Justiça

Concurso público sem previsão de cotas raciais é inconstitucional

Concurso para procurador na Paraíba, onde metade da população é negra, está sendo realizado à margem da Constituição e na lógica colonial

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Quase 200 anos após a independência e o Sistema de Justiça Brasileiro continua operando nos moldes colonialistas. A própria estruturação desse sistema está ligada ao fenômeno do bacharelismo liberal, que defendeu a necessidade de se construir faculdades de direito em solo brasileiro pós-independência, de forma a instrumentalizar a velha-nova elite nacional, preparando os bacharéis em Direito para o exercício da vida política e das práticas burocráticas e institucionais.

Na prática, após a independência, promoveu-se a divisão racial do trabalho jurídico, repartindo-se entre os homens brancos da elite brasileira esse grande latifúndio de Cargos Públicos. Na linguagem usada pelo Direito Administrativo brasileiro, essas pessoas tomam POSSE desses cargos e, seguindo a lógica patrimonialista, utilizam-se desses espaços de poder para preservar os seus privilégios (que eles conveniente chamaram/chamam de “mérito”).

Essa noção de meritocracia é tão verdadeira quanto o mito de que vivemos uma democracia racial, com igualdade de oportunidades, em um país que tem “pele alvo e pele alva”, como diz o poeta. “Que mérito é esse?”, pergunto a vocês. O que é mérito? A resposta é simples, aqui, o discurso da “meritez” tem como álibi simbólico desqualificar a população negra e povos indígenas.

Não se pode falar em mérito quando se parte de lógicas de privilégios, sejam estes diretos ou indiretos.

Uma branquitude, em sua maioria iletrada e copista, a qual sobrevive às custas das relações advindas da escravidão está longe de uma lógica meritória, em sua acepção inclusive liberal, fortemente permeada pela ética protestante de valorização do trabalho. O que houve por aqui foi uma exploração da mão de obra escravizada e apropriação, de forma sucessória e hereditária, dos benefícios dessa pilhagem.

Em 2021, porém, em se tratando de acesso a cargos públicos, a branquitude ainda se vale de argumentos de mérito e de legalidade estrita para negar os direitos às ações afirmativas para negros e indígenas. Em que pese a posição do Supremo Tribunal Federal, na ADP-186, em reconhecer a constitucionalidade das cotas raciais, independentemente da existência de prévia legislação, como ocorreu com as cotas da Universidade de Brasília – UnB, implementadas por ato administrativo, executivos estaduais, negam-se a instituir cotas, como aconteceu recentemente em seleção para o cargo de Procurador do Estado da Paraíba, cuja população negra gira em torno de 50%.

O argumento jurídico para se negar as cotas, em casos como esse, é inconstitucional. Após as reiteradas decisões do STF sobre o tema (ADPF 186, cotas na UnB, ADC 41, cotas no serviço público, ADPF 738, incentivos a candidaturas negras), até que sejam instituídas leis locais, deveriam as administrações estaduais e municipais estabelecer cotas mínimas de 20%, racialmente simétricas ao que faz a União.

A ausência de cotas no âmbito estadual, e municipal fere inclusive o pacto federativo (art. 1º, III, 3º, IV, c/c art. 60, §4º, I), pois se existe uma obrigação constitucional para a União efetivar direitos fundamentais, tal dever não pode ser objeto escusa por parte de Estados e Municípios. Ou somos um federalismo de cooperação apenas quando convém aos detentores de poder?

Além disso, não custa mencionar que instrumentos internacionais já estabelecem tal dever, a exemplo da Convenção sobre a Eliminação de todas as formas de Discriminação Racial da ONU, a Declaração de Durban, a Convenção nº 111 da OIT e Convenção Interamericana contra o Racismo, a Discriminação Racial e Formas Correlatas de Intolerância. Esta última inclusive determina que “Os Estados Partes comprometem-se a garantir que seus sistemas políticos e jurídicos reflitam adequadamente a diversidade de suas sociedades”.

A não implementação de cotas por parte dos executivos estaduais pode levar inclusive à responsabilização internacional do Brasil, diante dos compromissos antirracistas firmados. Portanto, é equivocada a invocação de argumentos de legalidade estrita para obstar direitos fundamentais com alcance constitucional.

Diante da realidade atual, as cotas não são uma opção, constituem dever constitucional para estadualidades e municipalidades.

O campo da legislação, nesse caso, tem como pressuposto apenas a liberdade em relação aos percentuais que cada ente federal poderá fixar, haja vista as variantes raciais em relação às populações de cada um.

Note-se que no julgamento da ADC 41, cotas no serviço público, o STF estendeu seu alcance ao MPU e Forças Armadas exatamente porque, sob o álibi de legalidade estrita, dizia-se que a lei era omissa em relação a eles. Não se desconhece que, nesse julgamento, STF deixou brechas para executivos estaduais e municipais. Porém, o cenário jurídico, atual, é outro, sendo necessária nova manifestação da Corte, talvez até em sede de reclamação, ante as políticas de silêncio racial praticadas por aqueles.

Nenhum ente da Federação está eximido dos deveres antirracistas aos quais a República Federativa do Brasil está obrigada a honrar. Concursos públicos que desrespeitam tal dever estão violando os instrumentos internacionais e a Constituição Federal, pois o Direito Constitucional brasileiro, de acordo com as diretrizes e posicionamentos externalizados pelo STF, pauta-se pela efetivação de uma democracia antirracista.

Nesse sentido, os argumentos que tentam criar escusas a tais deveres violam não apenas direitos fundamentais, mas a própria simetria federativa antirracista que deve pautar as ações do Estado brasileiro, o qual tem como obrigação se desvencilhar das correntes e do pelourinho burocrático mantidos pelo racismo estrutural.

Parecem tão óbvias essas conclusões, que temos vontade de perguntar: “O concurso para Procuradoria do Estado da Paraíba, publicado semana passada, não previu vagas para pessoas negras, pode isso Arnaldo? E Arnaldo, como bom homem branco, vai responder: “a regra é clara”!

Eis o problema, senhoras e senhores! Precisamos escurecer as regras urgentemente!

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