Camilo Aggio

Professor e pesquisador da Universidade Federal de Minas Gerais, PhD em Comunicação e Cultura Contemporâneas

Opinião

Os evangélicos são uma minoria política

Trata-los de outro modo é politicamente estúpido e contraproducente 

Foto: Reprodução
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Circulou e ainda circula pelas redes digitais um registro em vídeo da primeira-dama Michele Bolsonaro recebendo fiéis evangélicos de madrugada no Palácio do Planalto. Eles circulam pelas dependências da residência oficial entoando cânticos religiosos e declamando palavras de fé. O episódio, como era de se esperar, teve grande repercussão pública, seja na grande imprensa, seja nas redes sociais. 

Pode-se discutir a questão, devidamente, à luz da laicidade do Estado – discussão que vem de muito longe e não se restringe ao fenômeno evangélico e neopentecostal. Mas há uma outra forma de analisar o episódio que me parece mais urgente e politicamente produtiva. 

Aquela celebração de fé patrocinada pela primeira-dama explica muito da resiliência eleitoral de Jair Bolsonaro entre os fiéis evangélicos, principalmente neopentecostais. Quando os governos petistas deram visibilidade institucional a minorias políticas, o efeito sobre esses grupos não foi diferente de como os evangélicos se sentem diante de Jair Bolsonaro e de seu governo. 

Não podemos deixar de observar – sob pena de ignorar um fenômeno social crucial para a saúde política do país – que os evangélicos brasileiros são formados por grupos político, social e economicamente excluídos. Igualmente estigmatizados, discriminados e oprimidos em razão de suas convicções religiosas e da fé que professam. Ou seja, o que vemos no episódio com a primeira-dama é a expressão do sentimento de um grupo que se sente prestigiado em suas demandas e reinvindicações, como qualquer minoria política se sentiria.

Na cacofonia reativa dos debates digitais, o que não falta é desnorteio, confusão e distorção sobre a comunidade evangélica. Estranham que os tratemos como o que de fato são: minorias políticas historicamente oprimidas, discriminadas e excluídas de muitas instâncias de participação e representatividade social. Isto porque confundem a comunidade evangélica com as grandes igrejas, os pastores-empresários e os mercadores da fé.  Trata-se de uma metonímia obtusa. Uma falácia. 

A importância social da comunidade evangélica no Brasil se dá justamente porque a sua proliferação acontece às margens desses grandes epicentros empresariais da fé. Essa abundância se explica em razão de uma capacidade de adaptação às condições de escassez e inadequações materiais. Quem conhece bem essa realidade sabe que o neopentecostalismo vem se expandindo graças às pequenas ou minúsculas igrejas que são construídas em garagens e casebres em invasões e nas comunidades periféricas. 

Do mesmo modo, como ensinam os especialistas das áreas de sociologia e antropologia aplicadas à religião, a conversão evangélica está ligada, umbilicalmente, a transformações sociais e materiais concretas: reduz o alcoolismo e a violência doméstica, estimula a busca por educação e formação profissional, cria redes de apoio mútuo, proporciona mobilidade social e quebra de ciclos de estagnação socioeconômica nas comunidades pobres. E se esses especialistas me permitem, incluo o acesso às artes por meio da música. Tem sido fantástico observar como jovens evangélicos têm descoberto e desenvolvido habilidades musicais por meio da experiência da música em seus cultos. 

Não se pode deixar de sublinhar que essa mesma comunidade é composta, em suas partes, por um conjunto de outras tantas minorias políticas: a grande maioria da população evangélica é do sexo feminino, negra, de baixa escolaridade e renda. Aos preconceitos socioeconômicos, como já dito acima, soma-se o enorme preconceito que enfrentam por conta de sua fé. As reações à celebração evangélica no Palácio do Planalto nas redes são exemplos disso. Preconceito, discriminação e estigmatização. Na falta de prestígio social, os evangélicos encontram o abraço dado pela primeira-dama e por esse governo. 

Nesse imenso pacote de complexidades está embutido, obviamente, o ultraconservadorismo, avesso a agendas e políticas liberais de expansão dos direitos humanos. Nessa seara, é ilusão achar que os evangélicos estão ganhando. Ou vocês realmente acham que essa comunidade está feliz com a legalização do aborto de fetos anencéfalos, o casamento civil entre pessoas do mesmo sexo, o uso do nome social, o direito ao aborto em caso de estupro ou com a Base Nacional Comum Curricular? Sem chance. E a lista é bem maior. 

Lutar pelas agendas liberais no campo dos direitos humanos, pela liberdade religiosa e pela laicidade do Estado passa também por reconhecer a comunidade evangélica nos termos concretos que a definem: são uma minoria política que, como qualquer minoria, estão buscando, legitimamente, seu lugar ao sol na política. Eis o tamanho do nosso desafio.

Reconhecê-los como minoria política é o primeiro passo para defender o pluralismo, a tolerância, a diversidade e o respeito às diferenças. Trata-los de outro modo seria politicamente burro e contraproducente. 

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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