Justiça

‘Quer greve de fome, abre vaga no presídio’: áudios inéditos mostram o deboche de ministros do STM na ditadura

Projeto ‘Voz Humana’ revela 10 mil horas de gravações do tribunal após o golpe de 1964 e mostra a indiferença de ministros diante da tortura

Foto: Arquivo/Estadão Conteúdo
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O Superior Tribunal Militar, responsável pelo julgamento dos recursos de presos políticos durante a ditadura militar brasileira (1964-1985), tinha conhecimento das práticas de tortura executadas em presídios. Isso não impedia, porém, que a Corte não apenas se negasse a investigar as práticas criminosas, mas tratasse a violência com indiferença e deboche. 

É o que revela o projeto Voz Humana – os arquivos sonoros de presos políticos, lançado nesta sexta-feira 31, data a marcar os 59 anos do golpe militar no Brasil, pelo advogado Fernando Augusto Fernandes. O projeto “democratiza o acesso aos áudios dos julgamentos de presos políticos e permite que possamos preservar a democracia presente e fortalecer a estabilidade política futura”, disse Fernandes a CartaCapital.

O Voz Humana disponibiliza mais de 10 mil horas de gravações de julgamentos – até então considerados secretos – de presos políticos do regime militar. Do acervo constam declarações de ministros e sustentações orais de advogados de presos políticos em julgamentos realizados entre 1975 e 1979 no STM. 

O lançamento oficial do projeto acontece nesta sexta, na sede da seccional do Rio de Janeiro da  Ordem dos Advogados do Brasil. “O lançamento no Prédio Sobral Pinto, no Plenário Evandro Lins e Silva é muito simbólico”, disse Fernandes. Sobral Pinto, jurista, foi um reconhecido defensor dos direitos humanos durante o regime militar, e o projeto Voz Humana disponibiliza áudios das suas sustentações orais no STM. Evandro Lins e Silva, ex-ministro do Supremo Tribunal Federal, foi perseguido pela ditadura.

Greve de fome tratada com ironia

Em um dos casos, em 1º de dezembro de 1977, o STM discutiu uma greve de fome deflagrada em presídios brasileiros, devido a condições desumanas impostas a dois presos no Recife (PE). No áudio da sessão secreta, um ministro, cuja voz não é possível identificar, chegou a dizer que a greve de fome deveria ser estimulada. Assim, “liberava mais vagas no presídio”, disse o integrante do tribunal.

Entre risadas dos colegas, a “proposta” foi incentivada. “Greve de fome é voluntária. Quer fazer greve de fome, abre vaga no presídio”, afirmou outro ministro. Segundo Fernandes, os 15 ministros do STM tinham pleno conhecimento das práticas de tortura.

Em outra ocasião, também em sessão secreta, o presidente do STM à época, Helio Ramos, reclamou da pressão de entidades internacionais sobre o desrespeito à dignidade humana que os militares impunham aos presos políticos. “Eu, diariamente, recebo um monte [de ofícios]. Agora, eu nem leio mais. Mando botar em um envelope.”

De acordo com Fernando Fernandes, a tortura sempre existiu no Brasil. “Mas a ditadura militar de 1964 institucionalizou a tortura como método de investigação”, afirmou.

O projeto

O projeto Voz Humana teve início em 1997. À época, Fernandes pesquisava a atuação de advogados em defesa de presos políticos na ditadura. Em parceria com o colega Lino Machado Filho, conseguiu autorização judicial para acessar as gravações do STM.

Em seguida, quando a pesquisa avançou para as sessões secretas do tribunal, a Justiça impôs sigilo. Fernandes, então, recorreu ao STF, em 2006, e a Corte liberou o acesso ao material. O STM, porém, só atendeu em parte a essa decisão e liberou apenas os áudios das sessões públicas. Fernandes, então, acionou mais uma vez o Supremo, que só decidiu sobre o caso em 2017, obrigando o STM a incluir os áudios com manifestações de ministros e sustentações orais em sessões secretas.

“A luta pela abertura e conhecimento desses arquivos tem 26 anos”, disse Fernandes a Carta Capital. O grande volume de material disponível, entretanto, ainda não dá conta de todos os arquivos de sessões secretas do STM que Fernandes busca acessar na Justiça. Em janeiro, ele fez outro pedido ao STF. “Recentemente, fizemos uma nova reclamação, porque o material ainda tem partes ocultas e não entregues. Essa reclamação está com a ministra Cármen Lúcia, e esperamos que determine a ampla abertura.”

Ao defender que o projeto resgata a memória e a verdade do País para que a sociedade possa refletir sobre a política atual, Fernandes traça um paralelo com acontecimentos recentes da política brasileira. “Quando o ex-presidente Jair Bolsonaro fez uma homenagem ao coronel Carlos Brilhante Ustra, um torturador, qual foi o seu objetivo a não ser o de manifestar uma deliberada opção de apoiar atos desumanos, a tortura e, nos tempos modernos, a eliminação de pessoas pelos assassinatos nas periferias das cidades?”

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