Cultura
Arquitetura fetichista
Os estádios construídos para a Copa, apelidados com metáforas esdrúxulas, dizem muito sobre a lógica “icônica” dos grandes projetos internacionais do último quarto de século
A Copa do Mundo do Catar, iniciada no domingo 20, não exigiu somente a criação de imensas infraestruturas desportivas quase a partir do zero. O evento mobilizou também muito fetiche. Seis dos oito estádios nos quais acontecem os jogos parecem coisas que não são: um “diamante no deserto”; um boné tradicional de tecido; as velas (ou os cascos) de um barco dhow, usado na pesca de pérolas; uma tenda nômade; uma antiga tigela de cerâmica que também é uma lanterna com velas; e uma duna de areia que também é um escudo.
Há algo de loja de presentes, e um pouco de bobagens para turistas, nessa mudança de formas e escalas. Mas, além disso, os projetistas e magos do marketing por trás dessas obras grandiosas estimadas na ampla faixa de 36 bilhões a 56 bilhões de reais, parecem pensar que apelidos metafóricos desempenham um papel essencial.
Os projetos dos estádios servem, ao menos, para nos levar a algum tipo de conclusão paródica sobre a lógica da arquitetura “icônica” do último quarto de século. Esse modelo parece acreditar que grandes nomes projetam algo impressionante, comercializável e, agora, também “instagramável”. O estádio “Ninho de Pássaro”, das Olimpíadas de Pequim, em 2008, tinha todos esses ingredientes. A nomeação de arranha-céus de Londres inspirada em produtos comestíveis e objetos domésticos é outro precedente.
A capacidade combinada de 380 mil pessoas nos oito estádios equivale, aproximadamente, ao número total de cidadãos do Catar
Escritórios internacionalmente célebres estão envolvidos no Catar. O Zaha Hadid Architects projetou o Al Janoub, parecido com um barco dhow. O Foster and Partners, a tigela/lanterna do Lusail, além de outros menos marcantes. Os projetos incluem redemoinhos e desenhos, mudança de cores e recursos que brilham no escuro. Eles têm essas metáforas.
Dos dois que não têm, um leva o nome ousado de 974 – como um clube do bairro londrino de Shoreditch, talvez –, que se refere tanto ao número de contêineres dos quais é parcialmente feito quanto ao código de discagem internacional do Catar. O outro, o Estádio Khalifa International, é a transformação de uma obra realizada pela primeira vez em 1976.
Esses edifícios têm suas funções, é claro – em particular, a de sediar partidas de futebol da Copa do Mundo. Quanto a isso, é prematuro julgá-los até que tenham sido testados – dado que há uma considerável experiência global acumulada em questões como linhas de visão, acústica e gestão de multidões – e pode-se esperar que sejam razoáveis. Por outro lado, é difícil imaginar que algum clima seja evocado pelas novas construções, que se erguem de estacionamentos e praças e (em um caso) à beira de um campo de golfe.
Elas também precisam superar paradoxos inerentes à própria existência. O problema do legado que aflige as Olimpíadas e outras extravagâncias esportivas temporárias – o que fazer com as vastas instalações depois que as multidões vão embora? – é aqui mais extremo que nunca. A capacidade combinada de 380 mil pessoas nos oito estádios equivale, aproximadamente, ao número total de cidadãos do Catar e é uma grande proporção da população total do país – incluindo migrantes e outros expatriados –, de cerca de 3 milhões.
Retórica. As plantas do Lusail são regadas com água reciclada. O estádio 974, feito com contêineres empilhados, pode ser totalmente desmontado e reerguido após o fim da Copa – Imagem: Road To Qatar/FIFA
Claramente, não há números para sustentar uma cultura futebolística que encheria os estádios com gente que sai para suas peladas e partidas todo fim de semana. Os estádios foram, portanto, projetados para encolher após seu breve uso.
