Entrevistas

cadastre-se e leia

A serpente está viva

Radicalizados e forjados na militância das ruas, os bolsonaristas farão oposição na ofensiva, prevê Manuela D’Ávila

Alvo de constantes ataques nos últimos sete anos, a ex-deputada decidiu não disputar as eleições deste ano, mas não por causa das ameaças. “Essa narrativa dá vitória a eles. Não tiveram e não têm” - Imagem: Clauber Cléber Caetano/PR e Redes Sociais
Apoie Siga-nos no

Ex-deputada, candidata a vice-presidente em 2018 e a prefeita de Porto Alegre em 2020, Manuela D’Ávila, do PCdoB, optou por não disputar a eleição deste ano. Vítima de violência política e do discurso de ódio propagado pela extrema-direita, ela nega ter desistido de concorrer ao Senado pelo Rio Grande do Sul, como estava cotada, devido às ameaças que recebe há pelo menos sete anos, informação que classifica como factoide. “Que infantilidade eu teria de achar que deixando de concorrer eu deixaria de ser alvo dessa gentalha”, diz.

Na entrevista a seguir, a comunista fala da violência nas eleições, do futuro do bolsonarismo e do que esperar de Lula em um terceiro mandato. “Tenho a convicção de que será um governo de disputa de projetos e nós, da esquerda, temos de estar prontos. Precisamos acumular força social para que reformas mais profundas sejam feitas.”

CartaCapital: O Brasil vive uma escalada da violência política, com cidadãos sendo agredidos ou assassinados por conta de suas preferências. A senhora e sua família são vítimas de ataques há muito tempo. A decisão de não disputar o Senado neste ano tem relação com esse clima de ódio?

Manuela D’Ávila: Alguns de nós têm sido vítimas dessa violência há bem mais de quatro anos. Isso não começou em 2018. Esse ódio vem sendo disseminado por grupos de extrema-direita, de forma organizada e robotizada na internet, desde 2015. Eu me lembro bem disso, porque estava gestante. São pelo menos sete anos e outros de nós, como o ex-deputado Jean Wyllys, foram vítimas ainda antes. Muitos foram pegos de surpresa nas últimas eleições, continuam agora, porque não atribuíram a real seriedade daquilo que denunciávamos. A violência começa com a não aceitação do resultado eleitoral pelo PSDB e com os discursos radicalizados por grupos como o MBL. Em 2015, ganha o caráter misógino, porque o golpe é antinacional, antipopular e antidemocrático, mas o que legitima socialmente é a misoginia, é o discurso da incompetência feminina de Dilma Rousseff. Eu e a minha família sofremos com isso desde então. Não fui pega de surpresa nas eleições. Na minha gravidez, inventaram que eu tinha feito enxoval em Miami. Passei a dar entrevista sobre o direito de fazer ou não o enxoval em Miami, mas eu nunca estive lá. Quando um factoide é criado, as pessoas passam a falar sobre ele, e não sobre a verdade. Nunca fui candidata ao Senado. Logo, não desisti de candidatura alguma. Disputei dois segundos turnos contra o bolsonarismo. Estive na linha de frente em 2018 e 2020, como candidata a vice-presidente e a prefeita. Ao término das eleições municipais, antecipei que possivelmente não concorreria em 2022.

CC: Então, sua decisão não tem relação com a violência política?

MD: Ao contrário. Todas as decisões da minha vida nos últimos sete anos foram tomadas pensando na violência política. Não fui ao supermercado durante anos, por causa desse clima de ódio. Fui candidata duas vezes, mesmo sofrendo ataques constantes. Vivo pensando nisso. “Devo ir a um restaurante para comemorar o meu aniversário?” “Qual é o tamanho da disposição que tenho para enfrentar alguém dizendo que eu liguei para o Adélio Bispo 180 vezes no dia da facada”? Sobre as questões que me fizeram não ser candidata, eu já fui deputada federal e estadual e a minha obrigação é usar esse prestígio para as ideias que defendo. Por essa razão, tenho como candidatas duas outras mulheres que não ocuparam esses espaços e que podem ser deputadas de luta, de esquerda, negras do meu estado, que nunca elegeu uma deputada negra. Que infantilidade eu teria de achar que deixando de concorrer eu deixaria de ser alvo dessa gentalha. Eles me seguem há sete anos. Então, esse discurso é uma narrativa que dá a vitória a eles. Não tiveram e não têm.

