Editorial

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O papa estadista

Francisco foi providencial para desfazer o malfeito por Wojtyla

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Na Praça São Pedro vazia, Francisco prepara-se a confortar os fiéis atingidos pela pandemia. Abaixo, Wojtyla longe de Giotto – Imagem: Vincenzo Pinto/AFP e Gerard Julien/AFP
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Nem todos os papas vão para o Paraíso. Consta até que muitos deles acabam no Inferno, com largos méritos. De Alexandre VI, registrado como Borgia, mas de verdade Borja, pai de quatro filhos nem todos de bom caráter, a Pio XII, nobre romano que simpatizou com Hitler. Alguns tiveram desempenhos historicamente notáveis, embora voltados para uma atuação por demais terrena e conveniente para alguns graúdos fiéis em detrimento de outros.

Neste atribulado momento, quando o planeta é sacudido pelo tropel dos cavaleiros do Apocalipse, um pontífice assume o papel de estadista do mundo para repor a situação no devido lugar e consertar o malfeito de quem o precedeu e, certamente, não foi ao Paraíso. Prorrompe a extraordinária figura de um papa capaz de desejar um nome apenas do santo de Assis, o Poverello Francisco, habilitado a jogar às urtigas os privilégios da sua casta para dedicar-se ao socorro dos desvalidos.

Profético, Giotto: Francisco, o santo, soergue a Igreja, enquanto o papa dorme – Imagem: Acervo/Basílica de São Francisco de Assis

Neto de camponeses do Piemonte emigrados para a Argentina, Jorge Bergoglio assume a cátedra de Pedro, enquanto o mundo vive o momento mais agudo da pandemia de Covid-19. Em uma Praça de São Pedro insolitamente absorta pela ausência do povo e batida pela garoa notívaga, Francisco arma sua tenda aos pés da escadaria da Catedral e, de lá, conforta os fiéis. Eis a tarefa que a situação exige naquele exato instante, mas a missão mais imponente é a de reconstituir a entidade da própria Igreja dilapidada por Karol Vojtyla, nascido em Cracóvia, a 60 quilômetros de Treblinka, esvaziada a Polônia pela feroz perseguição à população judia.

João Paulo II, eleito um mês depois da morte do papa Albino Luciani, João Paulo I, vitimado por uma misteriosa chávena de chá servida ao adormecer. Consta que Luciani pretendia ser o papa de todos, bem ao contrário de Wojtyla, envolvido nas tensões da Guerra Fria para dedicar-se à política em lugar da saúde espiritual do seu rebanho. Quando da sua primeira visita ao Brasil, tivemos a oportunidade de vê-lo em ação em todo seu esplendor. Acompanhava-o na ocasião o cardeal Paul Marcinkus, exímio tenista, imitador donjuanesco das façanhas de Casanova. Enquanto Wojtyla fugia do debate sobre padres pedófilos, finalmente chegado à tona, o IOR, Instituto das Obras Religiosas, lavava dinheiro mafioso, de cara igualmente lavada.

A primeira chegada de João Paulo II ao Brasil – Imagem: Arquivo/Folhapress

Wojtyla foi mestre de encenações inigualáveis, entre elas a santificação de um notório padre embusteiro, chamado Pio de Pietralcina, a contar com a aliança do farmacêutico que lhe fornecia ácido para produzir os estigmas de Cristo, como apurou outro papa notável, João XXIII, no quadro de uma deplorável história de exploração da crendice popular. Papa Francisco teve de se a ver, de saída, com a Cúria Romana, liderada pela sinistra figura do cardeal Tarcisio Bertone. De sorte a marcar as diferenças, Francisco, de imediato, recusou a hospedagem no Palácio Apostólico, para se instalar muito modestamente, enquanto demolia as hostes inimigas.

Foi uma longa refrega, da qual Francisco saiu vencedor, a exibir, inclusive, raro talento de estrategista, até a situação sobrar limpidamente sob seu controle. Multidões ouviram as falas de Francisco, pronunciadas da costumeira janela do Vaticano, para uma plateia a lotar o espaço da Colunata de ­Bernini, arquiteto, escultor e até pintor em 1600. Francisco está doente há algum tempo, a padecer de uma complicação pulmonar. Este texto não pretende ser, e não é, uma espécie de epitáfio. ­CartaCapital espera que Francisco vença mais esta refrega. Expõe, porém, o estadista ­Bergoglio, cuja visão está muito bem demonstrada na encíclica Laudato Si, bem como na correspondência mantida por largo tempo entre um grande jornalista, Eugenio Scalfari, diretor do La Repubblica, e o pontífice.

O temível Marcinkus, tenista e Casanova – Imagem: Farabola/Leemage/AFP

O encontro dava-se aos domingos, Dia do Senhor, para provar ao cabo que o que mais havia ali era a concordância. A Catedral de Assis, dividida em três andares, a guardar tesouros. No térreo, apresenta nas paredes grandes quadros da vida de Francisco, o santo, primeira manifestação de arte renascentista ainda a cavaleiro entre os séculos XIII e XIV. A Itália dava o primeiro passo na modernidade, com a participação de Dante, Petrarca e Boccaccio. Em uma das obras de Giotto, em Assis, São Francisco aparece soerguendo nas costas a própria Igreja, enquanto o papa dorme. O pintor recria o cenário para fundir em uma só as duas personagens, o santo e o Senhor da Igreja.

Haverá quem enxergue a presença do Altíssimo na concepção e no encadeamento dos eventos para esclarecer o exato papel de Francisco. ­Nietzsche pretendia que a natureza seja o centro e a razão do Universo. No fundo, a questão é meramente semântica. De todo modo, Bergoglio veio na hora certa para recolocar a própria Igreja na bissetriz correta, no sentido de mais auspiciosa. O papa argentino foi absolutamente indispensável para recompor o mundo pretendido pelo político Karol Wojtyla, incapaz de perceber o imperialismo desenfreado da URSS e de Tio Sam, iguais na prepotência e no desmando.

Como sempre, na janela do Vaticano, a fala para a praça e para o mundo – Imagem: Osservatore Romano/AFP

De pensamento tosco, o papa polonês enxergava a luz de um lado e a sombra do outro, sem levar em conta as inúmeras falhas a caracterizar seu pontificado desestabilizador, tanto para a Igreja quanto para a humanidade em geral. Talvez tenha sido este o motivo a levar o papa argentino a escolher um nome solitário, sem ligações com o tempo presente, como se estivesse fora do rol, de lugar marcado na hagiografia cristã. Não colhemos nele, em momento algum, a prosopopeia de quem afirma sem admitir eventuais dúvidas de quem o escuta. Tal é o resumo inescapável do pontificado de Francisco: recompor a situação depois do vendaval provocado por Wojtyla e suas aspirações de grandeza.

Recordo outro franciscano, Dom Paulo Evaristo Arns, que visitei por longo tempo, mesmo depois de sua aposentadoria na condição de cardeal-arcebispo de São Paulo. Cumpria uma regra devidamente preestabelecida e foi morar em um casarão cercado por árvores. Lá eu ia com razoável frequência e a nossa conversa nunca deixava de condenar as atitudes do papa polonês. Dom Paulo, certamente, não imaginava a chegada de Francisco, mas teria entendido a sua necessária condição de estadista. •

Publicado na edição n° 1288 de CartaCapital, em 06 de dezembro de 2023.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘O papa estadista ‘

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