Justiça

Opinião: Memórias póstumas da Lava Jato

Se a franqueza é mesmo a ‘maior virtude do defunto’, a operação deve reconhecer seus débitos altíssimos com a Justiça brasileira

Dallagnol
O ex-ministro Sérgio Moro, o ministro do STF, Luís Roberto Barroso, e o procurador Deltan Dallagnol. Foto: José Cruz/Agência Brasil O ex-ministro Sérgio Moro, o ministro do STF, Luís Roberto Barroso, e o procurador Deltan Dallagnol. Foto: José Cruz/Agência Brasil
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Após sete anos de uso instrumental do direito na disputa política, a força-tarefa da Lava Jato encerrou, formalmente, suas atividades. A operação, iniciada em 17 de março de 2014, teve seu fim decretado em 1 de fevereiro de 2021, incorporada ao Gaeco — Grupo de Atuação Especial de Repressão ao Crime Organizado, do Ministério Público Federal.

Entre os escândalos envolvendo o fim da Lava Jato somam-se a aliança e ruptura com o bolsonarismo e a série de reportagens de jornalismo investigativo da “Vaza Jato”, alvo da Operação Spoofing, que revelaram relações ilegais e imorais entre corporações policiais, MPF e Justiça Federal, com o fim de perseguir inimigos políticos, tratando-se, para falar como o ministro Gilmar Mendes, de “uma obra ficcional fantástica, que merece o nobel de literatura” ou do “maior escândalo judicial da humanidade”.

Em 9 de fevereiro de 2021, a 2ª Turma do STF negou o pedido de membros do MPF de reconsideração da decisão de Lewandowski, dada em 28/12/2020, na Reclamação (RCL) 43007, que deu acesso a Lula às mensagens obtidas na Operação Spoofing.

A tentativa de procuradores e de Sérgio Moro de que a defesa de Lula não tivesse acesso às mensagens, que revelaram relações espúrias entre polícia, Ministério Público Federal e a 13ª Vara Federal de Curitiba, especialmente o ex-juiz e ex-ministro da justiça, Sérgio Moro, foi o último suspiro antes do sepultamento da operação. Relações essas que, para falar como o próprio Deltan Dallagnol, ao comentar cooperação ilegal com Mônaco, revelam que o procurador, assim como os outros membros envolvidos na força-tarefa, há tempos perderam a “vergonha na cara”.

Contudo, o fim da Lava Jato se trata mais de uma operação de marketing do que a mudança efetiva na racionalidade que ordena a constante politização do judiciário. O “combate à corrupção”, nos moldes lavajatistas, continuará nos Gaecos — Grupos de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado, modelo já delineado pelo Conselho Nacional do MPF, em 2013, embora com menos força.

Em Curitiba, quatro membros da Lava Jato integrarão o Gaeco, os procuradores Roberson Pozzobon, Laura Tessler, Luciana Bogo e Alessandro Oliveira, todos com mandatos até agosto de 2022. Outros dez atuarão até o dia 1 de outubro de 2021, sem dedicação exclusiva.

Mas o fim da Lava Jato não representa o fim do lawfare, ou melhor, do uso instrumental do direito nas disputas e perseguição políticas, quando o sistema judicial é utilizado na neutralização dos inimigos, a fim de alimentar um processo de despolitização, que encontra termômetro no sentimento “antipolítica”.

 

“Ao verme que primeiro roeu as frias carnes do meu cadáver dedico como saudosa lembrança estas memórias póstumas”.

Em clássico da literatura, “Memórias póstumas de Brás Cubas”, Machado de Assis dá voz à narrativa de Brás Cubas, um defunto-autor, membro da elite carioca do século XIX, de família abastada, formado em Direito, em Coimbra, contumaz praticante do “romantismo prático” e do “liberalismo teórico”. Aspirante a político, depois deputado, experimentou sucessivos fracassos. Primeiro, como aspirante a ministro de estado e, depois, como jornalista de oposição.

No livro, a narrativa é conduzida pelo morto, que conta, em tom pessimista, sua história de trás pra frente. Sua última possibilidade de glória foi o “Emplasto Brás Cubas”, um remédio que curaria todas as doenças. Ironicamente, Brás Cubas, anunciando seu emplasto, molha-se e adquire pneumonia, falecendo aos 64 anos.

O final da Lava Lato, assim como Brás Cubas, revela que tantos abusos cometidos não os fizeram alcançar a celebridade do “emplasto”: “não fui ministro, não fui califa, não conheci o casamento”.

O “Emplasto Brás Cubas” pode ser comparado à “luta contra a corrupção”. O remédio não tinha como objetivo tratar as melancolias, mas estampar as caixas do medicamento, colocar seu nome em evidência: um projeto de vaidade e de poder. Para falar como Brás Cubas: o “amor da glória“.

Assim jaz a Lava Jato: morta por seu próprio veneno, no “amor da glória“, que terminou por lhe engasgar. Na defesa da “luta contra a corrupção”, apresentada como o remédio contra todos os males, morre como a maior representação da corrupção no sistema judiciário da história mundial. Uma história de dar inveja a romancistas, como Gabriel García Marquez, diria o ministro Gilmar Mendes, ou ao próprio Machado de Assis.

Contudo, diferentemente de Brás Cubas, cuja glória e irônico otimismo estava em não ter gerado filhos, não conseguindo “transmitir o legado de nossa miséria“, a Lava Jato deixa heranças malditas.

A corrupção, apresentada como um tipo de “câncer que destrói a democracia”, abre margens para o aprofundamento do projeto neoliberal que, ironicamente, é o verdadeiro câncer da Terra. Construída como um “mal público”, uma doença venenosa cujo emplasto é: menos Estado e menos burocracia é igual a menos corrupção, alarga-se o espaço para os neoextrativismos e para as privatizações.

Tal pensamento, aliado à espetacularização da mídia e antecipação de culpa, com métodos fascistas de comoção pública, propiciou projetos neofascistas como do atual governo e o processo de despolitização que coloca em severo risco a democracia.

Os legados da Lava Jato são o próprio (des)governo de Bolsonaro e a forma institucional da politização da justiça, um dos passos do problemático processo de messianismo jurídico, que é, acima de tudo, uma racionalidade, uma libido, um aprofundamento da lógica de mercantilização do mundo.

E assim como o “Emplasto Brás Cubas”, o fanatismo e o vício da “cruzada contra a corrupção”, enquanto projeto de poder, com seus dogmas e proselitismo, continuam a proliferar na política brasileira, deixando a democracia carcomida, talvez incurável por qualquer remédio ou emplasto. “O vício é muitas vezes o estrume da virtude”, diria Brás Cubas.

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