Editorial

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Uma noite de meio verão

Mino Carta conta o seu sonho que ao cabo, torna-se pesadelo. Comparecem Raymundo Faoro, Lula, Luiz Gonzaga Belluzzo, Jair Bolsonaro, Alckmin e muitos outros

Uma noite de meio verão
Uma noite de meio verão
Faoro, herdeiro do espírito da Vacaria - Imagem: Luiz Alberto/Agência O Globo
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Esta noite tive um sonho, noite de meio verão. Logo aparece o amigo caríssimo – e uma vida não basta para tanta amizade – Raymundo Faoro, que em largas passadas desce pela Rua do Ouvidor – e como são compridas as pernas do amigo –, até mergulhar na atmosfera azulada do Rio Minho, emanada pelos ladrilhos portugueses. Estamos na fronteira do cais e Faoro do restaurante é frequentador assíduo, bem como de outro, também de cardápios lusitanos, em Botafogo. Digo: “O Lula escolheu seu parceiro de chapa, é Geraldo Alckmin”.

Agora Faoro está na cama do hospital. O fundador do PT ganhou as eleições e foi ao Rio para visitar o autor de Os Donos do Poder. Afirma o enfermo, ao se referir ao vencedor do pleito: “Ele já errou tudo”. O tom é aquele da Vacaria, onde a temperatura das altercações costuma subir de chofre. “Não é por aí que ele vai resolver os problemas de um país marcado por um desequilíbrio social monstruoso e pela ignorância do seu povo incapaz de reação.” De supetão entra o meu eterno parceiro Belluzzo e mitiga o espírito gaúcho: “Não há possibilidade – diz ele – de entrar de sola contra a casa-grande e os seus apaniguados da classe média. Tudo farinha do mesmo saco. E a cautela é altamente recomendável, até indispensável. Se formos com o discernimento e a habilidade que a situação exige, iremos longe, devagar e sempre”.

Surge de um canto a minha mulher, de súbito áspera: “Que PT é este? Um bando de patrulheiros, não passam disto, na certeza de nunca errar”. Muda o cenário e vou a São Bernardo, onde agora Lula mora na casa de um amigo. Chego e dou com ele em lágrimas, enquanto ouve Pavarotti cantar Nessun Dorma. Vem a mulher, Marisa, doce pessoa, comenta: “Ele é muito sentimental”. Percebo que gosto bastante de Marisa, recordo-a a acenar da direção de uma perua que me leva de volta a São Paulo, da porta de um bar onde Lula lida com um copo de cachaça com cambuci.

Nada mais simbólico do nosso Brasil do que esta humanidade que dorme ao relento – Imagem: Nelson Almeida/AFP

Pergunto ao Faoro: “Será que Lula acredita na conciliação das elites?” O caríssimo amigo disserta: “É da ­cultura brasileira evitar o confronto a todo ­custo”. Atalha Belluzzo: “Tempo ao tempo, nada impede que, ao cabo, Lula aja com a energia que hoje é desaconselhável, não levaria a coisa alguma, serviria apenas para justificar a Reação”.

Surge em cena o chefe da Polícia Federal, Romeu Tuma, carcereiro de Lula enquadrado na Lei de Segurança Nacional e preso no Dops. Faoro e eu vamos visitar Lula e Tuma manda chamá-lo e sai elegantemente do seu gabinete para que a conversa flua em liberdade. Ouço Faoro propor: “Se você precisar de um advogado, estou às ordens”. E Lula: “Não se incomode, doutor Faoro, um Greenhalgh basta”.

Aparece de improviso Giorgio ­Napolitano, comunista de origem controlada e garantida, acompanhado pelo chefe do Departamento de Relações Internacionais do PC italiano, Claudio ­Bernabucci, e sou incumbido de apresentá-lo ao público da USP, no Instituto de Estudos Avançados. Colho-me a demonstrar que o partidão italiano contribuiu notavelmente para aprofundar a democracia na península. Claudio me surpreende ao ressurgir como morador do Rio de ­Janeiro e pela casa dele comparece Wanderley Guilherme dos Santos, ­ladeado por uma irmã de Chico Buarque de Holanda e por Mauricio Dias, outro ­amigo muito querido.

Geraldo Alckmin põe no rosto o sorriso da aeromoça

Sem mais nem menos, como um ­uppercut bem aplicado, o sonho torna-se pesadelo. Primeiro, estou no restaurante Massimo, em São Paulo, e por ali vagueia, aparentemente sem rumo, Mario Sergio Conti, diretor da revista Veja e meu entrevistador na preparação de um livro intitulado Notícias do Planalto. Ali afirmaria o contrário do que eu disse ao longo de uma conversa sincera, ou seja, que, ao me demitir da Abril, graças às pressões de ­Ernesto Geisel, recusei qualquer forma de indenização por parte da editora da família Civita. Outro que vagueia ali mesmo, mas com passo altivo, é Michel Temer, já agraciado pela bênção de Lula, a despeito do seu envolvimento em mazelas muito além de suspeitas.

