Justiça

A prorrogação das cotas e o eterno enredo em torno do 13 de maio

Política pública precisa de avaliação dos seus impactos pelo Estado para que seja monitorada e ampliada

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Os registros históricos mais fidedignos são pródigos em demonstrar que a abolição formal da escravidão resultou de intenso movimento social e político. Antes disso o Brasil beirava uma guerra civil, em que revoltas, fugas e lutas sociais da população negra com apoio de ativistas engajados deram tom de ultimato na coroa imperial e nas forças políticas escravocratas, que há décadas resistiam em idas e vindas de micro reformas convertidas em vãs promessas de extinção do modelo cruel de exploração servil de pessoas negras, como a lei do ventre livre e da liberdade aos sexagenários.

Ainda assim, diante do irresistível movimento, os escravocratas se articularam para perder alguns anéis, mas não todos. Tão logo passados os festivos do 13 de maio, empreenderam ofensiva contra qualquer pretensão próxima à inclusão da população negra liberta na ordem social. Projetos de democratização rural e educação para os libertos passaram logo a ser o temor da ordem escravocrata, porquanto sabiam que essa era a luta completa da abolição.

O lacônico projeto de abolição de apenas dois artigos foi sapo que engoliram os abolicionistas que pregavam reformas estruturais sob a urgência de pôr fim formal ao regime e sem discutir a indenização aos proprietários, conforme projeto até então defendido pela chefia de governo. Por outro lado, proprietários engoliram a lei seca sem previsão de indenização diante do temor da guerra civil iminente e de um império falido militar e financeiramente para sustentar as forças conservadoras do regime.

No ano do bicentenário da independência, cientes que a abolição da escravidão chegou a ser considerada uma segunda independência nacional na esperança de que uma nova pátria renascesse, não surpreende que a lei 12.711/2012, que instituiu o sistema de reservas de vagas no ensino público superior para estudantes de escola pública e baixa renda, com sub reserva a estudantes negros (pretos e pardos), indígenas e com deficiência, volte a causar controvérsia no debate público.

Nunca é demais lembrar que a emancipação política da nação brasileira se fez com a manutenção do sistema escravista, preservando o critério racial como fator determinante da divisão social do trabalho e de todas as hierarquias sociais.

Negros e negras escravizadas permaneceram oficialmente impedidos de frequentar escolas e as poucas instituições de ensino superior criadas desde então. Este processo ainda perdura na forma de barreiras raciais que excluem a população negra. A lei 12.711/2012, resultado de históricas lutas do movimento negro, constitui um dos mais relevantes instrumentos para romper essas barreiras e, desse modo, assegurar plena democratização da educação e da produção científica no Brasil.

A polêmica atual em torno da Lei de Cotas decorre do artigo 7º que estabeleceu que “no prazo de dez anos a contar da data de publicação desta Lei, será promovida a revisão do programa especial para o acesso às instituições de educação superior de estudantes pretos, pardos e indígenas e de pessoas com deficiência, bem como daqueles que tenham cursado integralmente o ensino médio em escolas públicas.”

Pessoas que sempre foram contrárias à política de cotas raciais (e tão somente essas) tem se ancorado nessa previsão para dizer que é chegada a hora de extinguir a política amaldiçoada por muitos que viam nela a divisão racial do país ou uma afronta à tradicional meritocracia de elite. Não convém nos dedicar a essa crítica que, de tão desgastada, suscita preguiça intelectual profunda.

O que tem nos preocupado é a armadilha dessa retórica e suas cortinas de fumaça para colocar de prontidão a defesa existencial de uma política que já demonstrou sua importância, efetividade e necessidade em um país marcado ainda tão estruturalmente pelo racismo.

Nessa teia ardilosa, vê-se com certa angústia o apoio social a simbólicas posturas legislativas em defesa da mera prorrogação de vigência da lei de cotas, quando já não deveria ser esta a preocupação de ordem. Em primeiro lugar, porque a lei 12.711/2012 não traz uma previsão de encerramento de vigência, o mencionado artigo 7º decorre logicamente do artigo 6º que previu a responsabilidade do Ministério da Educação e a Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial, da Presidência da República (SNPIR), pelo acompanhamento e avaliação do programa de que trata a Lei, ouvida a Fundação Nacional do Índio (Funai).

Diverso é o disposto na Lei 12.990/2014, que instituiu as cotas raciais no serviço público federal, cujo artigo 6º, ao enunciar expressamente que a lei terá vigência de dez anos, exige nova legislação que a prorrogue.

A mens legis (espírito da lei) da 12.711/2012, dentro de uma técnica indene de dúvidas, não quis encerrar a vigência em dez anos, mas que a lei fosse avaliada e monitorada nesses primeiros dez anos de modo a permitir a análise dos seus resultados enquanto política pública. Inclusive, é da essência de toda e qualquer política pública, especialmente de ações afirmativas, que seja objeto de monitoramento contínuo e avaliação periódica.

Dessa forma, nos parece estéril a discussão sobre a prorrogação da lei em si mesma e que preocupantemente tem retirado energia das discussões que deveriam importar. A primeira delas, reconhecida pelo próprio governo através de documentos oficiais produzidos pela SNPIR e pelo próprio Ministério da Educação, é que o artigo 6º, no que concerne à responsabilidade pela avaliação e monitoramento, não foi cumprido.

