2018 se despede deixando a incômoda sensação de que voltamos no tempo. Não há conquistas a serem comemoradas. A “reforma” trabalhista, como ficou conhecida a Lei 13.467/2017, já completou mais de um ano e obrigou seus defensores a reconhecer o óbvio: não houve geração de empregos, aumento de competitividade ou modernização das relações de trabalho.
Ao contrário, o Ministério do Trabalho, cuja extinção é pretendida pela equipe de Jair Bolsonaro[1], verificou em 2018 a existência de 1.398 pessoas em condição de escravidão[2]. O número, que certamente não contempla a totalidade de pessoas escravizadas no país, não era tão alto desde 2014 e aumentou 116,74% em relação a 2017. A informalidade e os vínculos precários também aumentaram[3].
Bem que seria melhor iniciar essa coluna de artigos com notícias alvissareiras, tão necessárias, especialmente nessa época do ano, em que a passagem do tempo e o significado da vida revelam-se com maior intensidade, mas o momento por que passa o Brasil não nos permite ingenuidade.
Basta percebermos que o único aspecto apontado como positivo em relação às alterações sofridas pela legislação trabalhista é a redução do número de demandas. Um argumento perverso, que deveria envergonhar quem o utiliza.
A redução de uma média de 50% do número de ações trabalhistas ajuizadas em 2018, quando comparado com o número de demandas propostas em 2017, certamente não se deve ao repentino cumprimento espontâneo dos direitos das trabalhadoras e trabalhadores. Aliás, é mesmo impressionante que isso precise ser dito.
Uma das principais maldades contida na Lei 13.467 é a vedação do acesso à justiça através da cobrança de honorários de advogado e custas de quem, mesmo sendo pobre e beneficiário da gratuidade da justiça, ajuíza demanda e não convence o Juiz de que tem razão. Gratuidade que, segundo o artigo 5º da Constituição, deve ser integral. É essa a exclusiva razão para a redução do número de ações.
Estamos impedindo que as lesões a direitos fundamentais cheguem ao Poder Judiciário, não que elas sejam perpetradas. Simples assim. Vergonhoso assim.
Mais vergonhoso do que aprovar uma lei com tal teor é presenciar um Ministro do Supremo Tribunal Federal proferir voto em que justifica a suposta legalidade da alteração que penaliza trabalhadores, afirmando, por exemplo, que “o empregador já não cumpre mesmo sua obrigação, ele fica esperando a reclamação trabalhista e aí então ele resolve em juízo”. Então concluir que “essa litigiosidade excessiva das relações de trabalho prejudica o mercado de trabalho, prejudica os trabalhadores e prejudica os empreendedores corretos e honestos”[4]. E ainda utilizar desse argumento para justificar tal impedimento de acesso à justiça. Ou seja, pela compreensão expressada no voto do Ministro o descumprimento de direitos fundamentais é culpa dos trabalhadores, que insistem em exercer cidadania buscando em juízo o descumprimento de seus direitos fundamentais[5]. Seria cômico se não fosse trágico.
Enquanto a “reforma” impede concretamente que os conflitos entre capital e trabalho cheguem ao crivo do Poder Judiciário, aumenta o número de pessoas escravizadas. É certo que não se trata de coincidência. Também não é coincidência o número de pessoas eliminadas nos últimos meses, todas elas de algum modo ligadas a movimentos sociais que defendem direitos humanos[6]. Nem tampouco é coincidência o fato de que deputados em diferentes locais do Brasil tenham sido agredidos ou vaiados pelo simples fato de pedirem punição para os assassinos de Marielle ou liberdade para Lula[7].
Trata-se de elementos de um mesmo jogo de forças, no qual infelizmente quem defende inclusão social e convívio minimamente democrático está em flagrante desvantagem. O caso de Marielle, assassinada no dia 14/03/2018, é emblemático, mas nem de longe constitui uma exceção. No último dia 21/12/2018, o policial militar João Maria Figueiredo, do Rio Grande do Norte, também foi assassinado[8].
