégios”. É a nossa “magistocracia”, na definição do professor de Direito Conrado Hubner, da USP, que acaba de lançar o livro O ­Discreto Charme da Magistocracia. Ao examinar os salários Corte a Corte, Carazza descobriu que 94% dos juízes receberam no ano passado acima do teto previsto na Constituição para o serviço público. O limite era de 39 mil mensais, o contracheque no Supremo Tribunal Federal agora está em 41 mil e, até 2025, irá a 46 mil.

Foi nesse ambiente de “reclamação de barriga cheia” que, em setembro, Luís Roberto Barroso tomou posse como presidente do Supremo e do CNJ. Uma de suas primeiras medidas no Conselho foi providenciar um “penduricalho” para a magistratura. É com esse tipo de expediente que a categoria fura o teto salarial. Num mesmo dia, 17 de outubro, Barroso assumiu a relatoria do “penduricalho”, pautou o caso para julgamento e conduziu sua aprovação (por unanimidade). Os tribunais, de Norte a Sul, podem dar um dia de folga para cada três dias que um juiz tiver trabalhado em mais de uma função. Serão até dez dias de folga por mês. Como é de se imaginar que os beneficiados irão vendê-las, vem aí mais uma grana para o bolso.

Garcia foi eleito presidente do Tribunal de Justiça de São Paulo em uma campanha repleta de promessas de ganhos pecuniários – Imagem: iStockphoto e Arquivo/TJ-SP

A propósito, em 17 de outubro, o corregedor-geral do CNJ, Luiz Felipe Salomão, afastou um juiz do Tribunal de Justiça da Bahia, Luiz Fernando Lima, por conta da determinação de prisão domiciliar para um dos líderes – Ednaldo Freire Ferreira, o Dadá – de uma facção criminosa baiana, o Bonde do Maluco. Dadá havia sido preso em setembro em Pernambuco. Após conseguir a prisão domiciliar, em 1° de outubro, desapareceu. O Ministério da Justiça quer que o CNJ baixe uma orientação sobre como tratar casos de chefes do crime e que proíba liminares em plantões. A prisão domiciliar de “Dadá” foi concedida por Lima em um domingo, o que deixa certas suspeitas no ar.

De volta ao bolso. A decisão do CNJ sobre o novo “penduricalho” copiou uma resolução do Ministério Público tomada em dezembro de 2022. Existe há tempos uma competição entre juízes e procuradores: quando um lado inventa um privilégio, o outro imita. A “equiparação” entre as carreiras foi a justificativa de Barroso para o julgamento de 17 de outubro. Faltou explicar por que sua antecessora no Supremo e no CNJ, Rosa Weber, não tinha tocado no assunto. O motivo ficará claro adiante, a partir de outra decisão do Conselho, neste caso a respeito das palestras que os magistrados dão em troca de cachê.

Mello Filho e Rosa Weber tentaram conter alguns excessos. Em vão – Imagem: Marcelo Camargo/ABR e Rômulo Serpa/Ag. CNJ

Com o aval do CNJ, cabe a cada Corte adotar providências internas para materializar a nova benesse. Em 8 de novembro, o Conselho da Justiça Federal providenciou a sua. O colegiado tem à frente o presidente do Superior Tribunal de Justiça, atualmente Maria ­Thereza de Assis Moura, e jurisdição sobre juízes federais. A Federação Nacional dos Servidores da Justiça Federal, ­Fenajufe, criticou a medida. Alega que os servidores estão com 30% de defasagem salarial e que, para isso, a cúpula do Judiciário não arruma verba.

No mesmo 8 de novembro, o autointitulado “maior tribunal do mundo”, o Tribunal de Justiça de São Paulo, elegeu um novo presidente numa disputa marcada por promessa de dinheiro aos eleitores – no caso, os 357 juízes da Corte. Fernando Antonio Torres Garcia, de 64 anos, bateu Guilherme Gonçalves Strenger, de 73, por 199 votos a 155. Ambos fizeram campanhas centradas em benesses. Falaram a respeito apenas nos bastidores. Negaram-se a vir a público apresentá-las e defendê-las. Alguns jornalistas descobriram que Garcia prometeu criar um adicional por tempo de serviço, pagar todos os atrasados que porventura existam e aumentar o valor do chamado auxílio-acervo, adicional para o caso de um desembargador ter de cuidar ao longo de um ano de mais processos do que uma quantidade definida previamente. Esse “auxílio” está hoje em 10% do salário. “Estamos em diversa realidade orçamentária, mais confortável e sensivelmente distinta da que ocorria em passado recente”, declarou Garcia após a vitória.

