Justiça

O projeto anticrime e suas inconstitucionalidades

Transforma MP, coletivo de promotores de justiça, passará a desconstruir o “projeto anticrime”. Nesse episódio: a presunção de inocência

(Foto: ABr)
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Foi noticiado dias atrás na imprensa que o atual Ministro da Justiça apresentou a “governadores” um projeto de lei chamado “Projeto de Lei Anticrime”, o qual pretende alterar dispositivos do Código Penal, da Lei de Execução Penal, da Lei de Lavagem de Dinheiro, da Lei das Organizações Criminosas e outras. O artigo 1º diz que a lei “estabelece medidas contra a corrupção, o crime organizado e os crimes praticados com ‘grave violência’ à pessoa”.

A integralidade do projeto demanda uma análise mais aprofundada e demorada, mas uma rápida passada de olhos é o suficiente para que sejam notadas graves e incontornáveis inconstitucionalidades, que já começam no item “I”, ao estabelecer como obrigatória a “execução provisória” da pena após julgamento condenatório em segunda instância. Tal providência ignora até mesmo a atual jurisprudência do STF, que assentou a “possibilidade” da execução do julgado neste momento processual[1]. Mas isso será assunto para um outro momento.

Ater-se-á, por ora, ao quanto contido no item “XII” do projeto, que trata da inclusão de soluções negociadas no Código de Processo Penal. A proposta visa a alterar o art. 395-A do código, para que seja possível, mediante acordo penal, “a aplicação imediata das penas”, inclusive privativa de liberdade, desde que haja confissão, requerimento das partes e a dispensa da produção de provas e do direito de recurso (§ 1º). A medida serviria para aumentar sobremaneira o poder do órgão acusatório e para desafogar o Poder Judiciário. Entretanto, um princípio importantíssimo impede que seja incluído no ordenamento nacional instituto vindo de países de tradição jurídica diversa.

O princípio é o do devido processo legal

Previsto na Declaração Universal dos Direitos Humanos[2], no Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos[3], na Declaração Americana de Direitos Humanos[4] e na Constituição Federal[5], preconiza que, em processos judiciais, para que decisões emanadas de tribunais e juízes tenham legitimidade, é necessário que todas as etapas processuais, previstas em lei, sejam rigorosamente seguidas. Não há como “pular” nenhuma delas em nome de uma suposta “eficiência”. Eficiência com injustiça não é eficiência; e nem justiça.

A Constituição Federal de 1988 foi pródiga em prever uma série de direitos e garantias processuais, incorporando-os ao princípio do devido processo legal. Alguns dos principais exemplos de garantias fundamentais ligadas ao processo são os seguintes: princípio da inafastabilidade da jurisdição (art. 5º, XXXV); princípios do juiz e do promotor natural (art. XXXVII e LIII); princípios do contraditório e da ampla defesa (art. 5º, LV); princípio da proibição da prova ilícita (art. 5º, LVI); princípio da motivação das decisões judiciais (art. 5º, IX e X); princípio da presunção de inocência (art. 5º, LVII). Desta forma, deve a lei processual prever procedimentos nos quais todas as garantias constitucionais sejam observadas, sem o que não estará sendo respeitado o princípio do devido processo legal.

A porção adjetiva do princípio (abstraindo-se a substantiva, em razão da justeza deste espaço), “equivale, basicamente, ao acesso à Justiça”[6]. Significa que “alguém só pode ser julgado e condenado por juiz competente previamente estabelecido na ordem judiciária (…)”[7]. Nessa linha de ideias, os princípios do juiz natural e da inafastabilidade da jurisdição preveem que somente a autoridade judiciária pode presidir o processo penal e – respeitadas todas as garantias acima – aplicar penas. Nos autos da Petição n. 7.265, em trâmite no STF, ficou asseverado: “como é de conhecimento geral, o Poder Judiciário detém, por força de disposição constitucional, o monopólio da jurisdição, sendo certo que somente por meio de sentença penal condenatória, proferida por magistrado competente, afigura-se possível fixar ou perdoar penas privativas de liberdade relativamente a qualquer jurisdicionado”.

Impossível, pois, que o acusado da prática de um crime o confesse e dispense a produção de provas, sem controle judicial e fora do crivo do contraditório, e seu direito de recurso, para o fim de cumprir pena privativa de liberdade. Um acordo jamais pode ser considerado uma “sentença condenatória” (§ 8º).

Trata-se de um direito indisponível, irrenunciável até mesmo pela parte interessada.

Essa é a orientação do Supremo Tribunal Federal, emanada do julgado no HC 94.016[8]. Na ocasião, ficou assentado que “O direito do réu à observância, pelo Estado, da garantia pertinente ao ‘due process of law’, além de traduzir expressão concreta do direito de defesa, também encontra suporte legitimador em convenções internacionais que proclamam a essencialidade dessa franquia processual, que compõe o próprio estatuto constitucional do direito de defesa, enquanto complexo de princípios e de normas que amparam qualquer acusado em sede de persecução criminal”. Diversamente de outros países, a Constituição brasileira vedou a aplicação de pena sem a observância do princípio aqui analisado.

