Cultura

Com o álbum ‘Baiana’, Daniela Mercury diz reforçar lutas contra a ‘sombra fascista’

Em entrevista a CartaCapital, a cantora conta o processo criativo da nova obra e fala sobre a defesa à música brasileira: ‘Precisamos discutir novas proteções à cultura’

A cantora e compositora Daniela Mercury, em foto de divulgação do álbum Baiana. Foto: Célia Santos
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Os versos de luta aparecem do início ao fim do álbum Baiana, de Daniela Mercury. A afirmação é literal. Se, nas primeiras palavras da faixa de abertura, a cantora diz que Elas fizeram a revolução, ele não, ao fim da última canção do disco, ela encerra a letra cantando a primavera que renascerá do impossível chão.

É como um festejo da vitória diante de tantas faltas. Um sentimento contemporâneo, que reside no conflito entre a alegria de avançar e a angústia de ainda ter uma infinidade a conquistar.

A convivência entre o sonho e a impossibilidade de realizá-lo marca a nova obra de Mercury. Até porque, mesmo quando se dá a certeza do renascimento da primavera, a palavra “impossível” está lá. Como diz a música que dá nome ao álbum, é uma poesia sobre a dor, “que celebra a alegria, mas segue a chorar”.

Com letras concebidas durante a pandemia, as músicas de Baiana não são necessariamente felizes. Ao mesmo tempo, expressam a busca da felicidade.

“As pessoas me associam à alegria porque eu faço uma música rítmica, mas a minha música sempre foi muito politizada, sempre trouxe temas fortes, contundentes, profundos”, diz Mercury, em entrevista a CartaCapital.

A capa do álbum de ‘Baiana’. Foto: Célia Santos

O álbum, lançado no fim de 2022, marcou os 30 anos de O canto da cidade, hino do axé e do carnaval brasileiro.

Em uma conversa por telefone, a cantora explicou as etapas de seu processo criativo e os valores ideológicos que se pronunciam na sua forma de compor e de interpretar as canções.

A artista havia cogitado nomear o novo álbum de Samba, porque suas pesquisas iniciais combinavam a bossa nova com o samba reggae. A mistura é observada na regravação de A Felicidade, de Tom Jobim e Vinícius de Moraes.

Mas o retrato da vivência da mulher nordestina fez Mercury escolher o título de Baiana. Afinal, as mulheres e a população nordestina foram os maiores responsáveis pelo resultado eleitoral do ano passado, salienta.

As canções foram escritas por Mercury, junto a parceiros como os produtores e instrumentistas Jaguar Andrade, Mikael Mutti, Juliano do Valle, Fernando de Carvalho e Zé Celso Martinez.

Ouvido por CartaCapital, o baiano Jaguar Andrade, que produziu Caetano Filho do Tempo, Engomadeira e A Felicidade, relata um perfil criterioso de Mercury nos momentos de criação. O artista mora em Camaçari e começou a trabalhar com a cantora em 2007, principalmente em shows.

“A sensibilidade é algo que a gente aprende direto com ela”, afirma o produtor.

Na mesma linha, Mikael Mutti, que também é baiano e mora em Los Angeles, diz que Mercury não se contenta facilmente e realiza diversas intervenções ao longo das criações.

Mutti está nas canções Soteropolitanamente na Moral, O Samba Não Pode Esperar, Aglomera, Deixa Rolar, Me Dê e Disparo a Flecha. Eles trabalham juntos desde o álbum Feijão com Arroz (1996).

“Ela falou: eu gosto das linhas melódicas que vocês todos me apresentam, vocês são arranjadores e compositores maravilhosos. Só que eu não tenho que gostar, eu tenho que amar. Porque, às vezes, eu fico cantando uma música dessas por 25 anos e não posso enjoar em dois“, conta o produtor. “Ela está sempre buscando algo que ame cantar.”

Confira, a seguir, os principais trechos da entrevista sobre o 13º álbum de estúdio de Daniela Mercury.

CartaCapital: As suas músicas são muito conhecidas pela força e pela alegria. Como foi o seu processo criativo ao compor um novo álbum durante um momento tão triste como a pandemia?

Daniela Mercury: Foi bastante difícil ter a alegria sólida. Não havia alegria, havia uma angústia muito grande. Mas a pandemia trouxe momentos distintos. A gente não tinha previsão do que iria acontecer, estávamos recebendo notícias a cada minuto. O que aconteceu tem muito a ver com a forma como o governo lidou com a pandemia, com o atraso das vacinas, e trouxe esse saldo tão negativo. Eu escrevo constantemente. Então, escrevi sobre vários assuntos, inclusive temas muito tristes, mas eu não trouxe todos eles para o álbum. Eu fiquei esperando o momento e atrasei o lançamento do álbum, que já tinha muitas músicas prontas, e eu já estava fazendo laboratório para chegar à síntese dos arranjos e das fusões rítmicas. Mas as músicas do meu álbum não são alegres. Acho que a alegria e a tristeza convivem igualmente, a realidade e a fantasia também. Os sonhos e a impossibilidade de realizá-los.

