Justiça

O preso “louco”: o ápice da vulnerabilidade

Nos círculos infernais experimentados pelos brasileiros, os maiores suplícios são suportados pelo tido como louco

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Apesar de toda a sanha punitivista querer indicar outra via, não resta dúvida de que, no processo penal, quem se encontra em situação de vulnerabilidade é quem sofre a persecução penal, a acusação. Esse cenário pode adquirir contornos mais graves, bastando, para tanto, o caso envolver uma pessoa com doença mental, sendo certo que é esse o foco deste texto.

O foco da persecução penal é o exame de determinada conduta daquele que deve ser tido como vulnerável. Trata-se de sujeito de direitos, sendo certo que o seu patrimônio jurídico decorre do princípio da dignidade da pessoa humana que sempre subsistirá, ainda quando lhe seja retirado o estado de inocência ante o advento de decisão penal condenatória transitada em julgado. Diante do avanço exponencial das simplificações, que não poupa a formação jurídica, quem sabe os dizeres de um criminoso possa fazer entender a necessidade de resguardo da dignidade da pessoa privada de liberdade. Oportunas as palavras, quando da sua prisão, de Elias Maluco: “Perdi chefia. Não me esculacha, não!”[1].

Os esculachos não podem ser admitidos. E que não se repute como postura misericordiosa, mas uma consequência imediata da modelagem constitucional do processo penal, isto é, um mecanismo de controle do poder punitivo estatal. Em um cenário social de pleno desenvolvimento da desqualificação dos direitos humanos, que decorre de uma visão distorcida dessa conquista cultural e se materializa em diversos chavões – “se está com pena, leva para casa”, é somente um deles –, essa configuração do processo penal como contenção do poder punitivo não pode ser desprezada; ao contrário, deve ser a todo instante reforçada e lembrada não só para a comunidade jurídica.

No caso brasileiro, a situação de vulnerabilidade se agrava em razão da inserção ou séria ameaça – afinal, existe uma banalização do cárcere – de inclusão no sistema prisional, locus reconhecidamente como inconstitucional pelo órgão de cúpula do Poder Judiciário.

Nos círculos infernais experimentados pelos brasileiros, sem sombra de dúvida, os maiores suplícios são suportados pelo tido como louco e que se encontra preso por ordem do sistema de justiça criminal. Sobre ele incide duplo preconceito. Se encontrar privado de liberdade e ainda gozar de doença mental é a representação da equação mais tenebrosa possível.

Leia também: Boas vindas à editoria de Justiça da Carta Capital

Quando a esse duplo preconceito, é imprescindível ter em consideração a permanência de uma mentalidade autoritária na sociedade brasileira, que impõe uma forma de pensar binária e maniqueísta, repercutindo em um tratamento próprio dos inimigos a quem é considerado como diferente.

De um lado, ao preso é questionada a existência de um conjunto de direitos. Ademais, sequer direitos são compreendidos com essa natureza, mas sim de benesses ou graças conferidas pelo Estado que, por representarem custos aos combalidos cofres públicos, devem ser eliminadas a partir da aplicação de uma política de austeridade.

Somente ao “homem de bem” é que se pode exigir as promessas estatais da modernidade. Despreza-se, dessa forma, o asseverado pelo Ministro Eros Grau em julgado proferido pelo Supremo Tribunal Federal:

“Nas democracias mesmo os criminosos são sujeitos de direito. Não perdem essa qualidade, para se transformarem em objetos processuais. São pessoas, inseridas entre aquelas beneficiadas pela afirmação constitucional da sua dignidade.”[3]

Leia também: Ideologia, eu quero uma pra viver

Por outro lado, diante da existência de uma consolidada aceitação de depósitos humanos que atendem pelos nomes de hospícios e manicômios, não enxergar o louco sob o prisma do preconceito exige um hercúleo esforço. Por mais que já tenha transcorrido mais de uma centúria, persevera o ideário de Simão Bacamarte com a defesa de instituição das Casas Verdes, pois permanece no imaginário coletivo a necessidade de defesa da sociedade frente ao louco. A luta promovida pela sociedade civil que culminou com a sanção da Lei nº 10.216/01 – Lei Paulo Delgado – não pode ser ignorada, até mesmo porque foi quando se positivou o óbvio: a pessoa portadora de doença mental é um ser humano cuja dignidade
deve ser respeitada.

