Justiça

Com apoio do governo de MT e da Funai, prefeitura desmata ilegalmente área indígena para plantio de grãos

Prefeitura de Campinápolis (MT) reconhece que desmatou, sem autorização do Ibama, área equivalente a 420 campos de futebol dentro de terra indígena para implementar lavoura mecanizada

A reportagem flagrou em julho abertura de novas estradas dentro da terra indígena, feitas também sem aval do Ibama (Foto: Bruna Obadowski)
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* Texto e fotos: Ahmad Jarrah e Bruna Obadowski, da Repórter Brasil

O governo de Mato Grosso cedeu máquinas e doou combustível para a prefeitura de Campinápolis desmatar, sem licença ambiental, 300 hectares da Terra Indígena (TI) Parabubure, a 610 km de Cuiabá, para cultivar grãos. A ação teve apoio do chefe da Coordenadoria Regional Xavante da Funai (Fundação Nacional do Índio), mas é questionada por servidores que apontam possível crime ambiental.

A derrubada da mata ocorreu em março e abril e foi identificada por agentes da Funai, segundo despacho do Segat (Serviço de Gestão Ambiental e Territorial) da regional Xavante, obtido pela Repórter Brasil. “Este Segat desconhece qualquer atividade autorizada de desmatamento na referida área”, diz o documento, que considera a situação “grave”. “Os tratores no local do desmatamento estão identificados com adesivos do governo do Estado de Mato Grosso”.

A prefeitura de Campinápolis reconhece que desmatou a área sem autorização do Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis), mas diz que a licença não seria necessária, pois a ação faz parte de uma política do governo Jair Bolsonaro (PL) de implementar lavouras mecanizadas em terras indígenas e teria apoio da Funai e das secretarias de meio ambiente e agricultura de Mato Grosso. O estado é governado por Mauro Mendes (União Brasil), um dos governadores mais próximos de Bolsonaro, ambos candidatos à reeleição em 2022 e entusiastas do plantio mecanizado em TIs.

“Só se eu estiver muito louco, mas pelo que eu apurei disso aí, não precisa de todo esse processo [de licenciamento junto ao Ibama]”, diz o secretário de Assuntos Indígenas de Campinápolis, Epaminondas Conceição da Silva. Ele admite a abertura de estradas na TI para acessar o local, feitas também sem aval do Ibama. “Vai dar uns 176 hectares [de lavoura] de cada lado da pista”, para plantios de milho, arroz e algodão, promete.

Desmatar áreas protegidas como terras indígenas é ilegal, a menos que haja autorização do Ibama, segundo a lei 140/2011. O órgão ambiental publicou em 2018 norma que lista uma série de atividades que dispensam o licenciamento em TIs, como construção de moradias e abertura de roça não mecanizada.

Na gestão Bolsonaro, porém, a Funai e o Ibama expediram nova instrução que abriu brecha para não indígenas explorarem essas áreas, mas apenas se eles fizerem parte de organizações mistas compostas majoritariamente por indígenas. O texto estabelece ainda que os indígenas sejam os empreendedores e beneficiários principais, e que as associações fiquem responsáveis por pedir autorização ao Ibama.

Porém, as exigências não foram respeitadas em Parabubure. A implantação da lavoura foi proposta pela prefeitura de Campinápolis, que decidiu também por conta própria retirar a mata sem o aval do Ibama, empregando servidores municipais.

Além disso, a associação indígena que daria ares de legalidade para a iniciativa sequer foi criada, e apenas não indígenas participaram da empreitada até agora. “Nessa primeira parte, a prefeitura entrou com a cara e a coragem. O que nos travou foi a criação da cooperativa”, conta o secretário. Ele diz que o projeto foi paralisado, mas a reportagem constatou em julho máquinas da prefeitura trabalhando na abertura de novas estradas.

Lideranças Xavante que apoiam a lavoura mecanizada confirmam que a proposta partiu da prefeitura e que o financiamento até o momento foi do governo estadual. “Não foi o índio que pediu [a lavoura]. O prefeito colocou o projeto na prefeitura e, quando ele explicou, eu aceitei. Mas não são todos que aceitam. A maioria dos indígenas é contra”, diz Amércio Owedeiwawé, cacique da aldeia São Paulo, a mais próxima da futura lavoura.

