Editorial

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Meu caro Lula

Mais uma carta ao grande amigo

A caminho da polícia, cercado pelo seu povo - Imagem: Paulo Pinto/Fotos Públicas
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De saída, confirmo o que você já sabe: CartaCapital volta a apoiar irrestritamente a sua candidatura à reeleição no iminente embate eleitoral do segundo turno. Ainda encaramos a derrota de Bolsonaro como prioridade absoluta, a bem do próprio País que o energúmeno demente desgoverna. Não abandono, porém, a convicção de que o monstro foi criado por nós mesmos. Cedemos à situação propiciada desde a Lava Jato, conduzida por dois facínoras, reles traidores do Direito e do ­País, já reeleitos para a trupe bolsonarista.

Alguma leve perplexidade me toma diante do seu denodo em praticar a política velha de guerra, tocada ao sabor de acordos negociados e trocas de favores, conforme se apura ao analisar o seu comportamento nesta véspera de segundo turno. Admito, contudo, que o embate se tornou um vale-tudo. De todo modo, minha visão panorâmica das circunstâncias se apinha de graves perguntas. Que país é este, capaz de levar ao poder uma metralhadora incansável de mentiras e invencionices aos borbotões? Esta publicação entende que o segundo turno é fruto de erros, tergiversações e hesitações no confronto com o problema crucial do ­País, o monstruoso desequilíbrio social, entrave fatal à prática da democracia.

Esta história, felizmente, ainda carece de ponto final

Impossível, quando o povo sofre a separação abissal entre ricos desmesuradamente ricos e pobres infinitamente pobres. Trinta por cento da população passa fome e outro tanto ignora se o dia seguinte lhe proporcionará um novo repasto. Os sintomas da ignorância e da miséria estão diariamente nos noticiários da televisão, a contarem histórias de inaudita violência. Somos campeões mundiais de homicídios e assaltos à mão armada. O conjunto da obra é terrificante.

CartaCapital entende que você pode e deve ser o líder necessário de uma reviravolta na nossa história, para enfrentar os verdadeiros problemas que assolam o País, caldo de cultura do bolsonarismo. Até agora fomos impotentes diante das desgraças que historicamente nos vitimaram. A colonização predatória de Portugal e a escravidão capaz de abduzir cerca de 7 milhões de africanos, sem contar os falecidos nas travessias dos navios negreiros e sem esquecer que a abolição brasileira foi a última no mundo.

Os facínoras traidores do Direito e do Brasil – Imagem: Jorge Araújo/Folhapress

Sofremos a presença de um poder militar superior aos demais, pronto a desfechar golpes com apoio imediato dos habitantes da casa-grande e dos sobrados senhoriais, conforme as lições de Gilberto Freyre, donos do poder desde a dinastia de Avis, de acordo com a desabrida devassa de Raymundo Faoro, inspirado por Max Weber. Estes senhores prepotentes, sustentados freneticamente pela mídia criada por eles mesmos, convocaram a série de golpes desfechados da caserna desde a Proclamação da República.

O retrospecto está longe de ser alentador, embora o Brasil já tenha vivido dias melhores, tempos de poetas e pensadores, quando o mais empolgante evento popular, graças a timoneiros excelentes, foi a campanha das Diretas Já. Espero que você desculpe a minha insistência, mas esta política pela política não leva a coisa alguma, ou melhor, produz Bolsonaro e o bolsonarismo.

Wagner e Boulos, preciosas reservas para dias melhores – Imagem: Ricardo Stuckert/Instituto Lula

Por incrível que pareça, percebo que você subestima o seu papel. Vejo-o, tanto mais agora, ao constatar a serenidade­ da sua expressão de avô de todos, como líder de uma renovação em condições de fazer do Brasil o país digno das benesses recebidas da natureza e, finalmente, de um povo que virou nação. Imagino o exame de consciência a ­atormentá-lo com a eleição, a serviço de Bolsonaro, de Sergio Moro e Deltan Dallagnol, o homem do PowerPoint, responsáveis pelo processo apoiado desbragadamente pela mídia nativa, com endosso das sentinelas togadas da Constituição e do ­Congresso ­súcubo do Centrão. São os mesmos que neste momento tentam chantageá-lo com as pressões do mercado.

De todo modo, a eleição teve o mérito de apontar ao País figuras extraordinárias como Jaques Wagner e Guilherme Boulos, reservas preciosas para um futuro destinado a nos premiar ao cabo da jornada tortuosa. Neste entrecho cabe também o impeachment de Dilma ­Rousseff, eleita com seu apoio para dar continuidade ao governo petista.

No país dos golpes, Lula não quis ou não soube desferir o seu, mesmo quando tinha faca e queijo na mão

Lembro-me de uma recomendação que você, creio incautamente, fez a ela: conferir maior importância ao vice ­Michel Temer. O homem estava pronto a figurar como usurpador, dono de uma atuação à altura da sua vocação de inveterado corrupto, como foi sempre do conhecimento dos armazéns e dos bagrinhos do porto de Santos. Lembro de Temer, vice-presidente, chamado a substituir Dilma em uma festa de CartaCapital, para pronunciar um dos seus empolados discursos notáveis, sobretudo, pela hipocrisia.

No telhado do Dops curitibano, o ex-presidente desce para a prisão, celebrada em festa pela casa-grande e sua mídia – Imagem: Mauro Pimentel/AFP

Sua prisão em Curitiba, meu excelente amigo, representou um acinte armado contra o povo brasileiro. Pergunto aos meus aturdidos botões por que você agora ignora Dilma Rousseff, condenada pelo usurpador a viver presa no Palácio da Alvorada? Dilma, diga-se, nunca o traiu, conforme foi demonstrado por uma entrevista que ela deu a uma equipe de CartaCapital, da qual participaram o redator-chefe, Sergio Lirio, o chefe da sucursal de Brasília, André Barrocal, e o signatário desta carta.

Tenho por você, querido amigo Lula, admiração, respeito e muito afeto, mas suponho que uma amizade como a nossa permita uma total franqueza, sem disfarces e meias-palavras. E com você estamos na batalha contra os mesmos senhores da casa-grande e do mercado. Temos por eles, nesta ação maléfica, o mais profundo desprezo. São os mesmos de sempre. •

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1230 DE CARTACAPITAL, EM 19 DE OUTUBRO DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Meu caro Lula”

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