Vários terão a capacidade reduzida pela metade com a remoção de seu nível superior, com hotéis prometidos para o estádio Al Thumama (o que parece um boné gahfiya) e o Al Bayt (a tenda gigante). O estádio 974 pode ser totalmente desmontado e reerguido, no todo ou em partes, em outro lugar. Todos têm capacidade para 40 mil lugares para a Copa do Mundo, exceto o Al Bayt, de 60 mil lugares, e o Lusail, de 80 mil, onde será disputada a final no dia 18 de dezembro.
Este poderia ser transformado para, segundo a explicação oficial, abrigar “moradias populares, lojas, pontos de venda de comida, postos de saúde e até uma escola”. Seria uma conquista notável transformar um estádio de maneira tão radical, mas esses planos vagos, dez anos depois que o Catar venceu a licitação, geram ceticismo. Deve haver alguma dúvida sobre a possibilidade de os estádios restantes, mesmo com tamanhos reduzidos, serem facilmente preenchidos,
Esses edifícios, além de tudo, devem ter a aparência de que tentam ser sustentáveis, uma vez que a retórica ambiental está incorporada nos grandes empreendimentos internacionais. Realmente sustentável teria sido realizar a Copa em algum lugar onde incontáveis toneladas de concreto e aço não fossem necessárias para construir estádios efêmeros; também onde temperaturas regulares de 40°C não precisassem de ar condicionado extensivo. Mas a Fifa de Sepp Blatter, quando concedeu a competição ao Catar, inexplicavelmente ignorou essas considerações.
O Catar pode, entretanto, gabar-se de que a água é reciclada para irrigar as plantas do Estádio Lusail, enquanto o Al Thumama afirma ter ar condicionado “eficiente”; 90% dos materiais de construção do Estádio Ahmad Bin Ali – o da duna – são reciclados, e as árvores já existentes no local foram poupadas do machado.
Esses edifícios devem parecer sustentáveis, uma vez que a retórica ambiental está incorporada aos grandes projetos
A maior parte disso soa como uma resposta frágil à emergência climática. Mas, então, o maior trabalho que esses estádios têm de realizar é propaganda – eles devem apresentar a Copa do Mundo de 2022 como algo diferente do simples triunfo da riqueza – o que é – e devem evitar uma enxurrada de alegações sobre questões tão embaraçosas quanto direitos humanos e os maus-tratos e mortes de trabalhadores migrantes envolvidos nas construções. Eles devem esconder tanto o profundo absurdo da operação quanto o quase nada que há por trás dela.
É aqui que entram as tigelas, as tendas e as dunas, com suas alusões à natureza e à cultura. Elas vêm com algumas frases virtuosas de publicidade – “vivendo a herança, um ícone para o futuro”, “onde as histórias do deserto se desenrolam”, “uma joia brilhante de inspiração”. Os padrões da fachada do Estádio Ahmad Bin Ali, da firma britânica BDP Pattern, “caracterizam diferentes aspectos do país: a importância da família, a beleza do deserto, a flora e a fauna nativas e o comércio local e internacional”. Com essas palavras e imagens, eles tentam criar uma ilusão de cultura local que é muito tênue.
Alguns projetos exibem habilidade arquitetônica. Lusail tem graça e o Al Janoub, um certo dinamismo equilibrado. Se o Estádio 974, do escritório espanhol Fenwick Iribarren, se desmontar com sucesso, conforme anunciado, pode ser um protótipo útil para o futuro. Mas, no fim das contas, a farsa do Catar 2022 resume-se na semelhança do Estádio Al Janoub com uma vulva, amplamente notada quando os projetos foram revelados em 2013. O posterior enquadramento da abertura em seu teto reduziu, mas não eliminou a semelhança. Se os organizadores deste evento vanglorioso queriam fazer brincadeiras bobas com imagens, o carma os levou a conseguir uma que não queriam. •
Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves.
PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1236 DE CARTACAPITAL, EM 30 DE NOVEMBRO DE 2022.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Arquitetura fetichista “
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