Por outro lado, mesmo que se considerasse que o princípio do devido processo legal estaria atendido com a homologação judicial, ainda assim seriam violados outros princípios, como o da ampla defesa e do contraditório, problema plasmado na falta de defesa técnica suficiente para a população pobre em grande parte do país. Uma coisa é acordo entre iguais. Outra é um acordo entre partes absolutamente desiguais. O risco da imposição de penas desproporcionais, até mesmo com “boa vontade” do Ministério Público, é imenso.

Portanto, a proposta prevista no item “XII” do “Projeto de Lei Anticrime”, no que se refere à alteração do art. 395-A do Código de Processo Penal, é inconstitucional, por ofensa aos princípios do devido processo legal, da inafastabilidade da jurisdição, do juiz natural, do contraditório e da ampla defesa, da presunção de inocência e da motivação das decisões judiciais (art. 5º, XXXV, LIII, LV e LVII, e art. 93, X, da CF).

Foto: Agência Brasil


[1] HC 126.292 – SP, Rel. Min. Teori Zavascki, Pleno, J. 17-02-2016.
[2] Artigo 11
1.Todo ser humano acusado de um ato delituoso tem o direito de ser presumido inocente até que a sua culpabilidade tenha sido provada de acordo com a lei, em julgamento público no qual lhe tenham sido asseguradas todas as garantias necessárias à sua defesa.
[3] ARTIGO 14
  1. Todas as pessoas são iguais perante os tribunais e as cortes de justiça. Toda pessoa terá o direito de ser ouvida publicamente e com devidas garantias por um tribunal competente, independente e imparcial, estabelecido por lei, na apuração de qualquer acusação de caráter penal formulada contra ela ou na determinação de seus direitos e obrigações de caráter civil. A imprensa e o público poderão ser excluídos de parte da totalidade de um julgamento, quer por motivo de moral pública, de ordem pública ou de segurança nacional em uma sociedade democrática, quer quando o interesse da vida privada das Partes o exija, que na medida em que isso seja estritamente necessário na opinião da justiça, em circunstâncias específicas, nas quais a publicidade venha a prejudicar os interesses da justiça; entretanto, qualquer sentença proferida em matéria penal ou civil deverá torna-se pública, a menos que o interesse de menores exija procedimento oposto, ou processo diga respeito à controvérsia matrimoniais ou à tutela de menores.
  2. Toda pessoa acusada de um delito terá direito a que se presuma sua inocência enquanto não for legalmente comprovada sua culpa.
  3. Toda pessoa acusada de um delito terá direito, em plena igualmente, a, pelo menos, as seguintes garantias:
  4. a) De ser informado, sem demora, numa língua que compreenda e de forma minuciosa, da natureza e dos motivos da acusação contra ela formulada;
  5. b) De dispor do tempo e dos meios necessários à preparação de sua defesa e a comunicar-se com defensor de sua escolha;
  6. c) De ser julgado sem dilações indevidas;
  7. d) De estar presente no julgamento e de defender-se pessoalmente ou por intermédio de defensor de sua escolha; de ser informado, caso não tenha defensor, do direito que lhe assiste de tê-lo e, sempre que o interesse da justiça assim exija, de ter um defensor designado ex-offíciogratuitamente, se não tiver meios para remunerá-lo;
  8. e) De interrogar ou fazer interrogar as testemunhas de acusão e de obter o comparecimento eo interrogatório das testemunhas de defesa nas mesmas condições de que dispõem as de acusação;
  9. f) De ser assistida gratuitamente por um intérprete, caso não compreenda ou não fale a língua empregada durante o julgamento;
  10. g) De não ser obrigada a depor contra si mesma, nem a confessar-se culpada.
[4] Direito à Justiça
Artigo XVIII.  Toda pessoa pode recorrer aos tribunais para fazer respeitar os seus direitos.  Deve poder contar, outrossim, com processo simples e breve, mediante o qual a justiça a proteja contra atos de autoridade que violem, em seu prejuízo, qualquer dos direitos fundamentais consagrados constitucionalmente.
[5] Art. 5º, LIV – ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal
[6] BULOS, Uadi Lammêgo. Curso de direito constitucional. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 525.
[7] SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. São Paulo: Malheiros. 1994, p. 385.
[8] O exame da cláusula referente ao ‘due process of law’ permite nela identificar alguns elementos essenciais à sua configuração como expressiva garantia de ordem constitucional, destacando-se, dentre eles, por sua inquestionável importância, as seguintes prerrogativas: (a) direito ao processo (garantia de acesso ao Poder Judiciário); (b) direito à citação e ao conhecimento prévio do teor da acusação; ( c) direito a um julgamento público e célere, sem dilações indevidas; (d) direito ao contraditório e à plenitude de defesa (direito à autodefesa e à defesa técnica); (e) direito de não ser processado e julgado com base em leis ‘ex post facto’; (f) direito à igualdade entre as partes; (g) direito de não ser processado com fundamento em provas revestidas de ilicitude; ( h) direito ao benefício da gratuidade; ( i) direito à observância do princípio do juiz natural; (j) direito ao silêncio (privilégio contra a auto-incriminação); ( l) direito à prova; e ( m) direito de presença e de ‘participação ativa’ nos atos de interrogatório judicial dos demais litisconsortes penais passivos, quando existentes (HC 94.016, Rel. Min. Celso de Mello, julgado em 16-09-2008, 2ª Turma, DJE 27-2-2009).

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