Justiça

Caso do juiz Siqueira retrata a ‘magistocracia’ e a ‘elite’ brasileira

Pego várias vezes sem máscara anti-covid, togado paulista deve ter dia 25 um primeiro julgamento no CNJ

O desembargador Eduardo Siqueira. Foto: Reprodução Foto: Reprodução
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O juiz Eduardo Siqueira, do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP), voltou a ser pego sem máscara anti-covid na orla da praia de Santos. Alvo de investigação preliminar da Corregedoria Nacional de Justiça, Siqueira deverá ser julgado pelo plenário do CNJ dia 25. É quando o fiscal da toga decidirá se leva adiante um processo contra o magistrado e afasta-o preventivamente da função.

Siqueira é um espécime da “magistocracia” descrita por um professor de Direito da USP, Conrado Hubner. E um retrato da dita “elite” brasileira.

Na tarde do sábado 18 de julho, foi avistado por um guarda municipal de Santos a caminha sem máscara, obrigatória na cidade por decreto da prefeitura. E desdenhou do aceno do policial Cícero Hilário Neto. Este falou com o colega Roberto Guilhermino, a dupla entrou na viatura e foi ao cidadão. Cidadão, não: desembargador.

Siqueira foi um dos 13 autuados por Neto e Guilhermino por falta de máscara naquele dia, mas o único a rasgar a multa de 100 reais e jogá-la no chão. Tinha dito a Neto que decreto não é lei e ligado para Sérgio Del Bel Jr., secretário de Segurança Pública de Santos: “Tô aqui com um analfabeto, um PM seu”. Guilhermino filmou. Farejara encrenca ao reconhecer Siqueira de um vídeo em que o juiz falava francês com outro fiscal de máscaras.

O juiz pediu desculpa aos dois policiais mas, como tomou processo na corregedoria do CNJ, agora alega ter sido vítima de “armação”. Mais: em 5 de agosto, voltou a ser flagrado sem máscara na mesma praia.

Humberto Martins corregedor do CNJ, vê indícios de que Siqueira violou a Lei Orgânica da Magistratura (juiz precisa “manter conduta irrepreensível na vida pública e particular”), usou a função para fugir da lei ou ter privilégio indevido (crime pela Lei de Abuso de Autoridade, de 6 a 24 meses de prisão) e desacatou autoridade (crime pelo Código Penal, de 6 a 24 meses).

O CNJ não tem histórico de rigor. E a punição máxima é aposentadoria compulsória: grana sem trabalho. O salário de Siqueira é de 35 mil, mas seu holerite médio em 2020 é de 56 mil, graças aos chamados penduricalhos. Ele é alvo ainda de inquérito no Ministério Público por improbidade (pena: perder o cargo).

Sua ficha tem 42 processos disciplinares no TJ paulista. Nunca deu em nada. Um dos casos nasceu da acusação de uma colega de corte, Maria Lúcia Pizzotti, que o define como “sujeito desprezível”. A juíza disse à Folha em 2019 que no Judiciário “as pessoas estão muito preocupadas consigo”, prevalece uma “visão egoísta”.

Em 29 de maio, um morador de Alphaville, condomínio de luxo na grande São Paulo, protagonizou cena a la Siqueira. Ivan Sortel, empresário de 49 anos, bebeu e brigou com a mulher. Sheila, de 46, chamou a polícia. O anfitrião recebeu os PMs Gesica Desanti e José Edson Ferreira assim: “Você é um bosta, é um merda de um PM que ganha mil reais por mês, eu ganho 300 mil”. Tudo filmado.

Sortel ligou para um secretário de Barueri, cidade vizinha, Marinho Trimboli Jr. “Você é secretário, vem para cá e me ajuda”. Mais: “Traz o Furlan”. O prefeito de Barueri é o tucano Rubens Furlan.

Gesica e Ferreira foram homenageados pelo governador João Dória Jr, do PSDB. Ela e o PM Daniel Nascimento, acionado para ajudar na ocorrência, cobram Sortel por dano moral (100 mil e 50 mil reais cada). O empresário foi acusado ainda pela Promotoria de desacato. Agora é réu ante o juiz Fabio Martins Marsiglio.

Magistrados como Siqueira são da casta de Sortel. A dita “elite”. Um perfil dos juízes traçado em 2018 pelo CNJ mostrou: 80% são brancos (55% da população é negra), 62% são homens (52% dos brasileiros são mulheres), metade é de São Paulo, Rio, Paraná e Rio Grande do Sul (estados com 40% dos habitantes), 51% têm pais diplomados e 42% das mães, idem, 80% são casados.