Foi eleito um projeto de governo que estimula a violência e a eliminação de pessoas e propõe destruição: a equipe de Jair Bolsonaro, antes mesmo de assumir o governo, já chegou a anunciar o fim o Ministério do Trabalho, a Reforma da Previdência, a exploração de terras indígenas[9], a defesa de projetos reacionários como “escola sem partido” e “carteira de trabalho verde e amarela”.
A recente declaração do presidente eleito, de que os trabalhadores devem escolher entre ter direitos ou ter emprego dá a medida do anacronismo do próximo governo[10]. Não há emprego sem direitos e essa é uma afirmação que sequer deveria precisar ser explicada. A própria noção histórica de emprego pressupõe uma organização social que reconhece a necessidade de direitos mínimos para quem trabalha. A função mediadora do Estado nunca foi rebelde ou revolucionária. Ao contrário, serve historicamente para manter a sociedade capitalista e, portanto, manter a economia funcionando sob as bases da lógica do capital.
No Brasil, os direitos dos trabalhadores são mínimos, quando não inexistentes na realidade das relações de trabalho.
Não reconhecemos até hoje o direito à motivação da despedida. Em nosso país, ainda reina a lógica de que é possível despedir sem dizer o porquê. Isso impede o exercício dos direitos trabalhistas durante a relação de trabalho, pois sempre pesa sobre os ombros do trabalhador a possibilidade concreta de perder o emprego, em uma realidade na qual, segundo dados oficiais, falta trabalho para 27,7 milhões de pessoas[11].
A que direitos se refere então o Sr. Jair Bolsonaro? Qual o sentido de uma carteira de trabalho, cuja função seja impedir a imperatividade dos direitos fundamentais trabalhistas?
O ano de 2018 se despede deixando esse amargo sabor de retrocesso social. Dói profundamente pensar no que ainda teremos que enfrentar até começar a reverter a lógica de destruição que, bem ou mal, com todos os pequenos golpes que a marcaram[12], foi eleita por milhões de brasileiras e brasileiros no último dia 28 de outubro. Se não há espaço para ingenuidade, também não há para disfarces. Todos sabiam muito bem do que se tratava quando depositaram seu voto na urna. Suas motivações são irrelevantes, mas a responsabilidade pelo que o futuro próximo nos reserva, não.
O importante, porém, é perceber que se trata de um caminho a ser ainda percorrido. Muitas escolhas precisarão ser feitas em 2019. A coragem deverá correr em nossas veias como o ar em nossos pulmões. O ataque aos direitos mais elementares, as ameaças, desafiam reação, com toda a força que as últimas três décadas de ordem constitucional nos legou. Temos um acúmulo de racionalidade solidária que se materializa em movimentos sociais de inclusão, muito bem organizados e ativos. É essa força coletiva que poderá fazer a diferença em 2019.
O que há de positivo em nosso horizonte é exatamente o vasto campo de disputa ideológica que se desvela, permitindo inclusive questionarmos nossa opção de viver em um país capitalista, no qual não há espaço para todos.
Reconstruir as bases do pacto que fizemos em 1988 é apenas um primeiro passo, e não será fácil. Devemos, porém, pensar para além dessa resistência imediata e ousar reexistir como país, tornando possível uma realidade menos segregária e desigual. Um desafio gigantesco, mas nada novo. Em um mundo capitalista, tornar direitos sociais uma realidade para a maioria das pessoas sempre foi um enorme desafio.
Então, que venha 2019. Seguiremos de mãos dadas, travando as batalhas necessárias. Somos muitas e muitos. Não seremos intimidados. A cada ação, haverá reação. Não será fácil, mas será necessário. As gerações futuras pagarão a conta por nossas omissões.
O desejo para o ano que se avizinha é, portanto, de que tenhamos coragem, força e empatia para assumir nossas responsabilidades e lutar contra o retrocesso.
Feliz Ano Novo!
Valdete Severo é Diretora e Professora da FEMARGS – Fundação Escola da Magistratura do Trabalho do RS; Membra da AJD – Associação Juízes para a Democracia; Doutora em Direito do Trabalho pela USP/SP, Juíza do Trabalho.
Foto: Pedro França/Agência Senado
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