Entrevistas

‘Todo erro do bolsonarismo também será um erro da igreja. Esse é o risco’, diz teólogo evangélico

Em meio à uma calorosa discussão sobre o papel dos evangélicos na política, Gutierres Fernandes Siqueira propõe uma contestação

Presidente da República, Jair Bolsonaro, durante reunião com Pastor Gilmar Santos, Presidente da Convenção Nacional de Igrejas e Ministros das Assembleias de Deus no Brasil Cristo Para Todos (CONIMADB) - Foto: Carolina Antunes/PR
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Em meio à uma calorosa discussão sobre o papel dos evangélicos na política, o teólogo e jornalista Gutierres Fernandes Siqueira propõe uma contestação.

Seu mais novo livro Quem tem medo dos evangélicos? (Mundo Cristão), defende que os evangélicos não são os responsáveis diretos pela escalada do autoritarismo no Brasil e propõe uma nova maneira de se fazer política sendo membro da Igreja.

“Os evangélicos não estão introduzindo uma ideia externa de autoridade ou autoritarismo. Ela sempre esteve ali”, argumenta ele, fiel da Assembleia de Deus (Ministério do Belém) em São Paulo. “Parte dos evangélicos são autoritários apenas por ser espelho dessa face nacional, e não por sua religião.”

A gente vai ter uma igreja com poder estatal, porém sem pessoas interessadas por ela. E isso é uma tragédia para a fé

O pesquisador também rejeita a tese de que os evangélicos – e, consequentemente, seus votos – tenham um perfil único, e rechaça a expressão ‘voto evangélico’. Não nega, porém, que Jair Bolsonaro (PL) tem conseguido capturar a simpatia da maior parte destes eleitores.

“Os evangélicos se comportam como todo eleitor. Se o evangélico tem uma percepção subjetiva de melhora de situação econômica, ele tende a valorizar mais essas suas pautas morais.”

O ex-capitão, afirma, se aproveitou há algum tempo destas ‘pautas abstratas’, morais, o que contribui para sua vantagem eleitoral atual nessa faixa. Aos colegas de religião, no entanto, alerta: a aliança com o bolsonarismo tende a render mais prejuízos do que vantagens. “Todo erro do bolsonarismo também será um erro da igreja. Esse é o risco.”

Confira a seguir.

CartaCapital: Você busca desmistificar percepções equivocadas sobre a comunidade evangélica. Quais seriam elas?

Gutierres Siqueira: Não existe nenhuma perseguição religiosa aos evangélicos. Mas há um preconceito contra os evangélicos. Esse preconceito, sempre digo, é um misto com preconceito de classe, que a gente já tem historicamente no Brasil. Isso porque, a maioria dos evangélicos são pobres e moradores de periferias e, o mais importante, totalmente desconectados tanto de uma elite econômica, quanto de uma elite cultural.

Essa elite não entende os evangélicos porque, de maneira geral, ela não faz parte e não conhece quem integra esse mundo. Ela até pode conhecer o porteiro do prédio, a faxineira, a atendente da lanchonete, mas não são pessoas do seu mundo, diretamente falando, não tem amizades com essas pessoas.

Deste preconceito, vem a ideia de que o evangélico é um coitadinho manipulado. É aquela ideia de que tudo que os pastores falam, em especial essas lideranças midiáticas, os evangélicos engolem com muita facilidade, sem nenhuma resistência, tudo porque são um bando de manipulados. É a visão de que aquele grupo social não tem nenhum tipo de discernimento, não tem nenhum tipo de autocrítica.

CC: Seu livro também rejeita a ideia de que os evangélicos seriam responsáveis pela atual crise democrática no Brasil.

GS: O que eu mostro no livro é que, na verdade, a democracia do Brasil sempre convivei com um risco, e isso não vem necessariamente dos evangélicos. Nós temos uma história no Brasil de autoritarismo e isso acaba por vezes refletindo no evangélico – que, muitas vezes, é autoritário por ser apenas espelho dessa face nacional e não pela sua religião. O que quero dizer é que não são os evangélicos que estão introduzindo uma ideia externa de autoridade ou autoritarismo que não havia no Brasil. Ela sempre esteve ali.

CC: E a pergunta que dá título ao seu livro: quem tem medo dos evangélicos?