“O bolsonarismo é violento e não mudará sua conduta com a nossa vitória”

CC: Os disparos em massa de notícias falsas, como aconteceu em 2018, parecem não surtir o mesmo efeito e o maior exemplo disso é Bolsonaro estagnado nas pesquisas. Estamos ficando vacinados para as fake news?

MD: Nos últimos quatro anos, as instituições brasileiras e parcelas importantes da sociedade reconheceram a existência da desinformação. Isso faz com que o problema esteja iluminado. Em 2018, ele estava escondido. A gente falava sobre isso e era uma caixa vazia, não encontrava eco. Colocar luz no problema sempre é um dos caminhos mais eficazes para enfrentá-lo. Segundo, tivemos um conjunto de medidas que impactaram em certa escala no sistema de produção e distribuição da desinformação no Brasil. Algumas pessoas foram detidas. É uma quadrilha financiada para essa finalidade. Uma parte dela, digamos assim, está sendo vigiada, acompanhada mais de perto. De outro lado, acho que temos instituições e partidos mais atentos.

CC: Caso Bolsonaro seja mesmo derrotado no próximo domingo, como apontam algumas pesquisas, seus apoiadores aceitarão o resultado? Qual será o futuro do bolsonarismo?

MD: A violência faz parte do bolsonarismo, é algo intrínseco. Desde o seu início, está no seu DNA, o centro da sua identidade é o ódio. O ódio ao PT, à esquerda, às mulheres, aos negros e negras, aos LGBTs, aos indígenas, o ódio ao Brasil travestido de um falso nacionalismo. O bolsonarismo é violento e não mudará o seu comportamento com a nossa vitória. Ele manterá o padrão. Fisicamente, minha filha apanhou pela primeira vez de um bolsonarista. Como que vou imaginar que esse pensamento vai ficar dócil depois do resultado da eleição? Não vai. Temos de estar preparados para essa tentativa de desestabilização social, porque eles funcionam a partir da ativação de lobos solitários e, assim, eles nunca assumem a responsabilidade pelos ataques, até por ser uma contribuição indireta. Mas o discurso de ódio sempre traz consequências ­reais, não fica no plano da imaginação. Eles serão uma força de oposição relevante, diferente das que lidamos no passado. Será uma oposição na ofensiva. É uma direita forjada na rua, algo incomum para o Brasil. É preciso devolver ao Brasil a ideia de que existem regras no jogo. Nós defendemos o direito de os bolsonaristas serem oposição até as últimas consequências, porque defendemos a democracia. Só que eles devem fazer oposição no marco da Constituição Federal. Ponto.

CC: Como evitar um retorno da extrema-direita ao poder?

MD: São várias questões. Uma é com a luta social em torno da consciência do povo. Somos um país forjado em quase quatro séculos de escravidão, que não debateu a ditadura abertamente com a sociedade. O Brasil precisa, primeiro, se perceber enquanto nação e reconhecer seu processo de construção histórica para poder ser um país de verdade, o grande sonho realizado. O país é sempre essa espécie de sonho a se realizar. Precisaremos construir um governo à altura das expectativas da sociedade, ou seja, o governo que aponte caminhos de enfrentamento a essa desigualdade que estrutura as relações sociais. Precisamos enfrentar os problemas concretos e ao mesmo tempo apontar esperança no tratamento do racismo, no tema da sustentabilidade, no enfrentamento à fome, à miséria, assegurando trabalho, renda e dignidade a quem trabalha.

Lula emancipou as mulheres com o Minha Casa, Minha Vida e o Bolsa Família. Bolsonaro ameaça a sobrevivência delas com a inflação galopante – Imagem: Edson Lopes Jr./CHDU e Prefeitura de Penedo/GOVAL

CC: Como a senhora avalia o avanço da extrema-direita na Europa e o risco dessa expansão para o resto do mundo?
MD: O mundo vive uma grande crise, que é econômica, social, ambiental, humanitária. Vivemos uma crise que por vezes somos incapazes de dimensionar. O mundo não é mais o mesmo de 20 anos atrás. A disputa entre EUA e China, o que significa? Esse é o papel que teremos de cumprir com o restabelecimento pleno, digamos, das condições democráticas.

CC: O que esperar de um terceiro governo Lula?

MD: Que seja melhor que os outros, conectado com o tempo presente. Gosto muito de um poema do Drummond que diz: “O tempo é minha matéria”. O tempo presente, a vida presente, os homens presentes. Tem um poema do Neruda, igualmente belo, que acrescenta: “Nós, os de então, já não somos os mesmos”. Lula não é o mesmo, o Brasil não é o mesmo. Espero que esse reencontro esteja à altura dos desafios do nosso povo. Tenho a convicção de que Lula está preparado para isso. O mais importante ele tem: compromisso com o povo pobre e trabalhador do Brasil. Isso fará com que Lula construa um governo à altura dos desafios, que são realmente muito grandes.

