Educação

Professor pode perder cargo após citar Bolsonaro durante explicação em aula de gramática

O professor Aldo Abitante está afastado da escola onde lecionava em Salto de Pirapora, interior de São Paulo, e responde a processo administrativo disciplinar

Créditos: Reprodução
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Há 10 anos, o professor Aldo Abitante não sabia o que era estar fora de uma sala de aula. Desde o dia 19 de outubro, porém, a alegria de lecionar Português e usar de sua criatividade para conectar o ensino da gramática aos fatos cotidianos deu lugar à insegurança e à tristeza.

Era mais um dia de encontro com a turma do 8º ano da “EMEF Vereadora Celia Dias Batista dos Santos”, escola localizada em Salto de Pirapora, interior de São Paulo. O docente tinha em seu planejamento dar uma aula sobre ‘transitividade verbal’, mas foi interrompido por um debate que se acalorava entre os alunos. A turma tecia comentários sobre um vídeo publicado no dia anterior pelo youtuber Felipe Neto em que tratava sobre menções de apoio do presidente Jair Bolsonaro a líderes ditatoriais, ao longo de sua história na política.

O professor conta que se apropriou da frase que circulava entre os estudantes ‘Bolsonaro apoia ditadores e torturadores’ para propor um exercício gramatical, onde eles teriam que identificar o sujeito da frase, o tipo de verbo, e o objeto da frase, uma forma de retomar o assunto central da aula: transitividade verbal. A tática é comum ao educador: “Eu sou um professor que sempre procurei partir do material trazido pelos alunos, do que está na realidade deles, o que eles vivenciam, para problematizar dentro do conteúdo que estou tratando, criando uma proximidade entre a vivência social e o que propomos em sala de aula”, explicou à reportagem.

Segundo o docente, o exemplo foi abordado e seguido por outros, sem qualquer menção política, favorável ou contra o material debatido pela turma.

Após a aula, o professor conta que saiu para cumprir seu horário de almoço e, no retorno à escola, foi informado de que o exemplo utilizado em lousa tinha sido fotografado por uma aluna e a foto publicada nas redes sociais o que, àquela altura, já rendia vários comentários negativos a seu respeito.

Um dos primeiros a divulgar o caso foi José Robertos dos Santos, conhecido Beto Martello, que concorreu ao cargo de vereador em Salto de Pirapora nas eleições de 2020 pelo Partido Social Cristão, não sendo eleito. A publicação mostra uma foto da lousa, seguida da legenda: ‘Sem Palavras’. A publicação é acompanhada de comentários que acusam o professor de doutrinação, pedem punição e apontam intimidação ao docente.

Era só o início da escalada do caso. No mesmo dia, o educador foi convocado para, na manhã do dia seguinte, participar de uma reunião ‘informal’ com a Secretaria da Educação. Ao chegar à agenda, no entanto, o professor se deparou com diversos membros da secretaria da educação, como a secretária municipal Marli Gomes Galvão; a supervisora municipal de ensino, Sarita Burgudgi; a diretora adjunta de educação, Sandra Regina Iori; a secretária de negócios jurídicos, Bruna Caroline Santos, além da coordenadora pedagógica da escola, Juliane Cristine Ayres Durães. Também participou da agenda o vereador Antonio Marcos Nidealco (PSD), vice-presidente da comissão de educação, saúde e assistência social, e manifesto apoiador de Jair Bolsonaro (PL).

A reportagem de CartaCapital teve acesso ao áudio gravado da reunião e a um documento com a transcrição das falas onde os presentes discutem a situação do professor e dizem que o episódio, inclusive, virou caso de polícia. Abaixo, a reportagem traz um trecho dos diálogos.

Nidealco: Interessante, né ‘Bolsonaro apoia’, beleza, né?  Bolsonaro, sujeito, apoia, verbo até aí, legal, é uma frase que você poderia trabalhar, mas quando colocou ditadura e torturadores. Aí que tá pegando.
Sandra: aí está pegando.
Marli: você, afirmou, você afirmou.
Aldo: Que é vídeo do Felipe Neto, ele está falando sobre isso…
Nidealco:  Felipe Neto zero! Zero!
Nidealco: Colocar alguma coisa na sala de aula do Felipe Neto, hoje, é  desconstruir a educação.
Marli: E, outra coisa, isso não prova que ele é torturador… Ele apoia, tudo bem. Mas isso, na lei, a gente não tem nada na legalidade. Como se diz: o Lula é ladrão e foi punido, mas também não tem provas que ele é ladrão, porque ele ficou preso lá por um determinado tempo e, enfim, todo mundo sabe história. Mas ninguém apoia que ele apoia, torturador, entendeu? E você é um formador de opinião. Quando o professor fala, tem um peso enorme na sala de aula, principalmente o professor…
Sarita: Sim, pra adolescente, adolescente.
Marli: Então, Aldo, tomou uma proporção, uma, proporção, algo que eu vou falar para você… 11 horas da noite, eu estava no telefone com delegacia.

