Justiça

O que a Reforma da Previdência tem a ver com o Direito?

A máquina que distribui o ônus é seletiva, da mesma maneira como a que determina os bônus

Bolsonaro entre a PEC da Previdência ao presidente da Câmara: sem vida fácil no Congresso
Apoie Siga-nos no

Algumas frases podem soar comum em vários tempos e espaços. Elas invariavelmente se repetem no conteúdo, embora com pequenas variações de formato. “Mas é a lei…”, “nós devemos respeitá-la”, “assim que as coisas são”, “assim elas devem ser”, “isso não é política”, “isso é direito”, “a justiça é imparcial”, “está na lei”. Nessas afirmativas, o direito esboça seus desenhos, modela os comportamentos e formata a vida em sociedade, como script, afinal, se a vida em sociedade fosse um filme, o direito seria o roteirista.

Muitas coisas coexistem na criminalização de atos, aquilo que o direito enxerga como ilícito. Francisco de Paula Rezende Ferreira [1] nos narra que, por volta de 1860, havia uma dança da “classe inferior” que utilizava batuques africanos, e que era possível a ordenação de prisão a todos que dela participassem.

Era a criminalização do samba, com origem na cor, através do recorte do colonialismo e da escravidão, que permitia o enquadramento do ritmo musical como crime de vadiagem, o mesmo ocorrendo com a capoeira e, posteriormente, com o rap, o que esteve presente ao longo do século XX.

Em pleno século XXI, essa história não está distante, pois tivemos notícia, em 2018, de projeto de lei que buscava a criminalização do funk, objetivando transformá-lo em crime contra a saúde pública.

O sistema de justiça criminal brasileiro ainda é assustadoramente racista. O que a “cegueira” da justiça nos cega é para o fato de que seu olhar é traiçoeiramente machista, classista e racista, para ficarmos no mínimo, como nos demonstrou, nesse mês, uma sentença do TJSP, na qual o juiz anota que “o réu não possui o estereótipo padrão de bandido, possui pele, olhos e cabelos claros, não estando sujeito a ser facilmente confundido“.

Da vadiagem à saúde pública, da escravidão ao estereótipo do criminoso, as últimas eleições nos mostraram que pouca coisa mudou e, a toque de caixa, o direito, com sua plurissemântica, permite que qualquer coisa signifique qualquer coisa, desde que você esteja no poder, é claro, para falar como Humpty Dumpty, esse ovo antropomórfico que, algumas vezes, ataca-nos com sua mórbida lucidez, infelizmente coisa tão rara no mundo jurídico.

Leia também: Com cúmplices, "reforma" da Previdência é um crime contra o país

O direito é uma lente, uma ótica, uma visão de mundo, mas tratado como um absoluto. Coisa parecida acontece com a reforma da previdência, objeto da proposta de emenda à constituição (PEC) 6 de 2019, que, assim como o direito, é apresentada como absoluta, adquirindo o status de necessidade e inquestionabilidade, não sendo estranho pensar em outros desenhos e formatos possíveis, para além daquele que nos é apresentado como o único e o necessário.

O raciocínio que enlaça os dois quadros é o mesmo: normaliza-se que um juiz, que já possui uma das mais altas remunerações no Brasil e inicia a carreira com o salário de R$ 30.404,41, receba auxílio moradia, por força de barganha com o Ministro Luiz Fux, do Supremo Tribunal Federal, valor que é de até R$ 4.300,00, enquanto ao trabalhador comum, que possui um salário mínimo de R$ 998,00, são destinados todos os monstros e culpas.

Na visão deturpada da previdência, o problema está no trabalhador rural, ou na mulher, que se aposenta primeiro que o homem, apesar de submetida a múltiplas jornadas, ou, ainda, no beneficiário assistencial, como do deficiente ou do idoso de baixa renda, que recebe o salário mínimo sem nunca ter contribuído.