CC: Faz sentido Lula insistir numa política conciliatória?

MD: A gente precisa entender o tamanho do buraco em que se meteu. Bolsonaro tem mais de 30 pontos em qualquer pesquisa. A política é feita a partir da análise da realidade concreta. E a realidade concreta que vivo é a de um país governado por Bolsonaro e no qual minha filha é ameaçada de morte e de estupro. E ela não é a única, não brilha no escuro. Pessoas foram mortas por usarem adesivos. Não fazemos alianças só com quem desejamos. Lula faz esforço para preservar a democracia, porque o buraco que a gente está metida é esse. Governar é outro desafio. Tenho a convicção de que será um governo de disputa de projetos, e nós, da esquerda, temos de estar prontos. Precisamos acumular força social para que reformas mais profundas sejam feitas.

“Tenho a convicção de que o governo Lula será de disputa de projetos e nós, da esquerda, temos de estar prontos”

CC: A agenda dos direitos humanos, do meio ambiente e da inclusão social terá espaço em um governo composto de tantas forças conservadoras?

MD: Lula foi presidente duas vezes e foi um homem muito comprometido com os direitos humanos. Basta lembrar que foi ele quem garantiu duas políticas que emanciparam milhares de brasileiras: o Minha Casa Minha Vida, com a chave da casa na mão da mulher, e o Bolsa Família, com o cartão na mão da mulher. Independência econômica e teto. O Congresso terá um peso nisso. Nós tivemos uma bancada amplamente minoritária, mas ainda assim garantimos o auxílio emergencial. O ambiente do governo Lula é democrático, vamos ter conferências, voltar a ter participação popular. Estou pronta para as disputas que tivermos de fazer nesse ambiente democrático.

CC: Como Lula deve lidar com o Centrão no Congresso?

MD: Nas eleições municipais, tivemos a grata surpresa de uma renovação com muita qualidade na esquerda, com a eleição de muitas mulheres, negros e negras vinculados à periferia, às lutas sociais. Minha expectativa é de que tenhamos uma bancada mais numerosa, puxada pela força da nossa coligação, com mais mulheres, jovens, trabalhadores das periferias, negros e negras, indígenas. A relação tem de ser feita programaticamente. Quais são as mudanças que queremos promover no Brasil? A partir disso é pactuar politicamente, como já fizemos. As políticas que saudamos passaram por um Congresso que também era conservador.

CC: E qual será o papel de Manuela D’Ávila no governo Lula?

MD: Não tenho papel, não tenho essa expectativa. Sou uma militante social e política. Quando decidi não concorrer, as pessoas me perguntaram se eu estava saindo da política, por ter decidido trabalhar, fazer um doutorado, tocar a minha vida profissional numa outra esfera, que não a parlamentar. Eu sou militante antes de ter mandatos e continuei militante depois de tê-los. Decidi muito jovem, aos 17 anos, que a minha vida só tem sentido coletivamente. Como diz a frase de um filme, “a felicidade só é real quando ela é compartilhada”. E aqui a felicidade tem um sentido político, não um sentido individual, mas de que a gente é feliz quando tem comida, quando o filho está seguro, quando a filha está na creche, quando tem trabalho, quando não falta consulta no SUS. A felicidade é palpável por direitos políticos e sociais. •

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1228 DE CARTACAPITAL, EM 5 DE OUTUBRO DE 2022.

Leia essa matéria gratuitamente

Tenha acesso a conteúdos exclusivos, faça parte da newsletter gratuita de CartaCapital, salve suas matérias e artigos favoritos para ler quando quiser e leia esta matéria na integra. Cadastre-se!

ENTENDA MAIS SOBRE: , , , , ,

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo

Apoie o jornalismo que chama as coisas pelo nome

Os Brasis divididos pelo bolsonarismo vivem, pensam e se informam em universos paralelos. A vitória de Lula nos dá, finalmente, perspectivas de retomada da vida em um país minimamente normal. Essa reconstrução, porém, será difícil e demorada. E seu apoio, leitor, é ainda mais fundamental.

Portanto, se você é daqueles brasileiros que ainda valorizam e acreditam no bom jornalismo, ajude CartaCapital a seguir lutando. Contribua com o quanto puder.

Quero apoiar

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo