Editorial

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Por uma nova Igreja

Na acertada contramão do polaco Wojtyla, Francisco visa a coincidência com o mundo feliz, livre de dogmas e preconceitos

A caminhada histórica debaixo de chuva, prova inicial das suas intenções, no repúdio de João Paulo II e na celebração do santo de Assis tão claramente interpretado pelo pincel de Giotto – Imagem: Basílica Superior de Assis, Douglas Engle/AP e Vincenzo Pinto/AFP
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Há dez anos, dia 13 de março de 2013, a clássica nuvenzinha branca subiu no céu de Roma, a indicar que o consistório havia eleito papa Francisco, cardeal argentino neto de imigrantes piemonteses. Vinha ele em substituição de Joseph Ratzinger, papa Bento XVI, que renunciava ao cargo. Francisco, ex-arcebispo de Buenos Aires, disse, de saída, que queria “pastores com cheiro de ovelha” e logo provou sua vocação de reformador da Igreja Católica. Esclarece Roberto Regoli, professor da Pontifícia Universidade Gregoriana: “O papa introduziu no seu discurso alguns assuntos centrais das democracias ocidentais, como meio ambiente, educação e Direito”.

Entre outras medidas imediatamente tomadas, Francisco aboliu o ­sigilo ­pontifício, utilizado por autoridades eclesiásticas nos casos de abusos sexuais de menores, praticados nas mais diversas instâncias da hierarquia católica. As medidas representaram também uma resposta à leniência de João Paulo II, papa Karol Wojtyla, em relação a tais fatos. Recentemente, saiu o livro do repórter holandês Ekee Overbeek, publicado ao cabo de dez anos de pesquisas e entrevistas, recheio imponente da obra intitulada Máxima Culpa, de mais de 500 páginas. “Encontrei evidências de que o papa não somente sabia de casos de abusos sexuais entre os padres da arquidiocese de Cracóvia, mas também se incumbiu de ocultá-los”, declarou Overbeek, que morou na Polônia por mais de 20 anos, e já publicara um livro, em 2013, com depoimentos de vítimas de padres pedófilos.

Wojtyla nasceu em Cracóvia, cidade situada a 60 quilômetros do campo de extermínio de Auschwitz. Foi arcebispo católico da cidade, mas não consta que tenha tomado posição em relação à deportação, pelos nazistas, dos moradores do gueto. À sombra de Wojtyla surgiram figuras como o monsenhor Paul Marcinkus e o ­cardeal Tarcisio Bertone. Marcinkus foi conselheiro assíduo de João Paulo II, eleito pelo conclave após a misteriosa morte de João Paulo I, papa Albino Luciani, que governou a Igreja por pouco mais de um mês, envenenado, antes de se deitar, ao tomar uma chávena de chá, embora de elegante procedência. Ironicamente, Wojtyla escolheu o nome do antecessor.

Marcinkus, exímio tenista e frequentador de moçoilas endiabradas, acompanhou João Paulo II na sua primeira visita ao Brasil, em 1980, e somente muito tempo depois, quando o protetor já falecera, foi desterrado para uma remota diocese californiana. Quanto a Bertone, assumiu o comando da Cúria Romana e foi uma das pedras encontradas por Francisco na sua caminhada inicial. De imediato, o novo papa decidiu morar num apartamento modesto, em lugar de ocupar as suntuosas dependências que lhe cabiam no palácio apostólico. Ali ficou Bertone, anfitrião de festas entre nababescas e licenciosas, a imitar a Roma dos Borgia.

Bertone e Marcinkus, pedras no caminho de Francisco – Imagem: Guillermo Gonzales/Notimex/AFP e Farabola/Leemage/AFP

Este capítulo, porém, durou pouquíssimo e de Bertone nunca mais se falou. Francisco dedicou-se integralmente à sua missão claramente explicitada, ao evitar enfeites religiosos quando aparecia na janela do Vaticano para contemplar do alto a Praça São Pedro, abraçada a multidão pela colunata de Bernini. E permanece a lembrança do momento em que, em tempo de pandemia e debaixo de chuva intensa, o papa caminha até um altar vazio erguido diante da catedral e fala para o mundo.

Crítico do neoliberalismo, Francisco reivindica maior justiça social, proteção da natureza e defesa dos migrantes que fogem das guerras e da miséria. E acrescenta o vaticanista Marco Politi: “Acabou com a demonização da homossexualidade e com os debates sobre relações extraconjugais e sobre contraceptivos”.

Surpreendido pela insólita postura papal, o diretor do jornal La ­Repubblica, Eugenio Scalfari, um dos mais notáveis jornalistas italianos do pós-Guerra, passou a escrever todo domingo, no jornal que dirigia, um artigo de fundo destinado, qual fosse uma carta, à leitura do pontífice. Surgiu então a feliz e frequentadíssima correspondência, acompanhada por uma audiência fluvial de crentes, agnósticos e ateus.

O papa revolucionário empolgou não somente os italianos, mas o mundo inteiro, reconhecido como um vento novo a soprar em todas as direções. Uma visita de Francisco a Assis, berço do santo e primeiro crítico desabrido da chamada Santa Sé dois séculos antes de Lutero, realizada pouco depois da sua eleição, foi acompanhada e celebrada pela imprensa global. A basílica foi erguida em três andares e, no último, Giotto, primeiro pintor da Renascença, a cavaleiro dos séculos XIII e XIV, contou a história de Francisco, o santo, jovem rico que escolheu a pobreza.

O papa ecumênico comunica-se diretamente com os desvalidos do mundo. Talvez João Paulo I tivesse percebido o rumo certo – Imagem: Andreas Solaro/AFP, Farabola/Leemage/AFP e L’Osservatore Romano/AFP

Em uma das obras, o santo antecipa o papa e soergue nos ombros a Igreja decadente, enquanto o pontífice da época dorme saborosamente. Trata-se de uma espécie de profecia que ao Francisco dos dias de hoje cabe realizar. Não se aquietou ainda a recordação de João Paulo II, pontífice político interessado apenas nos resultados da Guerra Fria e no cumprimento preciso, por parte dos fiéis, da ortodoxia católica.

Conheci Cracóvia e observei a religiosidade fanática daquele povo. Na enorme praça central, cercada de bares e cafés e dominada pela fachada de uma igreja, certa manhã da minha visita encontrei o povo ajoelhado nos assentos transformados em genuflexórios, um exército de crentes acompanhando a missa celebrada em frente, em obediente participação caracterizada, inclusive, por cantorias de hinos religiosos.

Impossível esquecer a cena, mesmo com a perspectiva de contar logo mais com caviar russo recém-chegado. Caviar é caviar, mesmo quando vem de um império sem Deus. •

Publicado na edição n° 1251 de CartaCapital, em 22 de março de 2023.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Por uma nova Igreja’

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