O desembargador assumirá o comando do tribunal em janeiro. Cuidará de um orçamento superior aos 15 bilhões de reais deste ano, em razão de uma lei aprovada pelos deputados paulistas em setembro, a corrigir o valor das custas processuais, taxas pagas por quem recorre à Justiça. A lei tinha sido proposta em 2021 pela própria Corte. Recorde-se: um presidente do TJ paulista, José Roberto Nalini, reclamou, em 2014, durante entrevista a uma emissora de tevê, que “juiz tem que comprar terno e não dá pra ir a Miami toda hora”. Tratava-se da defesa do auxílio-moradia de 4,3 mil reais pagos até 2018, graças a uma liminar de Luiz Fux, por acaso o único juiz de carreira entre os atuais dez integrantes do Supremo. Para Carazza, o fato de haver só um magistrado 100% puro na mais alta Corte é uma oportunidade para mudar a carreira da categoria: salários iniciais menores, reajustes atrelados a produtividade, veto a “penduricalhos” e respeito ao teto salarial.

O mesmo Conselho Nacional de Justiça que abriu a porteira para outro “penduricalho” havia, em setembro, barrado uma tentativa de coibir conflito de interesses no Judiciário. Uma demonstração do que diz o cientista político Fabiano Engelmann, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, estudioso da Justiça: “O CNJ nasceu para fazer o controle externo do Judiciário, mas com o tempo foi capturado pelas instituições do próprio Judiciário”. Pelo artigo 5° da Constituição, a única atividade paralela permitida a um juiz é dar aula. A autorização foi distorcida ao longo dos anos para que um magistrado possa receber pagamento por palestras. Luís Philippe Vieira de Mello Filho, ministro do Tribunal Superior do Trabalho atualmente com assento no CNJ, propôs uma norma segundo a qual uma palestra paga configuraria conflito de interesses. Mello Filho limitava a 100 reais o valor de um presente que um togado pode receber. Restringia a 20% o patrocínio máximo que uma empresa poderia dar a um evento de magistrados. E impunha o dever de informar ao tribunal de origem variação patrimonial acima de 20% de um ano a outro. “As tentações são enormes” diante de um juiz, havia escrito Vieira de Mello na proposta enviada aos colegas em 7 de agosto.

Em 22 de agosto, o CNJ começou a examinar a proposta. Salomão, corregedor-geral, interrompeu o julgamento com um pedido de vistas. Era contra a proposta. Rosa Weber, então à beira da aposentadoria no Supremo e naquele momento presidente tanto do tribunal quanto do Conselho, pediu ao corregedor que devolvesse o caso a tempo de um desfecho antes de sua despedida. A ministra tinha dado sinal verde a Mello Filho para mexer no vespeiro. Após o pedido de vistas de Salomão, Weber buscou nos bastidores um acordo para aprovar a proposta, ainda que com um teor mais brando. Em vão.

Por interesses particulares, Pacheco cedeu à rebelião dos bolsonaristas do Senado contra o Supremo. Mendes e outros ministros da Corte barraram os delírios autoritários do governo anterior – Imagem: Arquivo/TSE e Waldemir Barreto/Ag. Senado

Em 26 de setembro, na última sessão da ministra no CNJ, o conselho derrubou a proposta de Mello Filho por 8 a 6. Além de Salomão, o time do contra contou com os dois representantes da OAB, os dois dos tribunais estaduais (os de São Paulo e Rio atualmente), o da Procuradoria-Geral, o do Senado e o de um tribunal federal (hoje do TRF1, sediado em Brasília). A juíza fez questão de ler alguns trechos de seu voto escrito, a fim de deixar registrados os perigos que a proposta reprovada desejava combater. O Brasil, disse, assiste a uma crescente judicialização, que “atrai os grupos de poder a defenderem, como lhes compete, seus interesses político-econômicos mediante lobby privado exercido muitas vezes sobre os membros da magistratura”. A credibilidade do Judiciário, prosseguiu, requer confiança pública e, para tanto, não basta um juiz ser honesto, tem de parecer honesto. “É imperativa a criação de mecanismos normativos capazes de afastar o magistrado de situações que possam inspirar em um observador razoável e desinteressado suspeitas de parcialidade”, declarou.

A Suprema Corte dos Estados Unidos acaba de elaborar um código de conduta para seus nove integrantes com dispositivos similares àqueles propostos por Mello Filho. O texto diz, entre outras, que um juiz só pode aceitar o pagamento por terceiros de gastos com viagem, alojamento e alimentação se essa despesa “não parecer influenciar suas funções oficiais ou, de outra forma, parecer imprópria”. Palestras com tudo pago por interessados em processos ficam proibidas. Aprovado em 13 de novembro, o documento surgiu no embalo de revelações sobre o comportamento de alguns magistrados da Corte, em particular de Clarence ­Thomas, useiro e vezeiro do jatinho e iate de um empresário, Harlan Crow, doador do Partido Republicano, de Donald Trump. O escândalo levou uma comissão do Senado a cobrar providências da Corte. Para o comitê, o código ficou meio vago. Não está claro quem zelará pelo cumprimento das regras e quem punirá os infratores. Pela resolução, um togado supremo terá de se declarar impedido de julgar um caso no qual os advogados de uma das partes pertençam a um escritório integrado também por cônjuge ou por parente até terceiro grau desse mesmo juiz.