A propósito: um juiz auxiliar da Presidência do CNJ, Fernando Pessôa da Silveira Mello, da Justiça Militar, acaba de ser proibido pelo TJ do Distrito Federal de aproximar-se da ex-mulher, Ingrid, com base na Lei Maria da Penha.

E os contracheques? Os 18 mil juízes receberam, em média, 47 mil mensais em 2018, informa o anuário 2019 do CNJ. No Brasil, com 28 mil entra-se no 1% mais rico, diz o IBGE. A remuneração togada supera o permitido pela Constituição no setor público (39 mil).

Quem deveria zelar pela lei dá um jeito de driblá-la, com salário disfarçado de auxílios. O salário de Siqueira é de 35 mil, mas seu holerite médio em 2020 é de 56 mil. Corregedor Martins: 37 mil e 43 mil, respectivamente. Maria Lúcia Pizzotti: 35 mil e 45 mil. Marsiglio: 32 mil e 48 mil.

“Magistocratas vivem num mundo à parte”, escreveu Conrado Hubner em 2018, ao definir a casta. “Realizam-se no exercício de seus micropoderes privados, fora dos holofotes. Ali está sua concepção de vida boa.” Para ele, “poucos têm tamanho contato, desde o andar de cima, com as mazelas do andar de baixo”, mas os juízes parecem sofrer de “anestesia ética”.

Em 2011, João Carlos Souza Correa foi parado numa blitz da lei seca no Rio. Habilitação vencida, sem documento e placa do carro. Identificou-se como juiz. “Juiz, mas não Deus”, devolveu a agente de trânsito Luciana Tamburini. Ele deu-lhe voz de prisão, ela processou-o por dano moral e perdeu. Condenada (por um juiz) a pagar 5 mil de indenização.

Na época, Correa era da comarca de Búzios. Ao sair de lá, em 2012, teria levado uma estátua de cobre pertencente à comarca. O TJ do Rio acaba de abrir um processo disciplinar contra ele sobre a possível apropriação indébita.

O bem bom dos magistrados, simbolizado no holerite, faz do Judiciário brasileiro campeão de gastos, 1,4% do PIB ao ano. Uma descoberta de 2015 de Luciano da Ros, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, aprofundada em 2019 no artigo “Juízes eficientes, Judiciário ineficiente no Brasil pós-1988”, parceria com Matthew MacLeod Taylor, da American University. Atrás de nós, longe, a Argentina (1%).

As mordomias togadas aqui não têm paralelo, diz da Ros, para quem o Brasil criou Justiça boa para juiz e ruim para o povo. Uma das causas da ineficiência judicial, segundo ele, seria a independência excessiva dos juízes, que decidem da cabeça, de forma distinta em casos parecidos.

O presidente do Superior Tribunal de Justiça (STJ), João Otávio Noronha, deu em julho prisão domiciliar, por risco de covid, ao ex-PM Fabricio Queiroz, o das “rachadinhas” de Flávio Bolsonaro. E negou tal benefício a 700 presos. Em discurso em abril, Jair Bolsonaro disse a Noronha (salário de 37 mil, holerite médio de 49 mil em 2020) “que a primeira vez que o vi foi um amor à primeira vista”.

O caso Flavio-Queiroz saiu em junho de um juiz de primeira instância e foi ao TJ do Rio. O senador ganhou foro privilegiado no tribunal por 2 a 1. Um dos votos favoráveis foi de Paulo Rangel. No livro “Direito Processual Penal”, o desembargador diz: “Se o agente não mais ocupa o cargo para o qual foi estabelecida a competência por prerrogativa de função, não faz sentido que permaneça com o foro privilegiado”.

Rangel (salário de 37 mil, holerite médio de 56 mil em 2019) tem proximidade com uma advogada de Flavio, Luciana Pires. Logo será julgado no CNJ: a Corregedoria investiga por que entrou de sócio na LPS Corretora de Seguros, de um empresário preso em maio por fraudes na área da saúde no Rio, Leandro Braga Souza. Rangel diz que Souza não é da LPS desde janeiro.

Colega de Rangel no TJ, Marília de Castro Neves é ré no STJ por calúnia (pena: de 6 meses a 2 anos). Após o assassinato de Marielle Franco, em 2018, disse em uma rede social que a vereadora tinha sido “eleita pelo Comando Vermelho e descumpriu ‘compromissos’ assumidos com seus apoiadores” e era um “cadáver tão comum quanto qualquer outro”. A família de Marielle processou a desembargadora.

Pelo Código Penal, morto também sofre calúnia (imputar falsamente a alguém fato criminoso). A defesa da juíza (salário de 35 mil, holerite médio de 59 mil em 2019) aponta no máximo difamação (imputar fato ofensivo à reputação), inexistente contra finados.

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