O citado marco normativo também deve ter aplicabilidade diante do sistema prisional. Na verdade, mostra-se necessário romper com um cenário de disputa de saberes entre o jurídico e o médico, o que necessariamente implicará no questionamento e, principalmente, na superação das soluções usualmente empregadas no cotidiano forense. A partir do advento da Lei nº 10.216/01, por exemplo, não há mais espaço para a aplicação da medida de segurança. Porém, não basta apresentar encaminhamento para a hipótese de desfecho de um processo penal, pois, desde o início da persecução penal, a preocupação com a saúde mental deve se encontrar presente.

Quanto a essa mudança de postura, há a potencialidade da audiência de custódia, ainda mais quando se leva em consideração a normatização contida na Resolução nº 213, Conselho Nacional de Justiça, que aponta para a necessidade de um olhar multifacetado sobre o preso já no momento da sua imediata apresentação à autoridade judicial. Por mais que, atualmente, isso possa representar um sonho inalcançável, um delírio, a rivalidade discursiva deve dar lugar a uma integração de saberes, o que necessariamente inclui a atuação da rede de atenção psicossocial no sistema prisional.

Ao levar em consideração a relevância da expectativa otimista sobre dias melhores no período medieval, Dante apontou para a seguinte frase de boas-vindas no inferno: Deixai toda esperança, ó vós que entrais. Os tempos já são outros. O Estado foi instituído pelo viés da laicidade e a dignidade da pessoa humana deve pautar o seu agir. Logo, ainda que venha a ser inserido nas trevas prisionais, ao portador de doença mental não pode mais ser sonegado o gozo do direito à saúde. Permitir a continuidade de um processo de esvaziamento de suas esperanças representa tão-somente a manutenção da sua dúplice vulnerabilidade. O esculacho para o preso portador de doença mental não pode continuar.

Eduardo Newton é Mestre em Direito pela Universidade Estácio de Sá. Foi Defensor Público do estado de São Paulo (2007-2010) e, desde dezembro de 2010, exerce as funções de Defensor Público do estado do Rio de Janeiro.

[1] https://brasil.estadao.com.br/noticias/geral,perdi-disse-elias-maluco-ao-ser-preso,20020919p19911
[2] SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Habeas Corpus nº 84.078 julgado, em 05 de fevereiro de 2009, pelo
Tribunal Pleno.
Imagem destacada: Vistoria em Presídio no Acre. Foto: Luiz Silveira/Agência CNJ

Apesar de toda a sanha punitivista querer indicar outra via, não resta dúvida de que, no processo penal, quem se encontra em situação de vulnerabilidade é quem sofre a persecução penal, a acusação. Esse cenário pode adquirir contornos mais graves, bastando, para tanto, o caso envolver uma pessoa com doença mental, sendo certo que é esse o foco deste texto.

O foco da persecução penal é o exame de determinada conduta daquele que deve ser tido como vulnerável. Trata-se de sujeito de direitos, sendo certo que o seu patrimônio jurídico decorre do princípio da dignidade da pessoa humana que sempre subsistirá, ainda quando lhe seja retirado o estado de inocência ante o advento de decisão penal condenatória transitada em julgado. Diante do avanço exponencial das simplificações, que não poupa a formação jurídica, quem sabe os dizeres de um criminoso possa fazer entender a necessidade de resguardo da dignidade da pessoa privada de liberdade. Oportunas as palavras, quando da sua prisão, de Elias Maluco: “Perdi chefia. Não me esculacha, não!”[1].

Os esculachos não podem ser admitidos. E que não se repute como postura misericordiosa, mas uma consequência imediata da modelagem constitucional do processo penal, isto é, um mecanismo de controle do poder punitivo estatal. Em um cenário social de pleno desenvolvimento da desqualificação dos direitos humanos, que decorre de uma visão distorcida dessa conquista cultural e se materializa em diversos chavões – “se está com pena, leva para casa”, é somente um deles –, essa configuração do processo penal como contenção do poder punitivo não pode ser desprezada; ao contrário, deve ser a todo instante reforçada e lembrada não só para a comunidade jurídica.

No caso brasileiro, a situação de vulnerabilidade se agrava em razão da inserção ou séria ameaça – afinal, existe uma banalização do cárcere – de inclusão no sistema prisional, locus reconhecidamente como inconstitucional pelo órgão de cúpula do Poder Judiciário.