GS: Quem normalmente tem medo dos evangélicos é o que eu chamo no livro de elite cultural brasileira. Aqui eu incluo jornalistas, acadêmicos, artistas e pessoas que têm alguma influência de fato na voz da opinião pública, que exercem algum tipo de força na expressão.

O evangélico brasileiro, mesmo sob essa influência, não vai se transformar no evangélico puritano norte-americano

CC: Você diz em várias ocasiões que o retrato feito por essa elite cultural sobre os evangélicos não reflete a realidade. Quem então seriam os evangélicos brasileiros? 

GS: Olha, os evangélicos são plurais, mas, de fato, há um evangélico médio. O evangélico hoje é uma mulher, parda ou negra, moradora da periferia e na faixa acima dos 30 anos. Essa seria a imagem de um evangélico médio hoje se precisássemos definir uma.

Só que, à medida que os evangélicos crescem, é evidente que a gente tem um grupo cada vez mais plural. Não há como olhar o evangélico hoje e pensar numa única forma de pensar e num único jeito de agir, em especial porque parte dos evangélicos já estão chegando na classe média ou classe média alta.

Há ainda entre evangélicos muitos progressistas, ideologicamente falando. Cito, por exemplo, os evangélicos ligados ao mundo da arte, da música, que estão mais distantes de pautas mais estridentes e ideológicas da direita. Isso resume que há um pouco de tudo entre os evangélicos.

Se o evangélico está numa situação econômica em que ele tem uma percepção subjetiva de melhora, ele tende a valorizar mais essas suas pautas morais

CC: Mas os conservadores ainda são maioria, não?

GS: Claro, a gente não pode desprezar que existe um evangelicalismo conservador e que eles são maioria. Isso é um ponto muito curioso, porque, nesse sentido, o movimento evangélico brasileiro é muito parecido com o movimento evangélico norte-americano, inclusive nas mesmas preocupações e nas mesmas pautas.

Nós sofremos uma influência da igreja americana muito forte, seja por meio de livros ou por meio de pregadores. Até mesmo a mídia evangélica americana é a que vem com mais força ao Brasil. Então nesse sentido é interessante observar que o movimento evangélico brasileiro acaba sendo uma cópia, adaptada a nossa cultura, claro, desse movimento evangélico norte-americano. E por isso acaba por ser mais conservador.

CC: Na próxima década, é possível que a maioria dos brasileiros se identifiquem como evangélicos e não mais como católicos. O que teria motivado essa transição religiosa tão rápida?

GS: Primeiro, há um processo de urbanização também muito acelerado durante o século XX que os evangélicos souberam aproveitar. Em massa, eles começaram a trabalhar para angariar novos fiéis a partir da periferia. Quando uma pessoa sai de Minas Gerais para São Paulo ou do Nordeste para São Paulo, essa migração interna é uma quebra de vínculo, especialmente do vínculo familiar, e ele passa a achar uma nova família na igreja evangélica.

A igreja evangélica fez um papel de inserção do povo rural na sociedade urbana e por isso é muito comum que as pessoas, especialmente as mais velhas, das igrejas da periferia no Rio ou em São Paulo não sejam pessoas que nasceram naquela cidade. São via de regra migrantes que conseguiram achar uma nova comunidade na igreja.

Houve também uma explosão no número de igrejas evangélicas. É próprio da natureza da igreja evangélica se dividir, isso já vem desde a época da reforma. Mas essa divisão, por incrível que pareça, ajuda os evangélicos. À medida que uma nova igreja abre, ela vai trabalhar ativamente para ganhar novas pessoas daquela comunidade, para ganhar novos membros. Essa competição entre igrejas acaba beneficiando o movimento como um todo.

Outro fator muito importante que foi uma falha da igreja católica como igreja majoritária, do ponto de vista de crescimento. Especialmente na década de 80, ela passou a abraçar fortemente a teologia da libertação, que é uma teologia extremamente politizada – e tem as suas razões para isso. Só que o homem comum e a mulher comum, quando vão à igreja, estão em busca de uma palavra de conforto espiritual.

Essa pessoa comum quando ia à igreja ouvia o padre falando de reforma agrária… Por mais importante que o tema seja, isso distancia uma parcela dessas pessoas. Esse é o tema que ela espera ouvir no sindicato ou em um debate político, mas não é algo que ela busca no seio da igreja. Isso foi uma brecha muito usada por pastores.