No mesmo dia da reunião com a secretaria de educação, Beto Martello, que não tem cargo legislativo, fez uma nova publicação em suas redes afirmando que ele entrou em contato com os dirigentes da educação pedindo resolução sobre o caso. ‘Ontem chamei a Secretária da Educação Marli Galvao , a supervisora da Educação, Sarita Burgudgi, a chefe da seção de Ensino Fundamental, Sandra Sandra Regina Iori, e o secretário da Administração, Dyego Freitas , conversei com todos via áudio e mensagens de whatsapp e também via telefone. Toda equipe reafirmaram que muito repudiam e não compactuam com esse tipo de ato independentemente de qualquer viés político e ideológico. Digamos de passagem, que a equipe ficou assustada com as informações e prometeram imediatas e precisas medidas”, escreveu em suas redes.

A agenda com o secretariado resultou na abertura de um processo administrativo disciplinar contra Aldo Abitante que, no limite, pode levá-lo a ser exonerado do cargo. Ao solicitar a abertura do processo, a secretaria de educação também anexou como prova contra a conduta do professor uma avaliação de Língua Portuguesa em que o docente fez uso de um trecho de reportagem de CartaCapital para, a partir dele, propor exercícios de gênero textual aos estudantes. O professor utilizou um trecho da reportagem ‘Pé de meia / O cofrinho dos Bolsonaro’, veiculada na revista de CartaCapital e publicada em seu site no dia 1 de setembro.

O processo administrativo disciplinar contra o professor foi determinado em portaria publicada no dia 24 de outubro pelo prefeito Matheus Marum de Campos (PSDB).

Trecho de avaliação onde o professor utiliza como enunciado uma reportagem de CartaCapital.

O que diz a defesa do professor

A defesa do docente condena a abertura do processo administrativo disciplinar, instrumento utilizado por autoridades para apurar possíveis atos ilícitos por servidores públicos. O entendimento do advogado Jaelson de Oliveira Silva é o de que o professor não cometeu ilegalidade, motivo pelo qual julga que os munícipes envolvidos no caso atuaram para constranger o docente.

“O processo administrativo disciplinar não tem a finalidade e nem conteúdo voltado a tutelar os interesses do município. Por isso, é bastante claro que se trata somente de uma instrumentalização da administração pública para constranger o educador a não dizer aquilo que eles não concordam”, aponta.

A condução do caso, avalia, esbarra na liberdade de cátedra do docente, “que garante a ele, dentro de uma parametrização legal, escolher os métodos que vai utilizar para lecionar o conteúdo para o qual foi contratado. Não há nada de ilícito”, crava, ao ainda acrescentar que a estratégia de contextualizar assuntos é uma das ferramentas previstas pela Pedagogia.

A defesa ainda condena o fato de a reunião com o professor ter contado com a participação de um vereador, ‘que tem legitimidade para fiscalizar o Poder Executivo mas por outros meios e caminhos. Naquele momento, o Aldo estava sendo chamado como um servidor para tratar de questões funcionais e disciplinares. Portanto, nesses casos, a administração pública deve se atentar e resguardar sigilo em relação a tudo que é tratado com ele para não expô-lo aos demais servidores, isso é proibido”, analisa. “Então, quando você traz alguém que não faz parte da conjuntura da Secretaria da Educação, o intuito não pode ser outro além de intimidar”.

O advogado citou ainda que seu cliente já chegou a se utilizar de reportagens que traziam informações adversas sobre o PT em sala de aula, mas, na ocasião, não chegou a ser repreendido pela escola ou secretaria de ensino.

A reportagem de CartaCapital procurou a secretaria de Educação de Salto de Pirapora para se pronunciar sobre o caso, mas não recebeu respostas até o fechamento da reportagem.

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