Nos círculos infernais experimentados pelos brasileiros, sem sombra de dúvida, os maiores suplícios são suportados pelo tido como louco e que se encontra preso por ordem do sistema de justiça criminal. Sobre ele incide duplo preconceito. Se encontrar privado de liberdade e ainda gozar de doença mental é a representação da equação mais tenebrosa possível.

Quando a esse duplo preconceito, é imprescindível ter em consideração a permanência de uma mentalidade autoritária na sociedade brasileira, que impõe uma forma de pensar binária e maniqueísta, repercutindo em um tratamento próprio dos inimigos a quem é considerado como diferente.

De um lado, ao preso é questionada a existência de um conjunto de direitos. Ademais, sequer direitos são compreendidos com essa natureza, mas sim de benesses ou graças conferidas pelo Estado que, por representarem custos aos combalidos cofres públicos, devem ser eliminadas a partir da aplicação de uma política de austeridade.

Somente ao “homem de bem” é que se pode exigir as promessas estatais da modernidade. Despreza-se, dessa forma, o asseverado pelo Ministro Eros Grau em julgado proferido pelo Supremo Tribunal Federal:

“Nas democracias mesmo os criminosos são sujeitos de direito. Não perdem essa qualidade, para se transformarem em objetos processuais. São pessoas, inseridas entre aquelas beneficiadas pela afirmação constitucional da sua dignidade.”[3]

Por outro lado, diante da existência de uma consolidada aceitação de depósitos humanos que atendem pelos nomes de hospícios e manicômios, não enxergar o louco sob o prisma do preconceito exige um hercúleo esforço. Por mais que já tenha transcorrido mais de uma centúria, persevera o ideário de Simão Bacamarte com a defesa de instituição das Casas Verdes, pois permanece no imaginário coletivo a necessidade de defesa da sociedade frente ao louco. A luta promovida pela sociedade civil que culminou com a sanção da Lei nº 10.216/01 – Lei Paulo Delgado – não pode ser ignorada, até mesmo porque foi quando se positivou o óbvio: a pessoa portadora de doença mental é um ser humano cuja dignidade
deve ser respeitada.

O citado marco normativo também deve ter aplicabilidade diante do sistema prisional. Na verdade, mostra-se necessário romper com um cenário de disputa de saberes entre o jurídico e o médico, o que necessariamente implicará no questionamento e, principalmente, na superação das soluções usualmente empregadas no cotidiano forense. A partir do advento da Lei nº 10.216/01, por exemplo, não há mais espaço para a aplicação da medida de segurança. Porém, não basta apresentar encaminhamento para a hipótese de desfecho de um processo penal, pois, desde o início da persecução penal, a preocupação com a saúde mental deve se encontrar presente.

Quanto a essa mudança de postura, há a potencialidade da audiência de custódia, ainda mais quando se leva em consideração a normatização contida na Resolução nº 213, Conselho Nacional de Justiça, que aponta para a necessidade de um olhar multifacetado sobre o preso já no momento da sua imediata apresentação à autoridade judicial. Por mais que, atualmente, isso possa representar um sonho inalcançável, um delírio, a rivalidade discursiva deve dar lugar a uma integração de saberes, o que necessariamente inclui a atuação da rede de atenção psicossocial no sistema prisional.

Ao levar em consideração a relevância da expectativa otimista sobre dias melhores no período medieval, Dante apontou para a seguinte frase de boas-vindas no inferno: Deixai toda esperança, ó vós que entrais. Os tempos já são outros. O Estado foi instituído pelo viés da laicidade e a dignidade da pessoa humana deve pautar o seu agir. Logo, ainda que venha a ser inserido nas trevas prisionais, ao portador de doença mental não pode mais ser sonegado o gozo do direito à saúde. Permitir a continuidade de um processo de esvaziamento de suas esperanças representa tão-somente a manutenção da sua dúplice vulnerabilidade. O esculacho para o preso portador de doença mental não pode continuar.

Eduardo Newton é Mestre em Direito pela Universidade Estácio de Sá. Foi Defensor Público do estado de São Paulo (2007-2010) e, desde dezembro de 2010, exerce as funções de Defensor Público do estado do Rio de Janeiro.

[1] https://brasil.estadao.com.br/noticias/geral,perdi-disse-elias-maluco-ao-ser-preso,20020919p19911
[2] SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Habeas Corpus nº 84.078 julgado, em 05 de fevereiro de 2009, pelo
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Imagem destacada: Vistoria em Presídio no Acre. Foto: Luiz Silveira/Agência CNJ

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