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Fanáticos de toga

Os entraves ao aborto legal criados pela gestão Bolsonaro foram revogados, mas juízes insistem em desrespeitar a lei

De volta à normalidade? Não houve avanços na pauta, apenas o restabelecimento de garantias jurídicas, avaliam especialistas - Imagem: Fábio Rodrigues Pozzebom/ABR
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Uma menina de 12 anos, vítima de abusos e grávida pela segunda vez em um ano, chegou ao hospital em Teresina para realizar aborto legal, mas foi coagida por uma médica a seguir com a gestação. Segundo a profissional, o parto seria seguro, por se tratar de uma segunda gravidez. Pouco importa se a criança sofreu violência sexual. Depois disso, a garota foi enviada a um abrigo na capital, onde aguarda há quatro meses para realizar o procedimento. A pequena gestante enfrenta crises de ansiedade e chegou a tentar o suicídio, relatam conselheiros tutelares que acompanham o caso.

Não bastasse o constrangimento sofrido no hospital, agora a menina está sob a tutela da juíza Maria Luiza de Moura Mello e Freitas, da 1ª Vara de Infância e Juventude de Teresina, que nomeou uma defensora pública para representar os interesses do feto. Isso mesmo, você não leu errado. A magistrada colocou-se em defesa do feto com base em uma lei que não existe, o Estatuto do Nascituro, defendida por parlamentares evangélicos e bolsonaristas, mas que jamais foi aprovada pela Câmara, muito menos pelo Senado. O projeto, por sinal, é considerado inconstitucional por incontáveis juristas, uma vez que a Constituição Federal e o Código de Processo Civil consideram como pessoas de direito apenas os nascidos vivos. Enquanto o imbróglio jurídico se arrasta, a gestação avança e torna cada mais difícil a interrupção da gravidez sem riscos à vida da mãe, uma criança de 12 anos.

Em 2020, um caso semelhante repercutiu em todo o País após fanáticos religiosos mobilizados pela ativista de extrema-direita Sara Winter tentarem impedir uma menina capixaba de 10 anos, estuprada pelo tio, de interromper a gravidez. A criança teve a ficha médica vazada e a vida devastada pelos fundamentalistas, que a perseguiram até Pernambuco, para onde foi transferida, a fim de conseguir realizar o procedimento com segurança. Nos bastidores, a então ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Damares Alves, hoje senadora, enviou emissários para tentar convencer os conselheiros tutelares a reprovarem o aborto legal.

A legislação brasileira permite a interrupção da gravidez apenas para os casos de estupro, de risco de vida à gestante ou feto anencéfalo, que não teria condições de sobreviver fora do ventre materno. Ou seja, uma criança vítima de violência sexual jamais deveria ter a decisão de abortar questionada, pois está amparada pela lei. Mas, nos últimos anos, o governo de Jair Bolsonaro criou uma série de obstáculos para impedir as mulheres de exercerem esse direito. Ao assinar a Declaração do Consenso de Genebra sobre Saúde da Mulher e Fortalecimento da Família, pacto firmado por países sob governos de extrema-direita, Bolsonaro feriu, inclusive, garantias asseguradas pela Constituição de 1988.

Em Teresina, uma magistrada evocou o inexistente Estatuto do Nascituro para nomear uma “representante dos interesses do feto”

Não por acaso, uma das primeiras iniciativas do governo Lula foi retirar o País desse acordo. A nova ministra da Saúde, Nísia Trindade, revogou um conjunto de portarias que tentavam dificultar o acesso ao aborto legal e ao tratamento das mulheres submetidas a procedimentos clandestinos. Recentemente, confirmou ainda a adesão nacional ao Compromisso de Santiago e à Declaração do Panamá, pactos que têm por objetivo fortalecer os direitos reprodutivos das mulheres.

Responsável por realizar o aborto de uma criança de 10 anos em Pernambuco, o médico obstetra Olímpio de Moraes celebra a mudança de postura do governo, mas é cético em relação a avanços. “Tiramos Bolsonaro do poder, mas a sociedade brasileira continua a mesma, as ­pessoas são muito conservadoras. E os médicos não são diferentes, pode-se dizer que a grande maioria é extremamente religiosa, o que leva a essas situações que temos visto, de violação dos direitos reprodutivos das mulheres”, lamenta, acrescentando que o debate sobre o aborto está estagnado no Brasil desde o primeiro governo de Dilma Rousseff. “Historicamente, quando um governo progressista se vê ameaçado, a primeira coisa que ele coloca na mesa de negociação é o corpo da mulher.”

Mesmo sem avanços na legislação, o obstetra aponta medidas que poderiam facilitar o aborto nos casos garantidos por lei. “Não tem motivo para o misoprostol não ser vendido nas farmácias, com controle, claro, como é o caso dos psicotrópicos”, defende Moraes. Conhecido pela marca comercial Cytotec, o misoprostol é um medicamento utilizado para induzir o parto, para deter hemorragias pós-parto e também para induzir ao aborto quando necessário. “Uma mulher nas primeiras semanas de gestação nem precisaria de internação para interromper a gravidez, bastaria receber o misoprostol em casa e ter acompanhamento médico remoto.”

A advogada Gabriela Rondon, pesquisadora do Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero da Universidade de Brasília, explica que as portarias revogadas pela ministra da Saúde fazem o Brasil voltar à normalidade da legislação, o que não representa exatamente um avanço. “Basicamente, o que aconteceu foi a remoção de obstáculos indevidos ao aborto legal.” Entre as normas extintas está a que obrigava os profissionais de saúde a denunciar à polícia um caso de estupro para poder realizar o aborto. “Essa medida causava confusão e propunha vinculação indevida da política de saúde com a política criminal, e consequentemente tinha o feito de afastar as mulheres de buscar seus direitos. Nesse sentido, o novo governo trabalha para restituir garantias jurídicas.”

A antropóloga Débora Diniz, coordenadora da Pesquisa Nacional do Aborto de 2016 e uma das principais defensoras da descriminalização do procedimento, acredita que, com a chegada de Nísia Trindade na Saúde, de Cida Gonçalvez na pasta das Mulheres e Sílvio de Almeida nos Direitos Humanos, há condições de avançar nesse debate. “É um conjunto de ministros capazes de trazer à agenda do aborto sua integralidade para a proteção da vida das mulheres e das pessoas com capacidade de gestar. O aborto volta a ser uma agenda de direitos humanos.”

Para Diniz, o principal avanço até o momento é o afastamento do País do fanatismo religioso imposto pela ex-ministra Damares Alves. “O governo Bolsonaro sempre foi um governo antigênero e voltado ao controle dos corpos das mulheres. Agora há o retorno da questão do aborto para uma agenda democrática. Se isso vai significar que o governo Lula terá um protagonismo ativo no campo das políticas públicas, nós não sabemos. Mas imagino que, por esses primeiros sinais, vai ser um governo que não vai criar barreiras”, avalia. “Neste momento, existe a possibilidade­ de a pauta avançar na Suprema Corte, dentro dos marcos legais, e o novo governo não deve criar impedimentos.” •

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1245 DE CARTACAPITAL, EM 8 DE FEVEREIRO DE 2023.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Fanáticos de toga “

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