As pessoas me associam à alegria porque eu faço uma música rítmica, mas a minha música sempre foi muito politizada, sempre trouxe temas fortes, contundentes, profundos. O ritmo, às vezes, camufla. Baiana traz isso. Para mim, a Bahia traz sentimentos antagônicos. É o lugar onde eu vivo, é um estado de muita desigualdade, é maravilhoso e violento. A gente é um celeiro musical de melodias muito bonitas, o nascedouro do samba, impregnado de cultura e de influências. Por ter escolhido fazer uma música que tem a ver com esse lugar, trago essas questões todas. Inclusive, eu falo de bairros que não são associados ao carnaval.

Sou de Brotas, um bairro de trabalhadores, de classe média central da cidade. Ando de ônibus desde criança, comecei a pagar as minhas aulas de dança com bolsas de estudo aos dez anos de idade. Dei aulas a partir dos quinze anos. Minha primeira carteira assinada, em uma escola de dança, me deu a oportunidade de fazer aulas de balé, porque eu não tinha acesso. Neste momento em que a gente fala de acesso à cultura, que é direito de todos, a gente continua sem escolas de arte para todas as pessoas da mesma maneira. Sendo que a cultura profissional é uma indústria importantíssima num país tão rico culturalmente.

Eu falo da pobreza, das mulheres que são arrimo de família, da violência. E canto com a força que me é peculiar e que eu aprendi por morar no Nordeste, por ser uma mulher guerreira, politizada desde criança, mas cheia de energia e procurando a alegria. Sempre. Acho a alegria muito preciosa e difícil. A cultura e a arte me fazem ter a expectativa de sonho. É uma religião, o meu contato com o divino, com a nossa humanidade, com a imaginação.

CC: É como um consolo?

DM: É a cultura e a ancestralidade, africana principalmente, que nos faz seguir cantando, que nos faz ter ritmos fortes, que nos faz tocar coletivamente. O samba é um consolo? É, o samba é um consolo. O samba também é um hino, o ritmo é afirmativo, nos faz ocupar um lugar na sociedade, falando da miséria e da dificuldade, como todos os samba reggaes políticos, antirracistas. A própria rítmica é antirracista, porque ela é predominantemente vinda dos candomblés, e o candomblé já é uma resistência. Um terreiro é um núcleo de comunidade que uniu as pessoas na luta contra a escravidão e todo o tipo de opressão. Até hoje os candomblés sofrem perseguição.

Como voltamos a ter essa sombra fascista, autoritária, que foi acesa por um governo antidemocrático, a gente tem que reforçar todas as lutas. Eu nunca deixei de cantar as dificuldades, mesmo em um ambiente que celebra a alegria e a vida. A música é uma forma de falar de nós, numa alegria possível ou momentânea.

O axé é um gênero que sofreu muito preconceito. No começo, ninguém sabia o que era. Jornalistas me perguntavam: Daniela, o que você acha do preconceito no Nordeste? Eu dizia: não sei, porque eu não conheço, sou uma nordestina que chegou aqui agora para vir com o meu tipo de música que vocês nem conhecem direito. Como é que eu posso presumir que vocês vão ter preconceito com algo que nem mostrou a sua cara?

A gente não tem que ficar contabilizando sofrimento, porque isso não ajuda muito. A gente tem que pontuar e politizar esse sofrimento, buscar que ele vire uma demanda social organizada.

CC: A influência norte-americana na música brasileira te preocupa de alguma forma?

DM: Sempre me preocupei com isso. Sou de uma geração que lutava contra a ditadura. Só vivi em um país democrático adulta. Passei a minha infância e adolescência na ditadura. Eu quero aprender tudo, entender tudo, usufruir de tudo, e tenho conhecimento da música norte-americana. Mas o meu desejo de não cantar em inglês e a minha insistência em fazer uma música brasileira e baiana tem muito a ver com a consciência política de não cantar uma música de um país que, a princípio, para nós, parecia ter colaborado com a ditadura militar brasileira. Víamos como uma pátria imperialista, tentando nos impregnar com a sua cultura e com a sua visão de mundo. Para a gente ter uma visão independente e proteger a nossa cultura, o nosso povo, a nossa economia, e buscar um protagonismo no mundo, tínhamos que ter essa crítica.

Eu sou da época em que a televisão começou. Sou de 65. Em casa, a gente não tinha televisão ainda, ninguém tinha dinheiro para comprar um aparelho. Só fui ter televisão na minha casa com oito anos de idade. A gente começava a ver as propagandas, e minha mãe e o meu pai falavam: cuidado com a linguagem subliminar, não se deixe impregnar pelas ideias, cuidado com as propagandas. Então, a gente se criou atento. Lutamos para fazer a música brasileira ter mais espaço nas rádios. A MPB não tocava muito, mas eu ouvia em casa, Chico, Caetano, Gil e Bethânia. Eu peguei a minha infância com a Jovem Guarda, com o rock, a música folclórica da minha cidade, a MPB que eu ouvia em casa. E eu ouvia o soul music norte-americano, conheci o dance todo, o jazz, o blues, porque o meu pai sempre ouviu. E, como eu sou bailarina, ouvia música clássica. Então, eu tive uma amplitude. Mas eu escolhi, desde menina, fazer música brasileira. E me preocupa sim. Me preocupa, principalmente, em São Paulo, onde toca muito música estrangeira.