Com apoio de Rodrigo Pacheco, presidente do Senado, os bolsonaristas da Casa fustigam o Supremo Tribunal

Aqui, o STF tinha anulado, em agosto, o trecho de uma lei de 2015 que impunha a mesma determinação. A Associação dos Magistrados Brasileiros acionara o Supremo em 2018 para cassar a restrição. A ação começou a ser decidida em abril de 2020. O relator, Edson Fachin, votou contra. Gilmar Mendes pediu vistas. O julgamento foi retomado neste ano. Placar final: 7 a 4 a favor da ação, ou seja, contra a restrição.

O episódio alimentou a bronca da bancada bolsonarista no Senado. O cearense Eduardo Girão, do Partido Novo, subiu à tribuna para ressaltar: a restrição era essencial para prevenir “conflitos de interesses” e “o exemplo tem de vir de cima”.  A esposa de Mendes, Guiomar Feitosa, é advogada e sócia de um escritório com processos no Supremo, o de Sergio Bermudes. A companheira de José Dias Toffoli também (Roberta Maria Rangel, do Warde Advogados). Idem a de Kássio Nunes Marques (Maria do Socorro Marques). Mendes, Toffoli e Marques votaram a favor da ação da AMB. No caso de Barroso, que votou contra, a filha, Luna van Brussel, faz parte de um escritório, o Barroso ­Fonteles, Barcellos, Mendonça Advogados.

A raiva dos bolsonaristas com o Supremo foi um dos combustíveis da aprovação no Senado, na quarta-feira 22, de uma mudança na Constituição para limitar os poderes individuais dos juízes de todas as instâncias, inclusive os ministros do STF. A medida, que precisa ser aprovada pelos deputados, impede um magistrado de dar uma liminar individual contra um ato dos presidentes da República, do Senado e da Câmara. Só vale decisão coletiva, do tribunal como um todo. No governo Jair Bolsonaro, houve episódios de Medidas Provisórias anuladas por liminares individuais do Supremo. Barroso impediu a transferência da Funai para o Ministério da Agricultura. Alexandre de Moraes barrou mudanças na Lei de Acesso à Informação. Cármen Lúcia vetou alterações na política cultural.

A bancada bolsonarista não teria força sozinha para engessar o STF. O comandante do Senado, Rodrigo Pacheco, comprou a briga por razões como a eleição do seu sucessor em 2025, reposicionamento político em Minas Gerais e certa frustração com o que considera falta de prestígio com o presidente Lula. Graças a ele e ao senador Davi Alcolumbre, seu aliado, antecessor e desde já candidato a sucedê-lo, o Senado tem dado vazão a pautas do agrado da extrema-direita. É o caso da criminalização da posse de qualquer quantidade de drogas, de um plebiscito sobre aborto e da autorização para o comércio de sangue humano.

Solto por uma liminar expedida em um domingo, o criminoso Dadá escafedeu-se – Imagem: Polícia Federal

Neste momento, Pacheco equilibra-se entre dar ao Judiciário com uma mão e tirar com a outra. Desde 2016, há no Congresso uma lei destinada a disciplinar os “penduricalhos” a juízes e a forçar o respeito ao teto por magistrados e outros bem-aventurados do serviço público. Não que todos os “penduricalhos” fossem abolidos, alguns seriam na verdade legalizados. Mas outros de fato sumiriam. Estimativas apontam uma economia anual de 4 bilhões de reais aos cofres públicos. O texto surgiu no Senado em 2016 e logo passou pelo plenário da Casa. Os deputados levaram cinco anos para aprová-lo, e com mudanças, daí os senadores precisarem examiná-lo de novo, o que não acontece desde 2021. Em setembro, o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, defendeu a votação da lei dos supersalários: “Pode disciplinar uma coisa importante, de pôr fim a determinados privilégios”.

No Senado, há quem diga que Pacheco topa ressuscitar a proposta. Com uma condição, votar também um mimo a ­juízes e procuradores: a criação de um adicional por tempo de serviço, promessa feita em São Paulo pelo futuro presidente do TJ. Quer dizer, com uma mão tira-se do Judiciário, via lei dos supersalários. Com outra devolve-se, por meio de “quinquênios”. Este seria de 5% de aumento salarial a cada cinco anos trabalhados. “A conta é estratosférica, até porque é retroativa a todos os aposentados”, afirmou na terça-feira 21 o líder do governo no Senado, Jaques Wagner.

O Judiciário foi importante para conter os arroubos ditatoriais de Bolsonaro. Um livro lançado na quarta-feira 22 em Brasília traz alguns detalhes dessa atuação. O Tribunal – Como o Supremo se Uniu Ante a Ameaça Autoritária, dos jornalistas Felipe Recondo e Luiz Weber, escora-se em entrevistas com os ministros do STF e seus auxiliares, entre outras fontes. Ao virar as costas para a realidade nacional e sair em defesa dos próprios privilégios, o Judiciário queima capital político e arrisca-se a ficar exposto em praça pública, sem defensores. •

Publicado na edição n° 1287 de CartaCapital, em 29 de novembro de 2023.

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