Justiça

Juíza acusada de ameaçar e coagir quilombolas para impedir titulação volta à mira do CNJ

Denúncia envolve ofensiva contra o território quilombola Brejão dos Negros, em Sergipe, titulado pelo governo Lula há uma semana. Procurada, magistrada não se manifestou

Esta é a juíza Rosivan Machado, da comarca de Neópolis, no leste de Sergipe - Reprodução/Assembleia Legislativa de Sergipe
Apoie Siga-nos no

A juíza Rosivan da Silva Machado, responsável pela comarca de Neopólis, no leste de Sergipe, voltou à mira do Conselho Nacional de Justiça e se tornou alvo de uma reclamação disciplinar por suspeita de atuar junto a um grupo de empresários para impedir a titulação de terras quilombolas na região com uso de ameaças.

No centro da investigação, que passou a tramitar no CNJ em 4 de julho, estão denúncias de violação aos direitos humanos e conduta incompatível com a magistratura.

O relatório, ao qual CartaCapital teve acesso, menciona ameaças de morte, tentativas de homicídio e grilagem de terras públicas, além de “coação e guerra psicológica objetivando impedir o acesso aos territórios de remanescentes e a identidade cultural dos quilombolas”.

A ofensiva envolve o território quilombola Brejão dos Negros, que fica na cidade sergipana de Brejo Grande (a 108 km de Aracaju). Mais de 480 famílias vivem no local e lutam desde 2005 pela regularização fundiária.

Localizada às margens do Velho Chico, a área de quase 9 mil hectares reúne as comunidades Resina, Santa Cruz, Brejão dos Negros, Carapitanga e Brejo Grande, todas formadas a partir da fuga de negros escravizados que trabalhavam em fazendas da região no século 19.

Rosivan Machado e outros 16 empresários – incluindo os donos da Norcon Sociedade Nordestina de Construção, empresa alvo da Justiça do Trabalho pela morte de dois funcionários, em 2015 – tentam anular o relatório técnico de identificação da comunidade.

Desde 2006, o grupo apresentou ao menos 18 recursos ao Conselho Diretor do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária com questionamentos ao documento, todos negados pelo órgão – o mais recente revés foi imposto em 16 de junho. Entre outros argumentos, eles afirmam que o material estaria “imbuído de inverdades” e fora produzido em “violação a princípios constitucionais, como a impessoalidade”.

“Os recorrentes se cingem a demonstrar o inconformismo com os trabalhos de regularização do território quilombola Brejão dos Negros e com a decisão tomada pelo Incra/SE, o que não pode ser confundido com a existência de vício processual”, escreveram técnicos da Coordenação-Geral de Regularização de Territórios Quilombolas, ao justificar a negativa.

O processo no CNJ tem como pano de fundo um relatório produzido pela Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados que descreve o terror imposto aos quilombolas. A juíza Machado é apontada como a responsável por promover “campanhas de guerra psicológica contra a comunidade, afirmando que aqueles que se identificarem como quilombolas voltarão para escravidão, para o tronco, para chibata e perderão todos os seus direitos“.

O documento também cita o marido da juíza – Marcelino Ferreira, que foi vice-prefeito de Brejo Grande entre 2008 e 2012, teria usado jagunços e homens armados para coagir os moradores “a assinarem abaixo-assinados renegando a condição de remanescentes”, segundo o texto.

Depois de assinados, os termos seriam registrados em cartório para contestar a titulação das terras. A reportagem conversou com quatro membros da comunidade que, sob anonimato, relatam episódios de ameaças e chantagem. As represálias a quem não atendia às ordens envolviam a morte de animais domésticos, afundamento de barcos e destruição de plantações.

Há algumas semanas, o Incra pôs fim à longa batalha da comunidade e publicou uma portaria em que reconhece o território como remanescente de quilombo. As terras já haviam sido certificadas pela Fundação Palmares há quase duas décadas, mas continuavam expostas à especulação imobiliária e ao avanço da carcinicultura na região.

A determinação constava em edição do Diário Oficial da União em 20 de novembro, Dia da Consciência Negra, uma data significativa para a população afrobrasileira.

A alegria pela conquista perseguida há mais de uma década, porém, logo foi substituída pelo medo: Maria Izaltina Santos, a principal liderança da comunidade, voltou a receber ameaças de morte.

Em meio ao avanço das hostilidades, dois procuradores do Ministério Público Federal e representantes do Ibama e da Polícia Federal estiveram na comunidade na última segunda-feira para uma visita técnica. Um inquérito policial foi aberto para apurar os responsáveis pelas ameaças.

Procurada por telefone, a juíza Rosivan Machado não atendeu aos contatos de CartaCapital. O espaço segue aberto.

Nos autos do processo, a magistrada disse que os fatos apontados na denúncia “jamais aconteceram” e sustentou que sua relação com o quilombo é “unicamente de natureza pessoal, familiar e social”. Também argumentou, em ofício enviado ao CNJ e obtido pela reportagem, que não conhece nem mantém vínculo com integrantes da comunidade.

O corregedor-geral Luís Felipe Salomão pediu informações ao Tribunal de Justiça de Sergipe sobre eventuais apurações em andamento na Corte sobre a conduta de Rosivan. No despacho, assinado em 29 de outubro, ele afirma ter visto graves violações ao Código de Ética da magistratura.

Questionado, o TJ respondeu apenas que os procedimentos contra Rosivan foram abertos e arquivados pela Corregedoria pouco tempo depois.

A juíza foi alvo de investigações internas que tramitaram entre setembro de 2011 e março de 2012, abertas após questionamentos do CNJ sobre denúncias de violação aos direitos de comunidades tradicionais feitas à época. As informações constam de documentos obtidos pela reportagem após o tribunal se negar a fornecê-las.

À época, o Ministério Público de Sergipe disse ter visto “manancial probatório à aplicação da reprimenda de advertência (art. 2 da Resolução 135/2011) em razão de abuso das funções judicantes” e pediu a aplicação de sanções administrativas contra Rosivan.

O desembargador Ricardo Múcio Santana, contudo, votou pelo arquivamento da apuração e teve o entendimento seguido pelos demais integrantes da Corte. Para o magistrado, relator do caso, as denúncias se baseavam apenas no “ouvir dizer” de líderes quilombolas e não traziam provas concretas de eventual violação à atuação da juíza.

ENTENDA MAIS SOBRE: , , , , , , ,

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo

Apoie o jornalismo que chama as coisas pelo nome

Os Brasis divididos pelo bolsonarismo vivem, pensam e se informam em universos paralelos. A vitória de Lula nos dá, finalmente, perspectivas de retomada da vida em um país minimamente normal. Essa reconstrução, porém, será difícil e demorada. E seu apoio, leitor, é ainda mais fundamental.

Portanto, se você é daqueles brasileiros que ainda valorizam e acreditam no bom jornalismo, ajude CartaCapital a seguir lutando. Contribua com o quanto puder.

Quero apoiar

Leia também

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo