Justiça

“Estamos diante do risco de um novo cerco jurídico-repressivo”

Em entrevista à CartaCapital, Juliano Medeiros, presidente do PSOL, fala sobre o cenário político nacional e as estratégias do partido

Juliano Medeiros, presidente nacional do PSOL
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Em pleno governo Bolsonaro, a vida não está tranquila para parlamentares do bloco progressista, que devem além de propor leis, resistirem frente aos retrocessos que se concretizam a cada dia. Nesse cenário inóspito, a bancada do PSOL (Partido Socialismo e Liberdade) é uma das principais frentes parlamentares de oposição ao governo do ex-capitão. À frente do partido na presidência se encontra Juliano Medeiros, mestre em História e doutorando em Ciência Política pela Universidade de Brasília (UNB). Ele foi dirigente da União Nacional dos Estudantes (UNE), coordenou a liderança do PSOL  na Câmara dos Deputados e em dezembro de 2017 foi eleito para ocupar o cargo nos próximos anos.

De lá pra cá, Juliano se posicionou sobre os mais diversos episódios da política nacional e internacional, como a recente renúncia de Jean Wyllys ao terceiro mandato parlamentar em razão das ameaças de morte que vinha recebendo constantemente, à instabilidade na Venezuela com seu auto proclamado presidente Juan Guaidó, e mais recentemente ao ecocídio que chocou o Brasil com o rompimento da barragem da Vale em Brumadinho – MG, além da suposta ligação da família Bolsonaro com milicianos investigados por envolvimento com o assassinato de Marielle Franco.

Em entrevista à CartaCapital, foi oportunizado que ele falasse ao público leitor sobre os mais variados temas. Confira:

CartaCapital: Através do setorial jurídico do PSOL, com quais ações vocês pretendem ingressar na Justiça para conter os danos do governo Bolsonaro?

Juliano Medeiros: A situação em relação ao Judiciário é muito delicada. Em outros tempos, conseguimos vitórias importantes através de ações judiciais, como no caso da demarcação contínua da terra indígena Raposa-Serra do Sol ou da união civil homoafetiva. Acontece que os tempos são outros e a formação do STF mudou muito. Foi essa formação que deu ares de legalidade ao impeachment de Dilma, à prisão em segunda instância e à reforma trabalhista. São medidas claramente inconstitucionais chanceladas pelo Supremo. Por isso, é preciso ter cautela para acionar o Judiciário apenas quando houver chances reais de vitória. Porque uma decisão contrária a uma ação pode gerar um efeito em cascata e até acelerar a normatização de uma medida contra a qual estamos lutando.

Nós acionamos recentemente a Comissão de Ética Pública da Presidência da República contra a promoção do filho do vice-presidente. A decisão saiu rapidamente, indeferindo a ação do PSOL. Não foi notícia em lugar nenhum. Então, é preciso ter cautela e escolher as batalhas que valem a pena ser lutadas, porque o Judiciário tornou-se um instrumento de legitimação da agenda conservadora e não pode ser tratado como um poder “neutro”.

CC: Como você avalia a renúncia de Jean Wyllys? O que ela significa para democracia do país e quais são as expectativas em relação à David Miranda?

JM: A decisão do Jean mostra o quanto nossa democracia está deteriorada. Nós sabemos que é uma democracia incompleta, que jamais existiu plenamente para o jovem da periferia, para a empregada doméstica, para o sem-terra ou o sem-teto. Mas a democracia forjada em 1988, ainda que não tenha produzido igualdade de oportunidades, tinha no seu DNA a luta contra o autoritarismo. Ou seja, foi criada pensando no que foram os 21 anos de ditadura militar. Por isso, quando um deputado federal eleito decide não tomar posse porque o Estado brasileiro é incapaz de assegurar sua segurança, ou quando uma vereadora é assassinada e o crime fica impune por quase um ano; ou ainda, quando um ex-presidente é preso e privado de direitos básicos, a democracia morre um pouco mais.

Estou certo de que a decisão de Jean é um grito de desespero com tudo o que está acontecendo. Por isso, vamos usar esse episódio triste para denunciar aos quatro cantos que o Brasil vive uma escalada de intolerância, ódio e violência que pode levar a um regime de perseguição à esquerda e cerceamento das liberdades políticas. O David, que assumiu o mandato na última semana, será um grande aliado nesse enfrentamento. Além de homossexual, como Jean, ele tem um trabalho importante na área dos direitos humanos. Vinha sendo um excelente vereador e será um grande deputado federal, não tenho dúvidas. A bancada do PSOL segue firme com a presença de David.

CC: Como você vê o ecocídio em Brumadinho? A sua proposta é de reestatizar a Vale do Rio Doce?

JM: O crime cometido pela Vale S/A não é o primeiro e, possivelmente, não será o último. Basta lembrar que em Mariana, a Samarco era majoritariamente controlada pela Vale. Isso coloca um debate urgente: a necessidade de ampliar as margens de lucro, própria da dinâmica concorrencial, está levando o Brasil a um desastre de grandes proporções.

A Vale S/A tornou-se a maior empresa privada brasileira graças aos benefícios concedidos por diferentes governos nos últimos anos, mas também, fruto da redução drástica do investimento em segurança. Uma empresa que é incapaz de assegurar as condições para a prevenção de tragédias como as que aconteceram em Brumadinho, Mariana, Barcarena e outras, não pode seguir operando impunemente. E não basta prender os engenheiros que atestaram a segurança da barragem ou mesmo a diretoria da Vale S/A. Isso não passa de populismo penal. A única medida eficiente é retomar o controle público da empresa, submetendo-a à legislação ambiental e a um rigoroso controle social por parte das comunidades que sofrem os efeitos da mineração. Qualquer outra medida será apenas o prenúncio de novas tragédias.

CC: Qual a sua opinião sobre a crise na Venezuela hoje?

JM: A situação na Venezuela é muito complexa, porque envolve elementos de política interna, economia e geopolítica. A crise na Venezuela tem, basicamente, três fatores: a queda do preço do petróleo no mercado internacional, estimulado por EUA e Arábia Saudita, para estrangular Irã e Venezuela; o crescente isolamento político dos governos de corte bolivariano, com a guinada à direita do cenário político sulamericano; e a morte de Chávez, um líder político extraordinário que tocava as massas e conseguia equilibrar-se mesmo em contextos extremos. Hoje o governo de Maduro está crescentemente isolado e não tem outra alternativa senão resistir. Outra opção seria aceitar uma intervenção estrangeira, militar ou não, o que seria inadmissível. Mesmo a proposta de México e Uruguai de convocar novas eleições com outros candidatos, seria o reconhecimento da ilegitimidade do atual governo. Essa medida seria, por si só, uma derrota do chavismo.

Considero que o governo Maduro tem muitos problemas, mas é o legítimo governo da Venezuela. Como reconhecer um presidente que sequer disputou as eleições? Isso sim seria subverter completamente a legalidade. Nesse sentido, a decisão do grupo de Lima e dos EUA de reconhecer Juan Guaidó como “presidente encarregado” é um ataque sem precedentes à soberania de um país amigo. Essa decisão abre caminho para uma intervenção militar estadunidense, o que seria uma catástrofe para a região. Como os índices de aprovação de Trump estão descendo ladeira abaixo, devemos estar atentos às suas movimentações, denunciando qualquer ensaio de conflito armado. Portanto, a posição do PSOL é de rechaço a qualquer intervenção externa na Venezuela e defesa de uma saída pacífica e constitucional para a crise que o país vive.

Ato no plenário da Câmara Federal em repudio ao assassinato da vereadora Marielle Franco

CC: Recentemente veio à tona a notícia de que Flávio Bolsonaro empregou a mãe e a esposa de um dos milicianos acusados de envolvimento no assassinato de Marielle, como vocês têm lidado com isso?

JM: Em algumas semanas, as suspeitas em relação a Flávio Bolsonaro evoluíram de confisco do salário dos servidores do seu mandato à relação com milicianos. É muito grave. Estão fartamente comprovadas as relações de proximidade entre a família Bolsonaro e as máfias que atuam em diferentes comunidades do Rio. Essas máfias são compostas por policiais corruptos, assassinos de aluguel e todo tipo de criminosos. O que espanta é que, durante a campanha, mesmo sendo públicas, as homenagens da família Bolsonaro a esses milicianos foram solenemente ignoradas pela grande imprensa. Agora que a família chegou ao poder fica muito mais difícil apurar as denúncias. De qualquer forma, o PSOL não dará um dia de descanso a Flávio Bolsonaro. Ele não tem condições de exercer um mandato no Senado Federal enquanto pesam contra ele suspeitas de relações com grupos de assassinos. Ou ele prova que não é sócio das milícias, ou precisará deixar o mandato.

CC: O que você achou do impedimento de Lula de comparecer ao enterro do seu irmão Vavá?

JM: O episódio envolvendo o pedido do ex-presidente Lula para exercer seu direito de comparecer ao velório do irmão mostra o caráter político de sua prisão. Os homens de Curitiba, e seus pares em Brasília, morrem de medo de Lula. Pensam que se ele for fotografado, se for filmado, se comparecer a um evento público, vai desestabilizar esse arremedo de regime que eles defendem. Isso não é verdade, infelizmente. Nem no dia de sua prisão Lula conseguiu mobilizar o povo brasileiro contra aquele absurdo. Mas o Judiciário não quer correr qualquer risco. E está disposto a cometer qualquer arbitrariedade para impedir que Lula volte a viver em liberdade. O episódio do velório de seu irmão é apenas mais um, mas certamente haverão outros. Há condenações absurdas no forno. Não querem deixar Lula sair vivo da prisão. Por isso defendemos sua liberdade.

CC: Com o Ministério da Justiça sob o comando de Sérgio Moro, o que vocês esperam do combate à corrupção? Há alguma medida dele que vocês apoiam?