As iniciativas governamentais nesse sentido foram iniciadas nos primeiros anos de vigência da lei, ainda no governo da ex-presidenta Dilma Rousseff, mas não tiveram seguimento e aprimoramentos nos governos seguintes. Investimentos em mecanismos de monitoramento e avaliação revelaram-se inexistentes, quadro agravado pelo esvaziamento de condicionantes de sucesso da política, como o sucateamento orçamentário das universidades públicas e das políticas de permanência.

Tais informações são extraídas da “Pesquisa de avaliação da política de cotas no serviço público e elaboração de metodologia para avaliação da lei de cotas raciais e sociais nas Universidades e Institutos Federais”, elaborada pela Escola Nacional de Administração Pública (ENAP), decorrente do Termo de Execução Descentralizada Nº 2/2019 firmado com a Secretária Nacional de Políticas de Promoção da Igualdade Racial do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (SNPIR/MMFDH). O relatório final considerado um levantamento inicial tece uma série de recomendações para (somente agora) a criação de efetivos mecanismos de acompanhamento da política.

Sobre esse mesmo assunto, a Defensoria Pública da União se pronunciou através da Nota Técnica nº 08/2021 em que afirma serem insuficientes para fins de avaliação da política de cotas os dados até aqui apresentados pelos órgãos oficiais. Diz a nota “(…) não existem hoje mecanismos suficientemente capazes de contemplar de maneira efetiva a proposta de monitoramento e avaliação das políticas de reserva de vagas no ensino superior (…)”

Sem monitoramento e acompanhamento oficial é impossível avaliar quaisquer políticas públicas. Donde concluir que, sem avaliação da 12.7111/2012, não há condições de revisá-la.

Jovem com cartaz pedindo cotas na Universidade de São Paulo.

Luta pela permanência na universidade

Por sua vez, se há indicativos de que a política promoveu expressivo aumento do ingresso de estudantes de escolas públicas, negros, indígenas e com deficiência no ensino superior, os dados iniciais sobre permanência e conclusão de curso, especialmente nos últimos 5 anos pré-pandemia, não parecem ser tão animadores, conforme diversas pesquisas acadêmicas e monitoramento realizado pela Associação Brasileira de Pesquisadores Negras e Negras em conjunto com a Defensoria Pública da União.

Há ainda discrepâncias numéricas importantes entre os cursos de graduação, com tendência de menor ingresso e permanência em cursos elitizados ou de maior custo de permanência.

Falhas nos sistemas de consultas e levantamento de dados também foram observadas no sentido de não assegurar o êxito suficiente da política nesses exíguos dez anos de vigência, consistentes em apenas dois ciclos completos de formação na graduação, considerando uma média de 5 anos para a maior parte dos cursos. O Censo da Educação Superior ostenta inconsistências no tempo quanto às informações necessárias à avaliação, bem como a alimentação de sua base de dados de maneira não uniforme pelas instituições de ensino superior demonstra que os órgãos responsáveis não cumpriram bem o papel de orientar e monitorar a política a contento de tornar possível uma avaliação segura.

Também é próprio da política de ações afirmativas o estabelecimento de metas de atingimento. Nesse ponto, a lei 12.711/2012 faltou com disposições que permitissem uma avaliação mais criteriosa. Compreensível dado o grande ataque que a iniciativa sofreu durante o processo legislativo. Entretanto, o estabelecimento de metas, além de essencial, não é propriamente uma novidade, já estava no projeto pioneiro do parlamentar e intelectual Abdias do Nascimento nos idos de 1983 (PL 1332/1983).

São as metas de atingimento que devem nortear o tempo de vigência da política pública de ações afirmativas e tais metas devem guardar relação com o objetivo perene de reduzir e/ou erradicar as desigualdades raciais nas diversas estruturas institucionais que se relacionam com a política educacional. E, por óbvio, as metas devem ser observadas no ingresso, na permanência e no sucesso (conclusão) do processo educacional superior, com capacidade de ampliar os horizontes dos beneficiários na pós-graduação, no acesso à docência superior, nos cargos públicos, empregos e postos de trabalho privados reservados aos que detém curso superior. Essa foi a recomendação da Comissão de Juristas para o enfrentamento ao racismo da Câmara dos Deputados contida em Relatório entregue à presidência da casa em novembro de 2021.

No atual contexto político, em que forçoso reconhecer que as etapas de monitoramento e avaliação da política não foram cumpridas após esses primeiros dez anos de vigência, a discussão no debate público e, sobretudo parlamentar, não deveria estar centrada na prorrogação das cotas, que decorre da obviedade do dispositivo legal que não lhe encerra o vigor pela mera decorrência do tempo, mas dedicar-se ao aperfeiçoamento e/ou inclusão de mecanismos legais necessários ao monitoramento e avaliação de sorte a permitir que a duração da política se vincule ao atingimento dos seus objetivos democráticos de superar as desigualdades sociais e raciais.

Espera-se que as forças políticas comprometidas com o enfrentamento ao racismo, nesse ano tão emblemático para recomposição democrática, possam ultrapassar as cortinas de fumaças lançadas pela velha política dos anéis, que da lei do ventre livre de 1871 às leis de cotas raciais pós constituição de 1988, vem enredando as mesmas estratégias em face das lutas emancipatórias da população negra nessa pátria desalmada de sua mãe África.

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