Justiça

Para advogado, projeto ‘anticrime’ de Moro é populismo penal

O especialista em Direito defende que as medidas do Ministro não são as mais efetivas no combate ao crime

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Há tempos o Brasil aposta no encarceramento em massa e na fixação de penas mais duras para os criminosos, mas as ações não têm surtido o efeito de pacificar a sociedade, observa o advogado Walfrido Warde Júnior, crítico do populismo penal que seduz a mídia e deixou inegáveis rastros no projeto “anticrime” apresentado pelo ministro Sérgio Moro. “O medo da punição não é o único elemento dissuasório do crime. Há pessoas que não têm medo da punição, seja por não ter nada a perder, seja por possuir ambição desmedida”, acrescenta o especialista, autor do livro O Espetáculo da Corrupção: Como um sistema corrupto e o modo de combatê-lo estão destruindo o País (Editora Leya).

Na entrevista a seguir, Warde Júnior argumenta que o combate ao crime seria mais efetivo com a regulamentação do lobby e com a descriminalização das drogas, que retiraria uma importante fonte de receita das organizações criminosas. O advogado critica ainda o advento da prisão após condenação em segunda instância, casuísmo destinado a antecipar o cumprimento da pena do ex-presidente Lula. “Essa medida não poderia ser aprovada sem uma emenda à Constituição, que é muito clara ao dizer que ninguém pode ser considerado culpado até o trânsito em julgado da sentença condenatória.”

CartaCapital: Que avaliação o senhor faz desse pacote “anticrime” apresentado pelo ministro Moro?

Walfrido Warde Júnior: Temos evidências suficientes de que o modelo punitivista, puramente repressivo, é insuficiente para o combate à criminalidade e para satisfazer os anseios da população por mais segurança. Em um raciocínio mais rudimentar, existe a crença de que prender mais pode nos livrar do crime. Os fatos demonstram o contrário. A maior capacidade de aprisionamento ou de impor penas mais duras não tem surtido o efeito de pacificar a sociedade. O medo da punição não é o único elemento dissuasório do crime. Há pessoas que não têm medo da punição, seja por não ter nada a perder, seja por possuir ambição desmedida.

CC: Além do temor da punição, que outros elementos são capazes de dissuadir alguém de praticar um crime?

WWJ: Em primeiro lugar, precisamos afastar as organizações criminosas dos governos, caso contrário elas continuarão encontrando formas de assegurar a sua impunidade. O relacionamento entre o Estado e a sociedade civil não está devidamente regulado. Refiro-me ao lobby, que são essencialmente de dois tipos. Existe o lobby pré-eleitoral, caracterizado pelo financiamento de campanha, e o pós-eleitoral, a pressão de grupos sobre políticos durante o exercício de seu mandato. Hoje, não temos regras claras, capazes de impedir a infiltração de grupos criminosos nos governos. Temos regras frouxas de doações de campanhas, que propiciam o financiamento sub-reptício, ilegal e dissimulado de candidatos por organizações criminosas. E o pior: nem sequer conseguimos impedir esse tipo de conduta no exercício dos mandatos.

 

CC: O pacote do Moro não trata da regulamentação do lobby.

WWJ: Esse é o ponto. Não basta ter a capacidade de derrubar sigilos bancários, de bloquear bens, de prender os bandidos e impedir a progressão das penas, tornando as cadeias depósitos de gente ainda mais superlotados. É preciso criar todos os mecanismos possíveis para impedir que as organizações criminosas financiem os governos. A melhor forma de fazer isso é regulamentar o lobby, criar um caminho que só as empresas e pessoas físicas bem-intencionadas podem percorrer. Mas não é tudo, também é necessário agir nas economias do crime.

CC: De que forma?

WWJ: Podemos rever, por exemplo, a política de criminalização de drogas, sobretudo daquelas com menor impacto para a saúde, como a maconha. O comércio dessas drogas produz lucros extraordinários para grupos dedicados ao crime. É possível matar esse problema pela raiz, retirando uma importante fonte de renda das organizações criminosas, que usam esses recursos para estender os seus tentáculos para outras atividades ilícitas. O mesmo ocorre em relação ao contrabando. Isso poderia ensejar uma postura mais dura do nosso corpo diplomático em relação a países que produzem ou facilitam a entrada de produtos ilegais ou falsificados no Brasil.

CC: Em vez de aumentar a punição para o contrabandista, talvez fosse mais efetivo aumentar o controle das fronteiras. Essa é lógica?