CC: Como essa transição religiosa impacta a democracia e no debate eleitoral?

GS: Embora a pregação evangélica ela não seja de conteúdo político, há sim uma orientação política nos cultos. Mas, diferentemente da teologia da libertação, ela não ocorre como o tema central da pregação… É aquela palavra de dois ou três minutos no final do culto, quando o pastor dá uma opinião política. Isso acontece e, claro, tem influência no voto.

À medida que o crescimento evangélico conservador vem se apresentando no Brasil, é natural que a gente passe a ter pautas que a gente não tinha antes, que são pautas do conservadorismo norte-americano. A militância a favor das armas, por exemplo…

Não dá para imaginar esses pastores como o Malafaia, voltem atrás. Mesmo com a volta do Lula, eles vão continuar na oposição

Por outro lado, o evangélico brasileiro não deixa de ser brasileiro. Ou seja, mesmo sob essa influência, ele não vai se transformar no evangélico puritano norte-americano.

Na Assembleia de Deus, que é a principal evangelista no Brasil, há uma figura muito importante na igreja que é a líder do círculo de oração. Uma mulher que lidera um grupo de senhoras que oram em um dia da semana. Essa líder do círculo de oração nada mais é do que uma versão evangélica da beata católica.

Tem muito dessa roupagem evangélica de resistência a algumas ideias brasileiras ou algumas questões culturais dos brasileiros. Mas, no fundo, essas igrejas reproduzem a mesma cultura. Por isso o evangélico brasileiro não vai deixar de lado sua brasilidade.

Resumindo, é uma transição acelerada, mas essas raízes ficam.

CC: Hoje tem se usado muito a expressão ‘voto evangélico’. Como você vê a questão eleitoral entre os evangélicos no Brasil?

GS: Eu creio que essa é uma das expressões mais equivocadas que a gente pode trabalhar. Há tendências, mas não é só para o evangélico, para todo mundo.

Se você tem uma sensação de bem-estar econômico, as pautas eleitorais passam a ser questões abstratas. A educação é um exemplo de uma pauta abstrata. Na prática você não vê o resultado imediato, diferente da pauta econômica, em que o resultado imediato pode ser visto no desemprego e na inflação, enquanto a pauta educacional é de longo prazo.

Então, o evangélico também tem a sua pauta abstrata, que é a chamada pauta dos valores – normalmente valores relacionados à sexualidade. O que eu percebo é que, se o evangélico tem uma percepção subjetiva de melhora de situação econômica, ele tende a valorizar mais essas suas pautas morais. Mas. se ele está desempregado e a inflação está piorando no seu bolso, a pauta econômica vai falar mais alto do que a pauta moral.

O que quero dizer é: os evangélicos se comportam como todo eleitor. Inclusive isso vem sendo mostrado nas pesquisas. Nos últimos meses o Bolsonaro cresceu entre os evangélicos, mas eu vejo já uma pálpebra econômica, porque houve uma melhora na inflação e houve também a criação do Auxílio Brasil ampliado. Então, nesse sentido, há uma pequena reversão do mal estar econômico.

CC: Por que Bolsonaro faz tanto sucesso entre os evangélicos? 

GS: É inegável que o bolsonarismo ele vem fazendo bastante sucesso entre os evangélicos. E aí é um trunfo do Bolsonaro, porque ele de alguma forma soube aproveitar a preocupação dos evangélicos com as pautas morais – e abraçou essas pautas há bastante tempo.

O evangélico, de maneira geral, tanto aqui, como no exterior, valoriza pessoas que de alguma forma ‘ajudam o movimento’. É algo muito próprio da cultura evangélica, essa certa gratidão por pessoas que ‘ajudam’. Isso eu vejo, inclusive, entre os acadêmicos que estudam os evangélicos e alguns políticos com pouca expressão, são tratados como amigos por simplesmente acompanharem os evangélicos.

CC: Mas todos os candidatos têm feito acenos importantes aos evangélicos. Como você tem visto estes acenos?