No Brasil, nós protegemos a nossa cultura com algumas leis. Agora, com as novas plataformas, precisamos discutir novas proteções à cultura e à língua portuguesa. Os Estados Unidos sempre valorizaram muito a cultura e dominam 50% de todo o mercado de entretenimento no mundo. Eu tento alertar aos governos brasileiros há muitos anos. É uma cultura que coloniza as mentes. Por isso, a gente não pode se deixar colonizar. Zé Celso fala, na música Macunaíma, que eu fiz com ele: “200 anos da independência / Desobediência / Coitada / Não foi ainda proclamada“. Em muitos aspectos, a gente não proclamou a independência. Tampouco estamos livres da escravidão moderna. Então, a gente ainda tem muito a fazer. Eu sou uma tropicalista, também. Defendo a guitarra. É proibido proibir. A gente pode ter abertura, com a consciência do que estamos trazendo para a nossa música. Isso é riqueza e diversidade, mas a gente tem que saber o que é o quê.

CC: Você não apenas foi uma voz política, mas também uma figura atuante dentro das esferas de poder, como no Conselho Nacional de Justiça. Quais suas perspectivas para o novo governo?

DM: Eu sempre tive uma carreira paralela de militância e ativismo, desde menina. Acho que pelo fato de a minha mãe ser assistente social e a gente ter lidado com muita dificuldades da inflação, de um país na ditadura e da seca no Nordeste, eu sempre me vi conectada com a minha comunidade. Nunca consegui ser feliz sozinha. Tem até uma música de Lenine que diz isso: Minha mãe fez milagre, e eu, menina, vi o peixe e o pão multiplicar; eu sou meio Saci, Macunaíma. O meu jeito de lidar com o mundo foi trabalhando com arte, mas não me satisfiz. Eu quis, como sociedade civil, atuar. E fui aproveitando a visibilidade como artista para estar sempre trabalhando em campanhas e ações sociais. O meu currículo na área social é tão grande como na cultural.

Entre o sonho e a realidade, a gente tem a política. A política pode ser feita como cidadã ou ligada a algum partido. E eu preferi fazer junto a instituições, como Unicef, Unesco e Instituto Ayrton Senna. Eu trabalhei em uma comunidade solidária quando o Fernando Henrique assumiu. Era uma interlocução direta da sociedade civil com os ministros. Foi mais ou menos o que eu vivi agora no Observatório dos Direitos Humanos, só que agora eu estava com o Judiciário, e na época eu estava com os ministros, discutindo políticas públicas e trazendo metodologias das ONGs para dentro do governo. A diferença agora é que eu fui aprender como lidar com os mecanismos do Judiciário.

O CNJ tem um laboratório de pesquisas. E eu sabia que a gente não tem pesquisas sobre discriminação e violência contra a população LGBTQIA+. Aí eu vi que o CNJ podia fazer um apanhado, usando informações do Judiciário. Quando a gente faz isso, os juízes são obrigados a revisitar os processos e a entender como melhorar o atendimento à comunidade LGBTQIA+. É isso. Eu aprendi a me mover em vários ambientes, sempre procurando não me vincular a nenhum partido, apesar de ter posições pessoais, porque eu queria ficar transitando e exigir que todos fizessem ações contra a opressão e a desigualdade. Nesses últimos anos, diante desse governo autoritário, que perseguiu os artistas, diante da crise democrática que se instaurou no momento em que derrubaram o governo de Dilma, eu achei que era importante trabalhar, me manifestando e tentando influenciar, também, as campanhas eleitorais.

Mas eu acredito que a cura para o fascismo perpassa muito pela educação e pela cultura. A nossa humanidade se expressa através das artes. O que a gente vê é que grande parte não está recebendo o devido respeito. A gente espera que o governo eleito tenha a capacidade de diminuir a desigualdade e de trazer políticas públicas que confrontem a desigualdade que a sociedade estabeleceu ao longo da nossa civilização. Os artistas têm que colaborar com essa visão. Como disse muito bem, antes de falecer, Jô Soares, eu não consigo pensar em artistas reacionários. Mas a gente está vendo que tem. Sempre acho que os artistas são capazes de ver mais do que os outros, mas nem todos conseguem sair de suas bolhas e ter uma visão política mais profunda. Pessoalmente, acho que a alegria salva. Eu sou uma oswaldiana, caetaniana, uma nova baiana pós tropicalista, e acredito que a própria cultura, a festa e as celebrações são muito importantes para a gente valorizar a humanidade das nossas cidades.

Cerimônia no CNJ lançou relatório sobre discriminação contra LGBTs, com a presença de Daniela Mercury. Foto: Reprodução

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