“O governo estadual já investiu 200 e poucos mil reais com máquinas e principalmente combustível”, revela Geninho Tseredzapriwe, da aldeia São Pedro, também próxima ao empreendimento. Vereador em Campinápolis pelo PSDB, ele diz que a Cooperativa dos Indígenas de Parabubure está em fase de criação.

Questionado sobre o desmatamento sem aval do Ibama, o governo de Mato Grosso informou que cedeu as máquinas a Campinápolis e que sua utilização é “inteira responsabilidade” da prefeitura.

O chefe da Coordenadoria Regional Xavante da Funai, Álvaro Peres, capitão aposentado do Exército, diz conhecer e apoiar o projeto em Parabubure, “mas apenas do ponto de vista administrativo”, o que inclui consultoria aos indígenas para formalizar a cooperativa. Ele não comentou sobre as suspeitas de violação ambiental. A sede da Funai em Brasília disse que a regional Xavante “acionou os órgãos competentes, entre eles o Ibama, para apuração dos indícios de desmatamento identificados pela fundação durante os meses de março e abril de 2022”. O órgão não comentou sobre o apoio do coordenador regional ao projeto.

Procurados para comentar as possíveis irregularidades, o Ibama e o Ministério Público Federal em MT não se manifestaram.

Alimentar gente ou gado?

Além da questão ambiental, o plantio de grãos em Parabubure não tem apoio da maioria dos indígenas. O cacique Amércio Owedeiwawé, um dos poucos a aceitar o projeto, reconhece que apenas 20 das 176 aldeias de Parabubure manifestaram interesse.

Ele conta que seu pai, o antigo cacique da aldeia São Paulo, era contra a lavoura mecanizada pois a terra foi conquistada após muita luta. Mas o atual líder mudou de ideia em razão da insegurança alimentar do povo, que se agravou com a pandemia de Covid. “A criança nasce e vai comer o quê?”

Embora o objetivo declarado da prefeitura seja plantar milho, arroz e algodão, os críticos do projeto temem que a área seja usada para soja com fins de exportação. “A ideia sempre foi plantar soja, e isso compromete nossa alimentação”, critica um cacique, que pediu para não ser identificado por temer represálias.

Ele é contra destinar a terra para a monocultura e defende a agricultura familiar com cultivos variados como resposta às necessidades dos Xavante, mas reclama da falta de apoio da prefeitura. “O secretário Epaminondas me prometeu um trator para plantar mandioca. Eu entreguei ofício, esperei e já passaram dois anos e ele nunca foi arar nossa roça”, desabafa, em entrevista concedida diante do secretário, que não rebateu a crítica.

“Este tipo de projeto reforça a divisão dos Xavante. Nenhum dinheiro vai pagar essa destruição, por isso somos contra”, diz Hiparidi Toptiro, liderança da Associação Xavante Warã.

Com apoio de políticos e empresários do agronegócio, as lavouras mecanizadas estão se espalhando pelas áreas Xavante em MT. Dos nove territórios onde vivem cerca de 20 mil indígenas, existem ao menos três projetos de monocultura.

O mais conhecido é o “Independência Indígena”, da cooperativa Cooigradesan, em parceria com produtores rurais, na Terra Indígena Sangradouro, em Poxoréu. O grupo já colheu a segunda safra de soja e arroz, mas há um impasse a respeito da partilha dos lucros, já que o acordo prevê 80% do rendimento com os fazendeiros e apenas 20% com os indígenas.

Essa divisão desproporcional e o estabelecimento de um valor fixo por hectare são indícios de arrendamento de TI, o que é ilegal, diz Fernando Vianna, presidente da INA (associação de servidores da Funai). “Projetos desse tipo encobrem a realidade de que os principais beneficiários não são os indígenas, e isso é proibido.”

Confira o texto na íntegra:

Com apoio do governo de MT e da Funai, prefeitura desmata ilegalmente área indígena para plantio de grãos

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