JM: A presença de Sérgio Moro como ministro da Justiça de um governo de extrema-direita que promete “acabar com os ativismos” altera radicalmente a relação entre Executivo e Judiciário. Trata-se de um ministro que tem feito de sua “cruzada contra a corrupção” um instrumento de perseguição política contra adversários. É verdade que havia corrupção nos governos do PT. Não foi o Moro quem colocou U$ 100 milhões na conta do Pedro Barusco, gerente da Petrobrás. Mas o trabalho da Lava Jato se desvirtuou, com procuradores em busca de holofotes e um juiz aspirando chegar ao Ministério da Justiça. Um escândalo! Por isso é preciso estar atento, porque a escalada autoritária contra a esquerda e os movimentos sociais podem ganhar, com Moro, um componente legitimador.

As promessas de um novo pacote anticorrupção e de mudanças na lei antiterrorismo podem ter como alvo os sindicatos, partidos de esquerda e movimentos sociais. Estamos diante do risco de um novo cerco jurídico-repressivo, só comparável à Ditadura Militar. Enquanto isso, a esquerda precisará mostrar que a corrupção não é privilégio deste ou daquele partido, mas um instrumento de manutenção do sistema de privilégios que existe no Brasil desde sua criação. É um problema estrutural do capitalismo brasileiro, que só pode ser efetivamente combatido com controle social e transparência, e não com a ampliação do Estado penal. Creio que o PSOL, por não ter sido envolvido em denúncias de corrupção, está credenciado para travar essa discussão.

CC: Aqui em São Paulo, deputados do PSOL se elegeram com R$ 109 mil do fundo partidário, enquanto que uma candidatura negra teve apenas R$ 4 mil. Isso não é desproporcional? Como o partido vai se posicionar nas próximas eleições?

JM: A criação do fundo eleitoral é uma grande novidade e ainda estamos nos adaptando a ela. Imagine que o PSOL nunca aceitou recursos de grandes empresas, como bancos ou empreiteiras, e isso gerava uma profunda desigualdade em relação aos demais partidos de esquerda, que aceitavam esse tipo de financiamento. O fundo eleitoral público pode ser um instrumento para diminuir um pouco esse abismo. Internamente, fizemos um amplo processo de debate nas nossas instâncias de direção para definir os critérios de distribuição do fundo. Reservamos recursos para candidaturas de mulheres, negros e negras, indígenas e LGBTs, coisa que nenhum outro partido fez. Mas também utilizamos critérios como competitividade, representatividade nos movimentos sociais, correlação de forças em cada estado, dentre outros. Claro que compor esse mapa é muito difícil, já que há sempre algum nível de subjetividade presente. Mas estou seguro de que nossos critérios foram estabelecidos com muito debate e transparência nas instâncias partidárias, ao contrário do que acontece na maioria dos partidos brasileiros. O resultado mostra o acerto dessa opção: dobramos nossa bancada e superamos a cláusula de barreira com folga, apesar do contexto absolutamente desfavorável para a esquerda.

Nas próximas eleições a expectativa é vencer as primeiras eleições em capitais e grandes cidades brasileiras. O PSOL está pronto para enfrentar o desafio de governar e postular a condição de alternativa para quem busca uma opção diferente dos demais partidos de esquerda ou centro-esquerda.

CC: Até agora já tivemos alteração das regras da Lei de Acesso à Informação –  ampliando as possibilidades de classificar dados do governo como ultrassecretos por 25 anos – o decreto sobre posse de armas, que vai na contramão do consenso científico sobre redução da violência e criminalidade, a nova estrutura ministerial, o “fim” da Funai, enfim, para onde estamos caminhando?

JM: Nesse primeiro mês de governo, Bolsonaro mostrou enorme dificuldade de encontrar um centro estável de poder. Em um governo que é sua imagem e semelhança, competem diferentes “núcleos de poder” que impedem que o projeto do presidente possa avançar. São ao menos quatro núcleos: o militar, o econômico (com Paulo Guedes à frente), o político-ideológico e o judicial. Cada um lutando para fazer valer sua agenda, nem sempre coerente com o todo. Por isso as medidas tomadas no mês de janeiro e aquelas anunciadas como prioridade para os primeiros 100 dias são tão impopulares. No ministério das relações exteriores a grande realização é mudar a capa dos passaportes! Por isso, penso que o governo viverá dificuldades nos próximos meses. Basta notar que, dia 1º de janeiro, 75% dos brasileiros achavam que o governo Bolsonaro seria bom ou ótimo; quinze dias depois esse número caiu para 65%. Ou seja, 20 milhões de pessoas já perderam suas ilusões.

Acredito que, com uma ação articulada das forças de oposição, podemos fazer frente aos ataques de Bolsonaro, a começar pela reforma da previdência, que deve ser enviada ao Congresso Nacional nas próximas semanas, e que conta com o apoio dos presidentes da Câmara e do Senado. O povo brasileiro quer paz, prosperidade e direitos. Quando Bolsonaro entregar desordem, recessão e ataques aos serviços públicos, vamos recuperar as condições para dialogar com amplos setores. Isso não vai demorar muito. Basta ver o exemplo da Colômbia, onde o novo presidente ostenta níveis de popularidade baixíssimos. Até lá, o PSOL seguirá trabalhando pela unidade das forças democráticas contra qualquer ataque ao povo brasileiro.

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