GS: Eu vejo algumas pessoas influenciadas pelo conceito de estado laico do iluminismo francês que condenam qualquer tipo de aproximação dos políticos com os evangélicos, com a igreja ou com a religião. Mas essa é uma visão de pessoas que parecem não conhecer o País que moram. A religião no Brasil tem um peso, sempre teve, sobre os valores da sociedade. Antes era o catolicismo, agora é o evangelicalismo.

Getúlio Vargas tinha uma aversão ao cristianismo. Uma postura ateísta, inclusive. Mas teve boa relação com a Igreja. Em certo momento, perguntaram para ele se ele acreditava em Deus e ele responde: ‘em Deus eu não acredito, mas nos bispos, sim’. Isso é muito simbólico no Brasil da relação do estado com a religião.

Então, eu vejo essa busca por evangélicos e religiosos como algo bastante natural.

O presidente Jair Bolsonaro (PL) junto à esposa Michelle e o pastor Silas Malafaia, no Reino Unido. Foto: Chip Somodevilla/POOL/AFP

CC: Quais os riscos de uma aproximação tão intensa entre igreja e Estado?

GS: Uma das pautas históricas do protestantismo é a separação de Igreja e Estado. E algo que eu ponho no livro e é um fato é que, à medida que a Igreja ganha apoio estatal, ela ganha relevância social, mas perde membros e perde o interesse das pessoas.

Veja, é um paradoxo: ela tem força, ela tem glória, ela tem prestígio, mas ela tem menos praticantes da sua fé. É o que vem acontecendo na Polônia, onde o governo conservador apostou muito na força ou no apoio da Igreja Católica. O resultado é que Igreja Católica ganhou nova força na Polônia, mas a frequência às igrejas diminuiu.

Então, essa é uma preocupação. À medida que o evangélico busca essa aproximação…esse casamento…com o Estado de maneira tão acrítica, tão sem critério, isso acaba acontecendo. A gente vai ter uma igreja com poder estatal, porém sem pessoas interessadas por ela. E isso é uma tragédia para a fé.

Enquanto Bolsonaro ganhar e tiver força, isso pode até ser bom para o poder da igreja, mas quando o bolsonarismo perder, isso vai ter consequências. Antes disso, todo erro do bolsonarismo também será um erro da igreja.

CC: Como você acha que será a relação de Lula (PT) com os evangélicos em um eventual novo governo?

GS: Eu também estou bastante curioso, sinceramente. A grande liderança evangélica ou, melhor dizendo, a liderança mediática, assim como os políticos, é extremamente pragmática. O que me parece, porém, é que parte dessa liderança chegou em um ponto de inflexão. Não dá para imaginar que esses pastores que passaram os últimos quatro anos em postura bolsonarista tão intensa, como o Malafaia, voltem atrás. Mesmo com a volta do Lula, eles vão continuar na oposição. Mas creio que não serão todos.

Se eu fosse o Lula, tentaria fazer uma ponte. O que não se pode é desprezar esse grupo. É uma parcela muito importante da população e que, se for desprezada, vai voltar a votar em um conservador em 2026. A inteligência política não deve desprezar um grupo tão importante quanto os evangélicos.

CC: O último capítulo do seu livro se chama ‘Porque e como os evangélicos devem fazer política’. Por que e como os evangélicos devem fazer política?

GS: Existe um conceito no cristianismo que é um conceito de diaconia, que é uma palavra que quer dizer ‘Ministério’ no sentido de ajudar o outro. Creio que esse é o papel da igreja politicamente: ser um auxílio à sociedade, especialmente no serviço, na ajuda necessitado.

Hoje muitas igrejas já fazem isso. Quando a igreja deixa isso de lado para simplesmente fazer o jogo eleitoral ou o jogo de poder, está entrando numa engrenagem que não deveria. Isso é bíblico. No Novo Testamento, que foi escrito em um período em que o Império Romano era antagônico à Igreja Cristã, você não vê nenhuma passagem com incentivos a reverter esse quadro por meio da conquista do poder, mas sim pelo incentivo ao serviço. Sempre é um incentivo a fazer o bem, então, para mim, esse é o papel político da igreja.

Mas claro que evangélicos e religiosos de qualquer religião podem expressar suas opiniões, inclusive opiniões morais. Afinal na sociedade democrática você não pode calar ninguém, nem os religiosos, isso é a democracia. Mas essa busca frenética pelo poder temporal, no fundo, é um tiro no pé da igreja.

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