Editorial

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O Brasil de Bolsonaro oferece uma poderosa contribuição à crise mundial, enquanto o mensalão denunciado por Roberto Jefferson, ainda durante o primeiro mandato de Lula presidente, sobrevive no orçamento especial de Arthur Lira

Arthur Lira, dono da grana - Imagem: Pedro Ladeira/Folhapress
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Dois anos e alguns meses depois de eleito, meu velho e querido amigo Lula liga-me e convida: “Venha jantar conosco hoje mesmo. Vamos conversar sobre o que está acontecendo”. O que acontece é o grande ruído a cercar a denúncia do deputado Roberto ­Jefferson, em entrevista à Folha de S.Paulo: afirma a existência de um esquema de propinas a parlamentares e confessa ter recebido 4 milhões de reais. O País passa a falar em Mensalão e os acusados cassam imediatamente o acusador.

Vou a Brasília e encontro o presidente entretido em um jogo de rouba-monte com a mulher, Marisa. Ela está visivelmente preocupada. A fala desabrida que se segue acontece por causa de uma amizade já muito sólida. Ela diz que o bom coração do marido o leva a proteger quem não merece e o trai. Ele garante que as providências necessárias serão tomadas. A investigação, logo conduzida, leva à prisão o próprio denunciante, defenestrado por seus pares no exercício do sexto mandato de deputado federal, e algumas figuras petistas, a começar por José Dirceu, ­Delúbio ­Soares e Antonio Palocci.

Roberto Jefferson montou em casa um arsenal bélico – Imagem: Redes sociais

Vida turbulenta, a do deputado. Em 2012, foi condenado novamente, desta vez pelo STF, a 7 anos e 14 dias, por corrupção passiva e lavagem de dinheiro por causa do Mensalão. Mantido em um presídio de Niterói, acabou beneficiado por uma decisão do Supremo, em 2015, ao ser colocado em regime aberto. Em 2016, por decisão do ministro Luís Roberto Barroso, foi favorecido de vez por um indulto.

Voltou à notoriedade graças à eleição de Jair Bolsonaro, o qual hoje se apressa a afirmar não existir uma única foto retratando a ambos juntos. Como podemos imaginar, existem dezenas, mas Bolsonaro insiste: “Como determinei ao ministro da Justiça, Anderson Torres, Roberto Jefferson acaba de ser preso. Tratamento dispensado a quem atira em policial é o de bandido”.

A proximidade com o ministro da Justiça de Bolsonaro certamente constrange o presidente do TSE – Imagem: Marcelo Camargo/ABR e Mateus Bonomi/Agif/AFP

Jefferson montou na sua residência um arsenal de vários fuzis e revólveres, além de um estoque de granadas, duas das quais foram atiradas contra os agentes que o prenderam ao cabo de uma longa negociação. Mas não é nada fácil agir com a necessária severidade no país segundo mais desigual do mundo. A eleição de Bolsonaro voltou a colocar Jefferson debaixo dos holofotes. Passou a defender todas as medidas anunciadas pelo energúmeno demente e abrigar no seu partido, o PTB, herança de Getúlio Vargas e outros sinceros líderes gaúchos, o deputado Daniel Silveira, recém-derrotado ao Senado, e ­Fabrício Queiroz, o motorista ex-assessor de Flávio Bolsonaro, envolvido no caso das “rachadinhas” na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro.

Em pelo menos duas ocasiões ­Jefferson foi recebido por Bolsonaro, no Palácio do Planalto, com a pompa devida a um líder partidário. Neste ínterim, ele conseguiu se superar ao desferir um ataque contra a ministra do STF Cármen Lúcia, ao comentar a decisão da magistrada de determinar a remoção de informações falsas ou distorcidas veiculadas pela rádio Jovem Pan. Disse Jefferson a desafiar o ministro Alexandre de Moraes, o qual, felizmente, leva a sério a missão recebida de comandar o TSE: “Fui rever o voto da bruxa de Blair, a Cármen Lúcifer, na censura prévia à Jovem Pan. Não dá pra acreditar. Ela lembra mesmo aquelas prostitutas, aquelas vagabundas arrombadas”. Segue-se uma observação de infinda vulgaridade.

Jefferson se supera ao desfechar contra a ministra Cármen Lúcia um ataque de vulgaridade inominável

Este gênero de comportamento, a culminar com a recepção à bala dos policiais chegados à porta da sua residência, precipitou a decisão de Moraes. Mas o ministro não pode tudo e não se recomenda qualquer gênero de ilusão. Cabe ao presidente da Câmara, Arthur Lira, graças ao seu orçamento secreto, institucionalizar o Mensalão velho de guerra. Lira dispõe de recursos que somam ao menos 357 milhões de reais, grande parte destinada a fortalecer o seu reduto eleitoral em Alagoas. O balneário de Barra de São Miguel, administrado por Benedito Lira, pai de Arthur, recebeu, no mínimo, cerca de 6 milhões de reais através do orçamento secreto.

CartaCapital percebe que Bolsonaro é, na verdade, o último elo de uma cadeia de desgraças a mostrar uma crise de proporções mundiais, e a nos expor até ao risco de uma guerra nuclear. O conflito em curso desfechado por Putin à volta do Mar Negro revela que o czar russo pretende recuperar, sem as conotações ideológicas de antanho, o poder soviético no retorno a uma nova modalidade de Guerra Fria. Nesta se insere à força a China, onde Xi Jinping governa com um mandato de duração superior àquele de Mao Tsé-tung, 40 anos.

Os facínoras Moro e Dallagnol ainda se riem da desgraça que provocam – Imagem: Redes sociais

O fenômeno de uma Europa a guinar à direita, numa acepção bastante reacionária, é o primeiro, formidável sintoma da crise. E o ex-capitão, eleito à Presidência da República em 2018 na ausência da candidatura de Lula, não desfigura no quadro da crise mundial. O ex-presidente fora atingido pela atuação criminosa de Sergio Moro e Deltan Dallagnol, ambos impunes, eleitos para o Parlamento, a serviço de Bolsonaro. O caos geral incita o czar russo a receber, com mesuras e simpatia, figuras europeias como Silvio Berlusconi e a celebrar a decadência inglesa, bem sinalizada pela queda do valor da libra esterlina, até ontem considerada a moeda mais prestigiosa do globo. A confusão mundial favorece o czar neste embate pelo poder. O idealismo já foi, sobra como válida admoestação a palavra profética de papa Francisco, a caminhar debaixo de chuva no vasto abraço das colunas de Bernini, em busca de abrigo na praça deserta, a prever quanto já estava no ar e vaticinar o destino da miúda bola de argila posta a girar em torno do Sol, estrela menor em um universo sem-fim.

P.S.: Fui convidado a endossar um abaixo-assinado a favor da democracia. Minha consciência carbonária confirma que não há democracia possível onde existe um monstruoso abismo entre a minoria desbragadamente rica e a maioria desbragadamente pobre. Ocorre que minha assinatura figuraria em um documento a favor da candidatura de Lula contra o facínora Bolsonaro. Donde assinei, ao vencer as resistências ideológicas de outros tempos para traí-las com a paz no espírito. •

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1232 DE CARTACAPITAL, EM 2 DE NOVEMBRO DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Papelão”

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