Quando Temer se aproxima, padeço de um sobressalto interior. Temo que ele ensaie um dos seus empolados discursos, enfeitados de várias formas por invenções soltas ao galope do momento oratório. Graças à série de golpes que vitimou o Brasil até o impeachment de ­Dilma ­Rousseff, Temer, na Presidência da República, foi o primeiro resultado daquela manobra urdida contra o próprio País por brasileiros afoitos e sempre mal-intencionados, em todos os sentidos imagináveis.

Por fim, quem eu vejo ao longe? O soberano do pesadelo, consequência inevitável do delírio geral. Sim, é ele mesmo, saído talvez do bar de um arrabalde empoeirado, demente convicto e errático. Pode ser que o País mereça Jair Bolsonaro, mas, de todo modo, é certo ser ele o auge de uma tragédia anunciada. O sonho carrega-se de uma tonalidade de filme de terror e alguém soletra que a prioridade é nos livrarmos dele.

Desentocado pela polícia italiana, Battisti é encarcerado em um presídio de segurança máxima na ilha da Sardenha – Imagem: Alberto Pizzoli/AFP

Um vozerio diz que a única saída é a de respeitar o calendário eleitoral formulado pelos golpistas, a prever eleições para o próximo outubro. Declara Raymundo Faoro: “Fosse o Brasil um país democrático e civilizado, os autores dos golpes, toda uma sequência implacável para, ao cabo, destronar Dilma Rousseff, seriam punidos e convocadas novas eleições presidenciais, com a vitória de Lula, está claro”. Uma espécie de sucedâneo do coro grego entoa a sua ladainha: se estamos como estamos, é porque este seria o Brasil. Desculpa? Escapatória?

Não há quem queira se comprometer e deixa as coisas como estão. Na ponta da mesa, diante de um prato de bacalhau à siciliana, Lula diz: “Uma vez eleito, e até com folga, como dizem as pesquisas, vou finalmente cuidar dos grandes problemas do País”. Ele sabe o que são, garante. Sobretudo, sabe como enfrentá-los. E aí, de uma área turva, emerge com seu sorriso de aeromoça o ex-governador de São Paulo, o tucano Geraldo Alckmin. “Esta turma – murmuro entre dentes – nunca cuidou dos verdadeiros problemas, pior, sempre agiu conforme a vontade da casa-grande.”

O demente devastador, secundado por uma geração espontânea de irresponsáveis, prossegue na sua obra imponente de destruição e quanto ainda permanece de pé neste país cada vez mais infeliz. Ando pela calçada e tropeço nos brasileiros que dormem ao relento. Caminhar pelas ruas tornou-se um exercício quem sabe interessante do ponto de vista esportivo. Mas nada é tão simbólico da tragédia em que o Brasil mergulha mais e mais a cada hora.

A prioridade ainda é nos livrar de Bolsonaro

E ainda sobra uma entrada final para Faoro, que levei à Itália, faz 28 anos, para que conhecesse a terra de origem da família, pouco mais que uma aldeia chamada Arsiè, na encosta dos Alpes, 2,5 mil habitantes, um terço deles de sobrenome ­Faoro. O tempora, o mores, ali aberto apenas um restaurante chinês, o que nos leva a descer para Bassano, terra de grandes pintores do século XVI, cidadezinha encantadora com sua incrível ponte de madeira, lugar recomendável para namorados, e a água do rio que lhe passa embaixo carregada de anzóis lançados da margem.

Diz Faoro: “Lula bem que poderia entender que o povo sempre vai recebê-lo em festa e que suas visitas ao exterior, onde de hábito o espera uma acolhida efusiva, não correspondem necessariamente à importância do nosso país, tanto mais quando ele vai a Paris, a cidade onde alguns brasileiros moram e é também o reduto de uma polícia que ajuda um notório criminoso como Cesare Battisti a fugir para o Brasil”.

Observo que é consequência da política do governo Mitterrand. Belluzzo atalha: “Fez um plano econômico supimpa”. Aludo à chamada Doutrina Mitterrand, implementada com a certeza de que valia para afirmar a supremacia democrática da França. Na verdade, serviu para fazer do país o refúgio da fina flor do terrorismo internacional, inspirou uma escritora de romances policiais que ninguém leu e empolgou um punhado de cretinos nativos. •

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1193 DE CARTACAPITAL, EM 2 DE FEVEREIRO DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “O sonho”

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