WWJ: Sim, é um bom exemplo, porque a receita gerada pelo comércio ilegal financia as organizações criminosas. Mas não podemos nos esquecer da regulamentação do lobby. De que adianta manter um aparato repressivo enorme, se continuo permitindo que um grupo criminoso financie parlamentares, prefeitos, governadores ou até mesmo presidentes da República?

CC: Como o senhor avalia a proposta de antecipar o cumprimento da pena após a condenação em segunda instância?

WWJ: Essa questão me causa alguma perplexidade. Entendo a conveniência de fazê-lo por causa do problema da prescrição ou da progressão da norma penal, que por vezes podem gerar impunidade. Uma parte da população acredita piamente que esse é o caminho mais acertado. Mas aprendi muito cedo, desde o início do curso de Direito, que a prisão, como consequência concreta de uma ação penal, só se daria após o trânsito em julgado. Esse entendimento foi radicalmente alterado, sob uma nova interpretação da Suprema Corte brasileira, no contexto do processo envolvendo o ex-presidente Lula. Não exatamente no caso dele, mas já antevendo o interesse de antecipar a execução da sentença condenatória contra ele.

 

CC: O casuísmo é notório…

WWF: Temos de tratar desse tema em um grande debate nacional entre especialistas. A meu ver, essa medida não poderia ser aprovada sem uma emenda à Constituição, que é muito clara ao dizer que ninguém pode ser considerado culpado até o trânsito em julgado da sentença condenatória.

CC: Os defensores da medida costumam evocar o exemplo de países como os EUA, que permitem o cumprimento da pena antes do esgotamento de todos os recursos.

WWJ: Esses transplantes são sempre desastrosos. Pode-se buscar inspiração em alguns modelos estrangeiros, mas transplantá-los é muito problemático. O Brasil é um país muito diferente dos EUA, com um sistema penal muito distinto. Os brasileiros não possuem os mesmos meios de se defender dos americanos. Essa é a situação do plea bargain (no qual o acusado pode confessar um crime em troca de uma pena mais branda), que acaba de ser proposto por Moro. Temos um enorme contingente de pobres, sem condições financeiras de contratar um bom advogado, e, portanto, representados por um defensor público. Não estou depreciando a Defensoria Pública, que faz um trabalho heroico, mas eles atendem um número enorme de casos, não têm condições de oferecer a mesma assistência que um advogado particular. Então teremos, de um lado, um réu mal assistido e, de outro, o Ministério Público, bastante poderoso.

CC: Um juiz não deve mediar essa negociação?

WWF: Pode ser, mas como ele fará isso sem antes conhecer o conjunto probatório, antes de saber os fatos concretos que poderão levar ou não a uma condenação? Até porque o plea bargain só faz sentido no início do processo, para que o Estado reduza os custos da produção de provas. Entre confiar no réu e confiar no Ministério Público, para qual lado o magistrado vai pender?

CC: No Brasil, o juiz que cuida da instrução penal, da fase de coleta de provas, é o mesmo que vai julgar o caso. Isso não é um problema?

WWJ: Sem dúvida. Essa situação foi muito agravada pela Lei de Organizações Criminosas de 2013. Fui uma das primeiras vozes contrárias a se manifestar. O juiz que defere uma busca e apreensão, uma prisão cautelar, uma escuta telefônica e telemática, uma infiltração de agente, uma ação controlada, é o mesmo que vai julgar o caso. Só que ele já se emporcalhou das razões do Ministério Público e do acusador, deixou-se seduzir pelos argumentos do promotor. Imaginar o contrário é supor que o juiz é uma espécie de Hércules, que não vai deixar-se influenciar pelas coisas que viu e ouviu ao longo da instrução. A lei colocou o juiz com excesso de protagonismo. Em vários países europeus, não é assim que a coisa funciona. Tem o juiz que cuida da instrução e o que vai julgar o caso.

CC: O projeto do Moro prevê ainda que o juiz poderá “reduzir a pena até a metade ou deixar de aplicá-la” se um policial matar em serviço sob “escusável medo, surpresa ou violenta emoção”. O que isso representa?

WWF: Achei estranho esse tópico, pois o Código Penal prevê a legítima defesa de terceiro. Para defender a vida de outro, um refém, uma vítima de assalto, é admissível tirar a vida de um criminoso. Não está muito claro para mim em que consiste a inovação. Com esses conceitos abertos, de “escusável medo” ou “violenta emoção”, certamente pode haver abusos. É importante que a lei penal tenha uma redação objetiva e restritiva.

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