A carga é suportada diferentemente pelos atores, sendo que a classe menos privilegiada, aquela que naturalmente já a sustenta, fica com o ônus. Observamos essa mentalidade, notadamente, na transformação para o sistema de capitalização e na falta de modificações na cúpula dos poderes judiciário, executivo e legislativo, isso sem contar os militares.

Temos, também, a redução do benefício assistencial do LOAS para índices inferiores ao mínimo, valor mensal de míseros R$ 400,00, conformação que, certamente, patrocinará mortes e desgraças.

Leia também: A cruel demolição da Previdência social

A máquina que distribui o ônus é seletiva, da mesma maneira como a que determina os bônus. A justiça, também seletiva, está sujeita a essa máquina e, a cada vez que ignoramos esse fato, ele se fortalece, normaliza, ganha espaço [2].

O direito tem muita relação com essa proposta de emenda da previdência, mais do que imaginamos. Apesar de não ser, há séculos, sinônimo de lei – como queria o movimento codificador na França, em especial, em 1804, com Napoleão e o Code civil, visto como a positivação da própria razão, na qual o “espírito da lei” era a vontade do legislador – o seu norte é ainda o movimento modernista europeu, que afirma o direito como uma ciência “positivista” e “universal”, imposta para povos não europeus pelo imperialismo e pela navegação, quando direitos e práticas políticas locais foram impiedosamente suprimidos, em nome da dita “civilidade” e “modernidade” ocidentais. Elas ainda são as mesmas que capitaneiam essas diferenciações de ônus e bônus e massacram os corpos diferentes.

Como em um filme, os personagens que o direito nos desenha, através de suas múltiplas comunicações, têm os seus papéis. Só que esse roteirista sai de cena, pois entrega o paradoxo de sua fundamentação à política, com o neoconstitucionalismo pós-positivista.

Essa responsabilidade não lhe pesa mais, pois ele passa a ser “neutralizado”, pesando exclusivamente sobre o poder legislativo e executivo eleitos. O direito não se elege, ele sequer é um personagem, faz-se ali, à paisana. Contudo, ele é tão político como os poderes políticos, só que mascarado e neutralizado.

Retomando o início desse ensaio, o direito é o personagem dos personagens, o roteirista. Tomemos cuidado com esse roteiro, ele depende de nós, os juristas, ele sobrevive em nossos silêncios.

[1]  REZENDE, Francisco de Paula Ferreira. Minhas recordações. 1832-1893. Belo Horizonte: Imprensa Oficial, 1987, p. 197-198.
[2]  Isso exige repensarmos inclusive e especialmente o ensino jurídico. Conforme divulgado no portal Exame, da Abril, dia 25/02/2019, na USP, alunos da disciplina “Direito Administrativo Interdisciplinar” receberam do professor e procurador do estado, Eduardo Lobo Botelho Gualazzi, um documento classificando partidos de esquerda como “energúmenos”, população pobre como “eterna minoria de submundo que se recusa a trabalhar” e defendendo a ditadura militar. O mencionado professor também disse que casais LGBT são “aberração” e louva a “raiz europeia da nação brasileira”, com críticas à miscigenação de raças. Afirmou ser um liberalista econômico e conservador social, que votou em Jair Bolsonaro em 2018, Major Olímpio para senado e Luiz Philipe de Orléans e Bragança para deputado federal. Conforme veiculado no portal Exame. Disponível em: https://exame.abril.com.br/brasil/professor-da-usp-chama-lgbts-de-aberracao-e-ataca-populacao-pobre/.

ENTENDA MAIS SOBRE: , , , ,

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo

Apoie o jornalismo que chama as coisas pelo nome

Os Brasis divididos pelo bolsonarismo vivem, pensam e se informam em universos paralelos. A vitória de Lula nos dá, finalmente, perspectivas de retomada da vida em um país minimamente normal. Essa reconstrução, porém, será difícil e demorada. E seu apoio, leitor, é ainda mais fundamental.

Portanto, se você é daqueles brasileiros que ainda valorizam e acreditam no bom jornalismo, ajude CartaCapital a seguir lutando. Contribua com o quanto puder.

Quero apoiar

Leia também

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo